

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em oito de janeiro de 2002)
A editora 34 lançou nova tradução de Crime e Castigo. A Ediouro, por sua vez, veicula mais uma vez (e com sucesso, segundo os livreiros) a já conhecida versão de Natália Nunes & Oscar Mendes para outro clássico dostoiévskiano, Os Irmãos Karamázov (dessa vez tiraram o “i” que tradicionalmente fazia parte do título, seguindo o original russo, de 1880, Brátia Karamázovi).
É um volume gigante, com uma capa que chama a atenção, papel de boa qualidade, mas com vários problemas: apesar de haver uma preparadora de originais, uma responsável pelo copidesque e duas revisoras, o leitor se defronta com inúmeros erros,que muitas vezes atrapalham a compreensão (Ivan diz a Aliócha que está na região há “quatro anos”, quando na verdade só está há “quatro meses”) e que já devem vir acompanhando (mas para quê, então, tanta gente na equipe, se não fizeram nada?) as edições de uma tradução complicada, que ainda contém um forte sabor lusitano (por essa razão, sempre preferi—aliás, acho-a não só inegavelmente melhor, como também maravilhosa (opinião não muito compartilhada, devo dizer)—a de Rachel de Queiroz, publicada pela José Olympio e feita a partir da versão francesa)[1].
Na página 718, no final da defesa do advogado de Mítia Karamázov, aparece até um trecho enorme de um capítulo anterior. Isso sem contar as discrepâncias incômodas entre as duas traduções: numa, os fatos ocorreram há “treze anos”; noutra, há “trinta”!!!???
Mesmo com todos esses percalços, a releitura de Os Irmãos Karamázov reiterou o óbvio: é o maior romance do século XIX, junto com Guerra e Paz. Se Crime e Castigo era o Hamlet do grande autor russo, a história dos Karamázov, com seu conflito de gerações, é o seu Rei Lear; por ter um grupo de personagens como protagonistas (embora o narrador insista no fato de que Aliócha é o herói da narrativa, por ser o elemento “positivo” da trama, aquele que aprende com os erros alheios e os próprios), e por se passar numa cidadezinha provinciana, longe da esfera de Petersburgo—a qual domina boa parte da obra dostoiévskiana, o livro se aproxima mais de outro Dostoiévski supremo, Os Demônios; além disso, ambos têm um narrador ambíguo e discutível —em termos literários, com relação à construção do ponto-de-vista narrativo—, que se apresenta como alguém da cidade, um cronista, que meramente acompanhou os fatos, mas que possui o poder da onisciência divina: sabe até o que os outros pensam e sentem.
Na cidadezinha de Skotoprigonievski, Fiódor Karamázov vê, de repente, todos os filhos à sua volta, embora nunca tenha ligado para nenhum deles, após a morte das duas esposas: Mítia, com o qual disputa os favores de Gruchenka (e, por essa razão, é ameaçado de morte pelo filho diversas vezes, principalmente quando ele sabe que o pai fica esperando por elas todas as noites), Ivan e Aliócha.
O que define os Karamázov (e Aliócha se salva por causa do exemplo do “stáretz” Zózima, homem santo cuja vida ocupa um dos inúmeros desvios narrativos do romance) é a voracidade, a avidez sem limites, que faz com que eles toquem os limites da condição humana e sintam que só podem se redimir pelo sofrimento (é o que diz Mítia, ao ser preso: “Quero sofrer e redimir-me pelo sofrimento”).


