resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de abril de 2002
ODISSÉIA GROTESCA
Costumo citar sempre a maneira singela e lapidar como um dos personagens de Crimes e Pecados (1989), de Woody Allen, resumia a condição humana. É mais ou menos o seguinte: o universo é basicamente inóspito e nós tentamos povoá-lo com nossos afetos.
É uma boa descrição do que ocorre no genial Enquanto Agonizo, componente do trio supremo (os outros são Luz em Agosto e Absalão!Absalão!) de obras-primas de William Faulkner. A nova tradução de Wladir Dupont, publicada pela Mandarim, s é bastante inferior à de Hélio Pólvora (dos anos 70, pela Expressão & Cultura).
Enquanto Agonizo é dividido em 59 monólogos de 15 personagens, com destaque para a quantidade dos que focalizam a mente de Darl Bundren (19) e seu irmão caçula, Vardaman (10). Até a agonizante do título, Addie Bundren, mãe deles, tem um monólogo, o quadragésimo, um momento central do romance. Não se trata de uma simples tomada de palavra por determinado personagem (todos os 15 com uma gritante individualidade), privilegiando a oralidade, isto é, o modo de expressão peculiar de cada um deles. Enquanto Agonizo é, ao contrário, um dos textos mais escritos da literatura, com um uso da palavra que só pode ser lido, sem qualquer possibilidade de ser transmitido de outra forma. Por exemplo, entre uma pergunta do pai, Anse, e a resposta do filho, Darl, se interpõe uma página de lembranças e associações. De forma mais sofisticada ainda, há monólogos de Darl em que ele visualiza para si mesmo (ele e seu irmão Jewell, nascido do adultério de Addie com o pastor, Mr. Whitfield, estão longe na hora do falecimento da mãe) o que está acontecendo em casa, o que reduplica o foco ficcional: estamos acompanhando a imaginação narrativa de um personagem, talvez o mais complexo entre os criados por Faulkner, o qual nos surpreende com imagens extraordinárias, como na descrição que o dr. Peabody faz do olhar de Addie: “É como se nos tocasse, mas como nos toca o jorro de uma mangueira, um jorro que, no momento do impacto, se houvesse dissociado do bocal, como se nunca tivesse saído por ali”.
Tudo para mostrar os Bundren e seus afetos diante do universo inóspito. Eles são sulistas brancos e pobres (portanto, loosers, lixo branco) de Yoknapatawpha (o condado imaginário do Mississipi inventado pelo maior dos autores de ficção, junto com Thomas Mann). Addie agoniza (enquanto o filho mais velho, Cash, prepara seu caixão, à sua vista) e morre, dando início a uma difícil viagem até Jefferson, centro da região (ela queria ser enterrada ali, pelo menos é o que o marido, Anse, insiste em dizer), enfrentando uma grande enchente (na travessia do rio, a ponte foi levada e a carroça que transportava o caixão afunda e Cash quebra a perna) e depois um incêndio num celeiro, provocado por Darl, que será levado para um hospício.
Após o sepultamento de Addie (que demorou nove dias, por isso os Bundren eram acompanhados por urubus na sua jornada e expulsos de povoados), Anse aparece com nova esposa diante dos filhos (além dos já citados, Cash, Darl, Vardaman e Jewell, há uma garota, Dewey Dell, que está grávida). No final, não sobrou a Addie nem o consolo da “morte digna”, que redima a vida sem sentido e sórdida.
A odisséia grotesca dos Bundren até Jefferson vai esgarçando ponto por ponto a devoção aparente e realçando apenas o lado fanático e maníaco, quando não o lado mesquinho e calculista: no final, o pai espolia os filhos (vende o cavalo que é a paixão de Jewell, rouba o dinheiro da filha, arranja nova mulher); Dewey queria ir à cidade para conseguir um abortivo; e Darl, a má consciência da família, o Hamlet dos brancos pobres do fundamentalista sul dos EUA, “enguiça”, e é neutralizado (como diz o vizinho da família, mr. Tull: “pois o Senhor quer que o homem aja e não perca muito tempo pensando, porque seu cérebro é como uma peça de máquina, não agüenta funcionar em excesso”).
Num mundo inóspito e cheio de estranhos, mesmo que sejam da própria família, a vida, como se afirma em O Velho (texto magnífico que compõe uma das narrativas alternadas de Palmeiras Selvagens) “consiste em ter que se levantar mais cedo ou mais tarde e então ter que se deitar mais cedo ou mais tarde novamente”. Entenda-se o “deitar” no sentido de Addie Bundren.
(uma versão ligeiramente diferente desta mesma resenha foi publicada em A TRIBUNA de Santos, em 09 de maio de 2009, em função da reedição da tradução de Wladir Dupont pela L&PM)