MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

23/01/2011

FALA SÉRIO, DR. YALOM: a cura de Schopenhauer através da dieta de abobrinha

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de maio de 2005)

    O psicoterapeuta Irvin D. Yalom faz muito sucesso atualmente com um romance de título ridículo, Quando Nietzsche chorou. Nele, após fracassar em conseguir uma melhor interação pessoal, o médico Josef Breuer (cujo nome está indissociavelmente ligado às primeiras pesquisas de Freud rumo aos conceitos que fundaram a psicanálise) faz o seguinte diagnóstico de um dos três grandes pensadores carismáticos (junto com Schopenhauer e Kierkegaard)  do século XIX: “…devido aos seus temores sociais e à misantropia, Nietzsche escolhe um estilo impessoal e distante. É claro que está cego para isso: o que faz é desenvolver uma teoria para racionalizar e legitimar o enfoque de seu aconselhamento. Assim, não oferece nenhum apoio pessoal, jamais estende uma mão confortadora,  perora para mim de uma plataforma elevada, recusa-se a admitir seus próprios problemas pessoais e não se dirige a mim de uma forma humana”.

     A fórmula se repete em A CURA DE SCHOPENHAUER (The Schopenhauer cure,2005, em tradução de Beatriz Horta, lançada pela Ediouro). Breuer agora é Julius Hertzfeld (olha o sobrenome!) e enfrenta o desafio de colocar Philip Slate/Nietzsche num grupo de terapia. Slate havia sido um dos fracassos de Hertzfeld. Ao saber que tem uma doença terminal, resolve saber o que foi feito dele e descobre que está para se tornar também um terapeuta, oferecendo “orientação filosófica” aos pacientes, isto é, um trabalho de “biblioterapia”, a cura pela leitura de pensadores, especialmente a de Schopenhauer.

    Slate precisa de estágio e por isso aceita participar do grupo de Hertzfeld, causando desconforto: em primeiro lugar, pela sua recusa de interagir pessoalmente e por citar, quase de cor, trechos schopenhaurianos quando a atenção se volta para ele; depois, com a volta (da Índia) de um dos membros, Pam, há a desagradável revelação de que ele a seduzira quando era seu professor e destruíra o relacionamento dela com sua melhor amiga (com quem ele também transara), prejudicando seus futuros investimentos erótico-afetivos.

     Toda a dinâmica narrativa de A CURA DE SCHOPENHAUER consiste em quebrar a resistência de Slate e obrigá-lo a chorar, tal como Nietzsche, no reconhecimento da necessidade de interagir com os outros e ser afetado por eles. Enfim, uma bobagem. É difícil de acreditar que alguém possa levar a sério esse tipo de auto-ajuda com roupagem aperfeiçoada.

     Embora eu considere terapia em grupo uma coisa inimaginável, e fundamentalmente descreia de algo como uma cura emocional, o romance de Yalom poderia ser uma dramatização literária das experiências de um especialista na área, por que não? O que torna o livro desonesto e desastroso (dando muito saudade do psiquiatra Hannibal Lecter e sua relação com a empatia) é que, talvez embalado pelo sucesso de Nietzsche como personagem, Yalom resolveu inserir Schopenhauer numa história contemporânea que não precisava dele.

     Colocou como representante das suas idéias o personagem mais antipático e exasperante da trama (e a necessidade de introduzir noções filosóficas em meio ao cotidiano acabou gerando mais pobreza literária: tem até o membro do grupo estereotipadamente rústico que nunca entende as referências a filósofos e artistas e a quem—e ao leitor, por extensão—se explica tudo da forma mais simplificada). Colocou capítulos em que se narra a biografia do autor de O mundo como Vontade e Representação, caricaturizando os fatos da sua vida e seus conceitos com uma espécie de tosca pesquisa escolar.