Ivan é como Raskólnikov (de Crime e Castigo): desenraizado, dominado por teorias racionalistas e niilistas, cujo sofrimento é estéril (porém comovente, leia-se o capítulo “A Revolta”), ao contrário do de Aliócha, o qual consegue se ligar ao povo e ser amado por ele (isso fica claro num capítulo suprimido na edição da Ediouro, mas que está na da José Olympio: o julgamento de Aliócha por executar a fuga de Mítia e sua absolvição aclamada pela audiência lotada).
Não é à toa que Ivan, prestes a ficar louco, receba uma das duas visitas mais famosas que o Diabo fez até hoje na alta ficção (a outra é feita a Adrian Leverkühn, em Doutor Fausto, de Thomas Mann). A fórmula decorrente da postura de Ivan, “se Deus não existe, tudo é permitido”, leva o bastardo Smerdiákov, invejoso e cruel (vivendo como cozinheiro na casa de seu provável pai), a se julgar autorizado para executar o parricídio.
Assim, Dostoiévski radicaliza e complica o problema do crime, que já era central em Crime e Castigo: desta vez, o personagem possuído por teorias destrutivas não executa o crime, mas é o seu mentor intelectual. O parricídio, crime primordial, é atribuído a Mítia, o mais provável suspeito, que é preso, julgado e condenado, numa seqüência narrativa admirável.


Esbanjando seus recursos como ficcionista, certamente consciente de que atingia o auge da sua obra, Dostoiévski dissemina mil ironias, que ampliam seu drama familiar para um painel imenso: enquanto o padre Fierapont, um religioso fanático, inimigo do “stáretz” Zózima, vê em todos os lugares diabinhos, que ele supostamente “esmaga”, o Senhor do Mal age livremente em meio aos incrédulos (como Ivan) e até entre moças aparentemente inocentes (é caso de Lisa, apaixonada por Aliócha, uma das personagens mais estranhas de Dostoiévski, não obstante TODAS as mulheres do livro apresentarem um comportamento dúbio).
Até em meio a uma aparente ramificação secundária da trama, onde aparece um grupo de meninos que se apega a Aliócha, o livro aprofunda um dos seus temais centrais: a tragédia que é a cisão entre pensar e sentir. O menino Kótia já é um pequeno ideólogo, com reservas contra a pieguice e o sentimentalismo. Não estaria nele a semente de um futuro Ivan Karamázov, isto é, de futuros crimes, sem uma influência positiva? Já não se estaria preparando um drama para a próxima geração?
Otto Maria Carpeaux (que eu geralmente considero superestimado, um crítico literário discutível—e desculpem-me se invisto aqui contra o senso comum) escreveu algo interessante sobre Os Irmãos Karamázov: “É um mundo completo. Tão completo que o leitor pode viver durante anos dentro dos muros desse mundo sem chegar a conhecê-lo completamente, ao ponto de perder-se, às vezes, nos corredores entre os quartos escjuros e entre as celas dos monges”. Ao tentar escrever sobre esse mundo, é que nos damos conta da verdade dessas palavras.

