« Três coisas. A primeira, ler. Não precisa ser muito, umas sessenta páginas por dia já resolvem; a segunda, escrever sobre as próprias obsessões porque delas nunca se escapa; e, terceira: nunca, mas nunca mesmo, fale a respeito do que está escrevendo—além de ser uma chatice, falar, fazer pesquisa, pensar a respeito, não é escrever. Escrever é escrever…» (E.L. Doctorow)
[uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 04 de agosto de 2015]
« Os dois amigos saíam todas as manhãs para os trechos desertos da praia, onde as dunas e o capim bloqueavam o hotel. Cavavam túneis e canais para a água do mar, muralhas, bastiões e moradias com degraus. Construíam cidades, rios e canais […] À tarde brincavam à vista dos guarda-sóis de praia, recolhiam gravetos e conchinhas, caminhando devagar com o bebê negro espalhando água atrás deles, na orla das ondas»[1].
A passagem acima, de Ragtime (1975), reúne a ambígua inocência possível do cadinho étnico levantado pelo recém-falecido E.L. Doctorow em seu livro mais famoso: temos um bebê negro, uma menina judia e um rapazote anglo-saxão (os “dois amigos”).
Para se chegar a essa cena idílica (e tão precária), os rumos de três famílias cavaram túneis em meio ao racismo desenfreado, à violência policial à miséria dos imigrantes, à exploração do trabalho, aos avanços tecnológicos do início do século passado (Henry Ford, personagem da narrativa, cria a linha de montagem), ao capitalismo financeiro que sobrepujará a chamada modernidade “pesada” representada pela indústria e pelo estado-nação, tornando-a “líquida”, até mesmo volátil (o americano mais poderoso, J.P. Morgan «atravessava todas as fronteiras e estava à vontade em qualquer parte do mundo, um monarca do invisível, transnacional reino do capital, dominando recursos que tornavam insignificantes fortunas reais»), à sociedade do espetáculo.
O bebê negro é enterrado vivo no quintal da casa dos brancos, uma família conhecida por designações genéricas (Papai, Mamãe, Vovô, Irmão Mais Novo de Mamãe, Menino), e salvo por Mamãe[2], que acolherá também Sarah, que tentou matar o próprio filho. O pai aparece: Coalhouse Walker Jr., tocador de ragtime e proprietário de um carro, despertando a truculência invejosa de um grupo de bombeiros voluntários (de origem irlandesa). Vandalizado seu veículo, Coalhouse precipitará seu destino e o de Sarah na tragédia, ao tentar uma reparação, primeiro judicialmente; depois, através do terrorismo (é bom lembrar que a prosperidade de Papai vem da fabricação de artefatos patrióticos, incluindo fogos de artifício).
Nesse ínterim, o pai da menina, Tateh (judeu socialista, contudo arraigado a um férreo chauvinismo machista), após renegar a esposa (que, para ajudar o difícil sustento da família, se entregou a um cliente) e as tentações oferecidas por Evelyn Nesbit, causadora do crime mais escandaloso dessa época pré-1914[3] (seu marido assassina o renomado arquiteto Stanford White por ciúme), atravessa os EUA tentando proteger, em vão, a filha da corrupção do Novo Mundo, e nesse périplo metamorfoseia-se em empreendedor bem-sucedido na nascente indústria cinematográfica.
Doctorow já escrevera belos romances antes (O Livro de Daniel, 1971[4]) e ainda produziria outros depois dessa obra-prima, caso de A Grande Feira (World´s Fair, 1985), A Marcha (2005) e seu outro livro muito querido e premiado, Billy Bathgate (1989)[5]. Em todos, demonstrou ser um poeta-arqueólogo das mentalidades de períodos históricos bem recortados, embaçando as fronteiras entre o visionarismo literário e a exatidão factual com um virtuosismo que faz dele um dos maiores prosadores pós-Segunda Guerra.
No entanto, é preciso admitir que alguma bruxaria genial em ação, em meados dos anos 1970, para que ele encontrasse a fórmula mágica que dá tanta vida a Ragtime: a interpenetração da densidade e mistério de vidas anônimas a um mundo de manchetes e noticiários sobre celebridades (Houdini, o mágico[6], Freud e Jung, a anarquista Emma Goldman, a própria Evelyn Nesbit, primeira “deusa do sexo” da indústria cultural, cujo rastro foi seguido por Rita Hayworth, Marilyn Monroe, entre tantas outras), o panorâmico e o minimalista encontrando-se em estado de idílio ficcional, tanto quanto as crianças do trecho de abertura (e, nesse sentido, nada precário: quarenta anos depois, ainda é um feito. E inimitável.
NOTAS
[1] Em todas as citações de Ragtime utilizo a tradução de Áurea Weissenberg, editada pela Record, pela Abril Cultural, pelo Círculo do Livro e, mais recentemente, pela Bestbolso.
[2] Na soporífera versão cinematográfica de Milos Forman (a qual, pelo menos, utiliza a esplêndida música evocada pelo livro), muito frustrante, Mamãe e Papai roubam a cena, a meu ver, em maravilhosas interpretações de Mary Steenburgen e James Olson, embora os maiores elogios tenham sido para Mandy Patinkin (Tateh).
[3] O que sempre me fez pensar no romance de Doctorow como o equivalente americano de A montanha mágica, de Thomas Mann.
[4] Mas sua estreia, Welcome to Hard Times(1960), traduzido—também por Áurea Weissenberg—como Tempos Difíceis, é digna de nota. Aliás, ganhou uma competente versão cinematográfica, estrelada pelo grande Henry Fonda e dirigida por Burt Kennedy, em 1967 (no Brasil, O homem com a morte nos olhos). Diga-se de passagem, Sidney Lumet realizou uma brilhante versão do Livro de Daniel em 1983, com atuações fantásticas, especialmente a de Lindsay Crouse.
[5] E tão mal filmado (em 1991, por Robert Benton, que desperdiçou um maravilhoso roteiro) quanto Ragtime.
Sou obrigado a confessar que, embora goste do romance, achei exagerados os arrulhos em torno dele. Mesmo assim, sempre há o que gostar nos textos de Doctorow, até em suas realizações menos felizes, caso de Loon Lake- O lago da solidão (1980) e City of God- Deus: um fracasso amoroso (2000) —a respeito deste último, VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2013/03/25/a-cidade-de-deus-de-doctorow-um-fracasso-amoroso-de-leitura/
[6] O qual se angustia pela apropriação midiática do conceito de espetáculo (a vida como reality show) e consequente apagamento do triunfo artístico:
«Havia um espetáculo que utilizava o mundo real como palco e a este ele não conseguia alcançar. Apesar de todas as suas realizações, era um vigarista, um ilusionista, um simples mágico. Que sentido teria a sua vida se as pessoas ao saírem do teatro o esquecessem? As manchetes dos jornais diziam que Peary chegara ao Polo. Eram os feitos da vida real que ingressavam nos livros de História… »