       O momento mais grotesco, no entanto, é quando a insuportável Pam diz ao seu desafeto que defendia a tese (budista e schopenhauriana) de que “a vida é sofrimento”: “Fala sério, Philip! Será que lembrou que Schopenhauer tinha depressão crônica e que Buda viveu num tempo e num lugar em que havia muito sofrimento causado pela peste e pela fome? E que, para a maioria das pessoas, a vida era realmente um sofrimento sem fim?”!!!! Nós realmente superamos isso e vivemos num tempo sem sofrimento, sem penúria, sem pestes e sem fome! Fala sério, Irvin D. Yalom!

24/12/2010

“A cidade há de seguir-te(…) A esta cidade sempre chegarás”

Em Pontos de fuga, Graham Greene, ao falar sobre lugares que capturam o nosso coração, escreve: “Aos 31 anos, na Libéria, dei meu coração à África Ocidental… Meu amor pela África aprofundou-se ali, em particular pelo que é chamado, no mundo inteiro, a Costa, aquele mundo de tetos de zinco, de urubus pousando ruidosamente, de caminhos de laterita ganhando uma cor rosada à luz do entardecer.”

Há exatamente 50 anos, Lawrence Durrell (1912-1990) lançou o primeiro volume (Justine) do mais inesquecível registro ficcional do feitiço de um lugar: “Em essência, o que é essa nossa cidade? O que resume o nome Alexandria? Num relance, minha mente exibe incontáveis ruas tomadas de poeira..o doce odor da poeira dos tijolos e das calçadas quentes saciadas com água”.

É desconcertante que só agora apareça uma tradução brasileira de O quarteto de Alexandria (durante anos circulou por aqui a ótima versão portuguesa, de Daniel Gonçalves), que seria completado em 1960. Trata-se de um dos romances mais belos a destrinçar o paradoxo de se existir mais na memória do que no próprio ato de viver.

Então, temos a cidade e a memória, o labirinto e o fio de Ariadne que nos permite percorrê-lo. A cidade, em sua dimensão mitológica, onde Justine, amante do narrador “errava em busca (no meio de uma terrível solidão do espírito) do lampejo que lhe revelaria uma nova perspectiva do seu ser” (é preciso dizer que a, em geral correta, tradução brasileira, às vezes carece de graça. Veja-se como ele traduz o mesmo trecho: “buscando com uma dedicação assustadora a centelha definitiva que a elevaria até uma nova perspectiva de si mesma”). Essa busca é a tentativa de quebrar as imagens fixadas nos espelhos cuja reiterada aparição no livro acabam proporcionando-nos uma imprevisível mistura de Proust e Borges, o mundo da memória perseguindo o Ser e o mundo fantasmagórico em que o ser é apenas um reflexo e igualmente pode Não-ser: “Na hora de ir  para a cama, Justine olhava-se no espelho do primeiro patamar da escadaria e ralhava com seu reflexo: Estou cansada de você, sua judia presunçosa e histérica!”

O narrador do livro é um professor irlandês, envolvido com uma dançarina de cabaré que se prostitui, Cléa. Ele conhece Justine, esposa do milionário Nessim, discípula do místico Balthazar, descendente espiritual da sua homônima criada pelo Marquês de Sade, envolta em sensualidade, mas com um “ar de perpétuo esgotamento” (“uma verdadeira filha de Alexandria; nem grega, nem síria, nem egípcia, mas um híbrido, um complexo”). Enfim, uma mulher “que arrancava as pessoas dos seus velhos invólucros”. A cidade, a memória, a mulher, os grandes pólos enfeitiçantes, imantadores e galvanizantes da literatura, que propiciarão ao narrador o “primeiro grande desastre da idade madura”, numa ciranda amorosa alexandrina que oferecerá “uma existência que esperava de nós o impossível: que existíssemos” na “zona de atração que  Alexandria criava para aqueles que escolhera como seus símbolos”.

Cidade, memória, mulher, espelhos. E um fantasma literário vindo admoestar constantemente o Hamlet de Durrell: o poeta de Alexandria, Konstantinos Kaváfis (1863-1933), com sua poesia de momentos irrisórios impiedosamente reconstruídos:

Dizes: “Eu vou para outras terras, eu vou para outro mar.

