MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

16/11/2012

O autor como personagem: o Dostoiévski de Coetzee

  

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https://armonte.wordpress.com/2013/10/07/nos-confins-da-rarefacao-elizabeth-costello-de-j-m-coetzee/

Em 1869, Dostoiévski volta à Rússia por causa da morte (suicídio? acidente? assassinato?) do seu enteado, Pavel. Aluga o quarto onde ele estava vivendo e envolve-se com a proprietária, Anna, e a filha dela, Matryona. Ao tentar resgatar os papeis de Pavel que ficaram em poder da polícia, descobre o seu envolvimento (e também o de Matryona) com o ideólogo terrorista Nechaev; este, por sua vez, entra em contato com o grande escritor russo, apesar da perseguição da polícia.

Em O Mestre de São Petersburgo (The Master of Petersburg, 1994, traduzido por Luis Roberto Mendes Gonçalves, e que na edição da Best Seller ganhou o rebarbativo título de Dostoiévski, o mestre de São Petersburgo), o sul-africano J.M. Coetzee[1] parece ter almejado uma combinação da atmosfera de Crime e Castigo e a de Os Demônios, duas das principais obras de Dostoiévski. Será que ele conseguiu?

No começo, e até certa altura, parece que sim. É muito persuasiva a maneira como o quarte de Pavel e o “fantasma” do enteado vão se apossando de Dostoiévski, paralisando sua vontade de voltar para a Alemanha e reencontrar a esposa, fazendo com que ele tenha de se debater com a questão da paternidade (tão presente em seu universo, basta lembrar o exemplo mais óbvio, Os irmãos Karamázovi). E a técnica narrativa de Coetzee ajuda bastante a manter o interesse: ele parece convencido de que é impossível capturar a vida interior, o movimento subjetivo dos personagens, pelas palavras. O discurso do narrador atua, então, como uma câmera cinematográfica, mantendo um forte teor descritivo. Temos a sensação nítida de estar acompanhando a um filme em palavras, com aquela qualidade opaca da imagem, de só sugerir o que pode estar acontecendo intimamente com os personagens. Nesse passo da história, Anna, a senhoria, com o qual ló padrasto de Pavel estabelece uma tensa relação sexual, chega a lembrar certas personagens de José Saramago, como a Blimunda, de Memorial do Convento, ou a Joana Carda, de A Jangada de Pedra, mulheres do povo com uma sabedoria recôndita e crispada.

Por outro lado, embora a narrativa até se torne mais “dinâmica” com a entrada de Nechaev (o terrorista que tenta cooptar Dostoiévski, utilizando sua obsessão com Pavel), o livro perde sua força narrativa ao entrar no mundo conspiratório de burocracia policial, informantes e disfarces de terroristas. A trama de Coetzee aproxima-se sorrateiramente, como um informante, da lengalenga.

Quando, no final, a leitura da papelada deixada por Pavel se transforma numa espécie de arcabouço para Os Demônios, nem parece mais que estamos lendo o mesmo romance. Dostoiévski se perde com Nechaev pelas vielas de São Petersburgo (com o subversivo pretendendo mostrar a miséria russa para convencer seu interlocutor a colaborar com a Causa) e Coetzee perde o rumo da narrativa. O tom, pelo menos. Até mesmo Anna perde a qualidade saramaguiana que lhe dava certa magia e escorrega para a banalidade. O próprio Dostoiévski fica mais com cara de Barton Fink, emparedado num quarto que é, na verdade, uma metáfora da sua mente. Aliás, acontece com Coetzee o efeito irmãos Coen, criadores de Fink (e também de Miller´s Crossing): há muita ambição, muito estilo, só que nunca se chega a dizer a que se veio. O talento (inegável) é corroído pela gratuidade.

Encarando os 20 capítulos de O Mestre de são Petersburgo, pode-se dizer que ele segura as pontas até o capítulo 15, e, aos poucos, começa a ficar difuso, repetitivo, e encher linguiça. É uma pena porque, vindo de um país cuja base social estruturava-se num problema catalisador como o apartheid, que coloca todos em questão, Coetzee poderia ter a medida certa  para tratar desse mundo dostoievskiano, no qual o íntimo e o social entrelaçam-se, no qual um é a ampliação do outro.

Entretanto, sobram ainda as belas páginas que evocam os bons tempos do romance existencialista, como A Náusea: “Por que essa lenta caçada através dos campos vazios, atrás da impressão de um fantasma, o fantasma de uma impressão? Porque eu sou ele. Porque ele é eu. Alguma coisa que tento agarrar: o momento antes da extinção, quando o sangue ainda corre, o coração ainda bate. Coração, o boi fiel que mantém o moinho girando, que levanta apenas um olhar aturdido quando o machado se ergue alto, mas aceita o golpe, dobra os joelhos e expira.”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 04 de novembro de 1997)


[1] Nota de 2012; Essa foi a minha primeira leitura de um livro de Coetzee, e pouco sabia da sua produção (e prestígio). Só fui conhecer melhor seu universo alguns anos depois, já quando ele estava no estágio “Companhia das Letras”, após alguns títulos lançados pela Best Seller, entre eles o extraordinário À espera dos bárbaros.