[1] Em duas resenhas, publicadas originalmente em 13 e 20 de dezembro de 2008, comentei o lançamento de uma nova tradução.
Abaixo, o texto:
O lançamento de Os Irmãos Karamázov marca o auge das traduções que Paulo Bezerra vem realizando (diretas do russo0 da obra de Dostoiévski, já que se trata do maior romance da literatura mundial, ao lado de Guerra e Paz e Madame Bovary.
É a história de um parricídio: Fiódor Pavilovitch é assassinado e a culpa real recai sobre o filho mais velho, o desbragado Dmitri, mas os outros filhos também poderiam ter assassinado o pai: o místico Aliócha, o niilista Ivan e o bastardo Smerdiákov (uma mistura de Iago com Calibã).
Além de painel perturbador das contradições sociais da Rússia imperial, um alucinante clima simbólico perpassa Os Irmãos Karamázov, cujo objetivo é mostrar extremos da condição humana. Dois personagens reúnem-se aos Karamázov para que o livro consiga esse efeito: Grúchenka (pomo da discórdia entre o velho Karamázov e o filho) e o stárietz Zóssima, um santo homem. Através do triângulo amoroso, descortina-se o papel das pulsões sexuais. O stárietz, por sua vez, representa o dilema da espiritualidade, o salto da fé. Nem ele é poupado: quando morre, seu corpo começa a feder de forma intolerável e blasfema. Zóssima é o contraponto de Fiódor Pavlovitch para que Aliócha possa se tornar o princípio positivo do romance.
Aliás, a obra-prima suprema de Dostoiévski tornou-se um marco ao mostrar inequivocamente que nós somos porque nos confrontamos com consciências alheias, fazendo a vocação mais original do romance (enquanto gênero literário) ser a polifonia, como nos ensinou o grande compatriota do autor de Os Demônios, Mikhail Bakhtin: a estratificação da narrativa em várias vozes que se entrechocam, entredevoram-se e criam um efeito de amplitude como nunca se viu antes na milenar atividade de contar histórias.
Quando se escreve sobre Os Irmãos Karamázov nunca se deixa de ter em mente o capítulo “O Grande Inquisidor”, no qual Ivan demole as igrejas enquanto instituições, colocando-as como a grande impostura da Humanidade. A certa altura, afirma-se que o paraíso não vale uma lágrima de criança. E atinge-se, então, aquela revolta que Albert Camus considerava a mais nobre virtude do homem: “Por que entre eles não poderia aparecer nenhum sofredor, atormentado pela grande tristeza, e que amasse a humanidade? Supõe que entre esses que só desejam bens materiais e sórdidos tenha aparecido ao menos um como meu velho Inquisidor, que comeu ele mesmo raízes no deserto e desatinou tentando vencer a própria carne para se tornar livre e perfeito, mas, não obstante, depois de passar a vida inteira amando a humanidade, de repente lhe deu o estalo e percebeu que é bem reles o deleite moral de atingir a perfeição para certificar-se ao mesmo tempo de que para os milhões de outras criaturas de Deus sobrou apenas o escárnio, de que estas nunca terão condições de dar conta de sua liberdade, de que míseros rebeldes nunca virarão gigantes para construir a torre, de que não foi para esses espertalhões que o grande idealista sonhou a sua harmonia. (da resenha de 13 de dezembro)


Na semana passada, comentando a nova tradução de Os irmãos Karamázov, deu-se destaque aqui ao capítulo “O Grande Inquisidor”, que teria especial interesse em nossa época (dominada pelo pensamento e pela figura de Nietzsche, o Dostoiévski da filosofia), no qual Ivan, o mais intelectualizado dos irmãos Karamázov, demole as igrejas enquanto imposturas. Citando Nietzsche, “Deus está morto, a piedade pelos homens matou-o”. Ou seja, o cristianismo tinha desfibrado o homem, transformando-o em escravo. Mas atenção: nenhum personagem pode ser tomado como porta-voz de Dostoiévski, e no fato de declararem a morte de Deus ele via o perigo supremo, pois se o Ser Supremo, se a nossa idéia de transcendência (que permite julgar os atos terrenos), estão mortos, “tudo é permitido” e nada subsistiria: a moral, a ética, e por extensão, a existência “humana”.
Essa dilaceração entre o extremo a que se pode chegar na linha das idéias e o horror gerado por elas é um dos pontos mais fascinantes entre os muitos da obra-prima de Dostoiévski, que parece a síntese (não por acaso foi seu último livro) das várias experiências anteriores através do drama da família-título (o livro se move em torno do assassinato do pai). Temos de Crime e Castigo a idéia do “crime intelectual”, racionalizado; temos de O Idiota (talvez o mais belo entre os supremos livros dostoievskianos) a tentativa de uma existência “espiritual” no mundo contemporâneo que se revela quixotesca e só atrai desgraças; temos de Os Demônios o tom da narrativa (feita por um morador da cidade provinciana, onde se passam os acontecimentos) e as discussões ideológicas; e temos de todas elas, e mais outras tantos (como Notas do Subsolo; O Sósia, Um Jogador, por exemplo) o clima “febril”, a sensação de que mergulhamos um pouco numa alucinação. De brinde, o livro tem uma das duas visitas do Diabo mais importantes da história do romance (a outra aparece em Doutor Fausto). Pudera, tanto em Dostoiévski quanto em Mann, ele não poderia faltar em uma reflexão sobre o destino de um povo. (da resenha de 20 de dezembro)