Hão de existir outras cidades melhores do que esta.

De todo o esforço feito –estava escrito—nada resta

E sepultado qual um morto tenho o coração.

Até quando vai minha alma ficar nesta inação?(…)

Não acharás novas terras, tampouco novo mar.

A cidade há de seguir-te. As ruas por onde andares

Serão as mesmas… A esta cidade sempre chegarás…

A vida, pois, que dissipaste aqui, neste cantinho

Do mundo, no mundo inteiro é que a foste dissipar”. ( (tradução de José Paulo Paes)

(resenha publicada em três de março de 2007)

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27/12/2009

Em relação ao século XIX: BICENTENÁRIOS, SESQUICENTENÁRIOS

      “… todos os seres da natureza, perceptíveis para nós, mantêm uma relação recíproca (…) Imagine a água, o óleo, o mercúrio: você verá uma unidade, uma coesão entre as suas partes. Essa união só deixará de existir pela força ou por outra determinação qualquer. Cessando esta, tornam logo a juntar-se de novo (…) E isso será diferente segundo a diversidade dos seres. Ora agirão como amigos ou velhos conhecidos que rapidamente se reúnem, se juntam, sem modificarem um ao outro, tal como o vinho ao se misturar com a água; ora, ao contrário, permanecerão absolutamente estranhos um ao outro, sem se unirem, mesmo através de fricções ou misturas mecânicas, como o óleo a água (…) Não falta muito para vermos nessas forma simples as pessoas que conhecemos… Entretanto o que mais se assemelha a esses seres inanimados são as massas se enfrentando no mundo, as classes sociais, as profissões, a nobreza e a burguesia, o militar e o civil (…) Contudo, tal como esses grupos que se agregam por meio de costumes e leis, há também, em nosso mundo químico, elementos para juntar aquilo que se repele mutuamente…”

      2009 marca não só o bicentenário do nascimento de gênios como Edgar Allan Poe, Nikolai  Gógol  (há posts sobre as duas efemérides aqui no meu blog) e Charles Darwin, como também o de uma obra fundamental e curiosamente pouco conhecida do público comum: As Afinidades Eletivas (relançada recentemente, em tradução de Erlon José Paschoal, pela Nova Alexandria, em edição de capa dura, mas a que possuo é a de  1992; as citações podem ser encontradas na Primeira Parte- Capítulo IV; há uma notável adaptação cinematográfica do livro feita pelos irmãos Taviani, com a grande Isabelle Hupert).

    Na citação acima, misturei as falas de vários personagens (o Capitão, Eduard, Charlotte) que estabelecem o “processo químico e orgânico” de modificação dos sentimentos de um casal nobre, devido à aparição de uma “outra determinação qualquer”, a irresistível Ottilie, a qual levará Eduard ao adultério. O extraordinário romance de Goethe (1749-1832) marca o aprofundamento da análise dos sentimentos individuais na ficção, mostrando que o absoluto não existe  nesse reino, só o relativo, e que portanto pode haver uma decomposição narrativa infinita dos seus elementos. Nem Rousseau nem Richardson, no século anterior, haviam ido tão longe.

p.s.- Apesar de estar fora do âmbito deste post, o nascimento do grande amigo de Goethe e seu maior “rival”, por assim dizer, na literatura alemã, Schiller, completa 250 anos em 2009.