O AUTOR COMO PERSONAGEM: UM JOGADOR CHAMADO DOSTOIÉVSKI

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de fevereiro de 2005)

“…havia uma carta endereçada a Anna Grigórievna contendo cem rublos…agora eles iriam poder pagar o que deviam à senhoria, sem precisar mais se esconder dela, e resgatar o broche, os brincos, as alianças e os outros objetos e, finalmente, ir embora desse lugar maldito. Decidiram partir no dia seguinte, e assim que chegaram em casa Anna Grigórievna começou a fazer as malas, enquanto Fédia saiu para trocar o dinheiro e resgatar o broche, os brincos e as alianças …”

Quem leu Um jogador, de Dostoievski, ou quem simplesmente gosta de literatura, não pode deixar de ler o esplêndido Verão em Baden-Baden (1981), de Leonid Tsípkin, pequeno romance que faz o leitor vivenciar, como se estivesse ao lado dele, o vício de jogar do próprio Dostoiévski, o Fédia do trecho acima, cujo desenlace é o seguinte: “Fédia apareceu justamente nessa hora –estava pálido e caiu a seus pés, como de costume, dizendo que havia perdido o dinheiro que Anna Grigórievna lhe confiara…era preciso salvar o dinheiro que restava…”.

Acompanhamos Fédia arrastando sua esposa por diversas cidades da Europa, tentando “fazer um capital” com o jogo em Baden-Baden, sentindo-se enganado pelos senhorios e serviçais alemães, o casal cada vez mais maltrapilho, penhorando até suas poucas roupas melhores, e o autor de livros supremos oscilando entre a exaltação e a mortificação, com um amor-próprio doentio, ao ponto dos atos mais infantis, mas com uma capacidade de se auto-diagnosticar impressionante, indo e vindo febrilmente do cassino para a pensão, da pensão para os passeios habituais dos veranistas (onde ele e a esposa fazem triste figura), e daí novamente para o cassino. E seu confronto humilhante com seus competidores literários, Turgueniêv e Gontchárov, a quem enfrenta no campo das idéias, porém sempre com um travo amargo no plano social (o porteiro do hotel de Turgueniêv barra sua passagem, Gontchárov coloca  com soberba em suas mãos moedas de ouro que ele imediatamente perde na roleta).

E o mistério de toda relação: por que Anna Grigórievna persistiu nesse casamento ? Aliás, por que casou com ele ? Como se sabe, ela a princípio era secretária dele, que ditava suas obras para cumprir prazos de entrega com maior rapidez (portanto, já havia dívidas, já havia o vício, já havia todo um mundo familiar conspiratório e complicado).

No final, o narrador, judeu, não consegue entender seu amor avassalador por esse autor tão anti-semita, embora praticamente tenha solucionado a questão ao fazer de Fédia um personagem dostoievskiano, atingindo toda a gama de sentimentos humanos, até os mais “feios”, os mais ridículos.

O que fica difícil de explicar é a magia da narrativa de Verão em Baden-Baden. Feita sob o signo do deslocamento (além da perambulação de cidade em cidade do casal Dostoiévski, o fio condutor é uma viagem de trem do narrador), no tempo e no espaço, ela se fundamenta toda na relutância em usar pontos finais: um travessão se abre, e outro e mais outro, e aí um  momento da vida de Fédia e Anna, ou do narrador, se abre, e assim somos levados a viajar no ritmo e na intensidade dessas vidas, de uma forma que nenhuma biografia linear conseguiria.

No prefácio ao livro, Susan Sontag nos conta que Tsípkin nunca conseguiu publicar nada em vida. Ele escrevia para “a gaveta”. E ela acrescenta: “para a literatura propriamente dita”. O que pode ser uma frase retórica, de efeito, mas que dá o que pensar em alguns casos, como no de Tsípkin. Ao nos fazer viajar, por menos de 200 páginas, na essência da vida de um gênio como Dostoiévski, realmente ele  atingiu o que só a verdadeira literatura consegue: “Mais vida, em um tempo ilimitado”.

10/12/2011

A INSPIRADA TRADUÇÃO DE UM DOSTOIÉVSKI MOLIÈRESCO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de janeiro de 2002)

Ainda mais uma vez, Dostoiévski, leitor. Nas últimas semanas, comentei o reaparecimento nas livrarias dos seus dois livros mais famosos, Crime e Castigo & Os Irmãos Karamázov. Coube á tradutora Klara Gouriánova e à Nova Alexandria tirar o quase desconhecido A aldeia de Stiepântchikov e seus habitantes do limbo das Obras Completas (tanto da José Olympio quanto da Nova Aguilar), possibilitando um destaque maior um texto delicioso que passara até então despercebido (pelo menos por mim) em meio à “primeira fase” do grande autor russo.