    Além dos 200 anos do nascimento do profeta do Evolucionismo, temos os 150 anos da sua obra mais célebre, A Origem das Espécies, que deu origem a uma avalanche de lançamentos comemorativos (Richard Dawkins que o diga). Aliás, com relação à obra-prima de Goethe, é bom lembrar que o último capítulo da obra-prima de Darwin se chama “Afinidades mútuas entre os seres orgânicos”: “Tentei demonstrar neste capítulo que o arranjo de todos os seres orgânicos que viveram em todos os tempos em grupos subordinados a outros grupos;  que a natureza das relações que vinculassem num pequeno número de grandes classes todos os organismos vivos e extintos, por linhas de afinidades complicadas,  divergentes e tortuosas; que as dificuldades que encontram e as regras que seguem os naturalistas nas suas classificações;  que o valor que se liga aos caracteres  quando são constantes e gerais, que tenham uma importância considerável ou mesmo que não tenham nenhuma, como nos casos dos órgãos rudimentares; que a grande diferença de valor que existe entre os caracteres de adaptação ou análogos e de afinidades verdadeiras; tentei demonstrar, repito, que todas essas regras, e ainda outras análogas, são a consequência natural da hipótese do parentesco comum das formas associadas e de suas modificações pela seleção natural, junto às circunstâncias de extinção e de divergência de caracteres que determina.  Analisando esse princípio de classificação, é necessário não esquecer que o elemento genealógico foi unicamente aceito e empregado para classificar em conjunto, na mesma espécie, os dois sexos, as diversas idades e as variedades reconhecidas, seja qual for, além disso, a sua conformação. Se se estende a aplicação desse elemento genealógico, causa única conhecida das semelhanças que se verificam entre os seres organizados, compreende-se o que é necessário entender por sistema natural: é tudo um simples ensaio de coordenação genealógica em que os diversos graus de diferenças adquiridas se exprimem pelos termos variedade, espécies, gêneros, famílias, ordens e classes“…  (utilizo a tradução de Eduardo Fonseca, pela Ediouro).

     No mesmo ano, uma obra anteciparia o conteúdo de O Capital e, embora mais discretamente que a do pensador inglês, mudaria toda a nossa maneira de conceber o mundo e a história: Contribuição à Crítica da Economia Política, de Karl Marx, uma boa introdução às idéias do genial pensador prussiano, que naquele ano prosseguia em seu definitivo exílio em Londres, pensando no fim do capitalismo em pleno coração do Império.

       1859 marca também o nascimento do grande pensador francês Henri Bergson (autor do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Matéria e Memória & A evolução criadora), um dos mais influentes da primeira metade do século XX; também naquele ano nascia  o criador de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle, e a publicação, além de um dos textos mais deliciosos de Dostoiévski (A Aldeia de Stiepantchikov  e Seus Habitantes), uma jóia de humor e precisão narrativa (na minha opinião, sua melhor obra antes da grande fase iniciada com Memórias do Subsolo),  de uma das novelas mais lindas de  Tolstói, A Felicidade Conjugal (que também ganhou uma nova edição em 2009, pela 34, na tradução de Boris Schnaiderman).

     Trinta anos depois, ele anatematizará apocalipticamente a instituição do casamento (muito visada, assim como seu duplo, o adultério, pelos autores da época) em Sonata a Kreutzer. Porém, aos 31 anos, num tour – de force, ele adota o ponto-de-vista de uma jovem esposa, Macha, que se apaixona e se casa com um homem quase vinte anos mais velho. É através das impressões e reflexões de Macha que o leitor vai acompanhando uma profunda e alquímica (pensando em Afinidades Eletivas, podemos dizer que goethiana) transformação de sentimentos, mas que ocorre em filigrana: temos as diversas nuances que constituem a “realidade” dos sentimentos. O amor romântico de Macha e  Sierguei Mikhálitch morre e, como ela diz, “não tem mais força nem suculência. O que sobrou? Sobrou o amor ,  isto é, a felicidade conjugal,como conclui a narradora num dos mais belos finais já escritos: “…terminou o romance com meu marido; o sentimento antigo tornou-se uma recordação querida, algo impossível de trazer de volta, e o novo sentimento de amor aos filhos e ao pai dos meus filhos deu início a uma nova vida, de uma felicidade completamente diversa e que ainda não acabei de viver”. De Goethe a Tolstói, passando pelo grande Stendhal, os sentimentos na literatura se tornam mais interessantes que a ação romanesca, até chegarmos ao auge com Proust e seu Em Busca do Tempo Perdido.

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