Serioja, o narrador de A aldeia de Stiepântchikov, mora em Petersburgo e recebe um estranho pedido de seu tio viúvo (que o sustenta), Iégor Ilitch: casar-se com Nástienka, a preceptora de seus filhos. Por isso, vai a Stiepântchikov e descobre que a casa do tio virou uma “arca de Noé”.

Iégor Ilitch é oprimido pela mãe, a Generala, e seus agregados, e todos são tiranizados por uma figura insólita, grotesca, molièriana, e literariamente inesquecível: Fomá Fomitch, homenzinho insignificante e recalcado que é tratado como uma sumidade, sempre a gritar “estão me ofendendo, estão me ofendendo” (e que mesmo aparecendo pessoalmente só na página 86 é o centro da narrativa). Um exemplo da liderança de Fomá na casa do tio de Serioja: decreta que a 5ª. Feira seja tomada como 3ª. Feira.

Por que o tio permite esse estado de coisas? Homem bom e ingênuo, submete-se à mãe louca e ao degenerado Fomá porque “não sei ainda que falta exatamente cometi, mas, sem dúvida, sou culpado”. Iégor Ilitch, na verdade, ama a preceptora, perseguida por Fomá e a Generala, os quais planejam o casamento dele com a esdrúxula Tatiana Ivanovna (a qual é raptada por outro, e é chamada por Serioja de “a verdadeira heroína da história”).

Já se disse que a diferença entre tragédia e comédia reside no fim, pois os elementos são os mesmos (quem leu Romeu e Julieta e Sonho de uma noite de verão perceberá isso muito bem). Em A aldeia de Stiepântchikov, encontramos as mesmas situações intoleráveis e degradantes que povoam os grandes romances dostoievskianos, ou mesmo textos anteriores, como O sósia (ou O duplo, conforme a tradução). Só que a ênfase é no humor e o autor segue a máxima da comédia shakesperiana: “tudo é bom quando acaba bem”. Ou seja, estamos no mundo de Sonho de uma noite de verão, não de Romeu e Julieta.

Para o leitor brasileiro, há um charme extra e irresistível. Klara Gouriánova deu à sua versão um inconfundível sabor machadiano, aproveitando-se magistralmente das similaridades temáticas e narrativas entre o gênio russo e o gênio brasileiro.

Além dos agregados e parasitas que vivem (e fazem intrigas) em torno do tio de Serioja, há as deliciosas conversas do narrador com o leitor, que fazem com que nos lembremos do autor de Dom Casmurro: “antes que eu prossiga minha história, permita-me, querido leitor, que eu lhe apresente nominalmente todo aquele círculo de pessoas no qual fui parar”. Ou ainda: “Quanta atenção o leitor dará a ele não vou dizer: é mais conveniente e mais oportuno que o próprio leitor resolva essa questão”.

Outro prazer perverso é embarcar na malícia do narrador, como na caracterização da “relutância” da Generala em se mudar para a casa do filho, ao ficar viúva: “Rodeada de seus agregados, de seus cachorrinhos, ela dizia, entre soluços e gritinhos, que preferia comer pão duro, regado, é claro, com suas lágrimas, que preferia andar com uma bengala, pedindo esmola debaixo das janelas, a aceitar o pedido do filho desobediente para morar com ele em Stiepântchikov, que nunca, nunca poria os pés na casa dele! (…) É preciso notar que durante esses gritinhos, já devagarinho estavam se fazendo as malas para a mudança.”

     Nesse texto de 1859, Dostoiévski também já domina o dinamismo teatral com o qual constrói suas tramas: o diálogo é um elemento de destaque e o histrionismo dos personagens (e são bem marcantes vários deles) pode se exercitar à vontade nas grandes cenas armadas pelo autor-encenador.

Alguns erros de revisão atrapalham o inspirado trabalho da tradutora. Algumas passagens ficam incompreensíveis, como na página 70, quando Serioja, que acabou de ridicularizar o tio, percebe a censura no olhar de Nástienka: “…um rubor de indignação inflamou suas pálidas faces… com aquele meu baixo e pusilânime desejo de expor meu tio ao ridículo para eu mesmo parecer menos ridículo, ganhei muito da simpatia dessa moça…” ???!!! Será que não há uma “deixa” indicando que o final do trecho, absurdo, é uma ironia?

Volta e meia o leitor se depara com trechos contraditórios assim, e na página 206 há até um erro de concordância: “ele [Fomá] vai fazer os donos sair da casa”, não muito admissível porque não é um dos criados (pois o modo de falar deles é cuidadosamente registrado) quem afirma isso, e sim o senhor Bakhtchéiev (um dos grandes personagens secundários do romance).

Para usar o velho clichê, se o leitor está procurando uma obra de ficção para se divertir durante as férias, não poderia encontrar nada melhor do que  A aldeia de Stiepântchikov e seus habitantes.

09/12/2011

EM ROLETEMBURGO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 04 de fevereiro de 2003)

É impressionante como várias editoras estão publicando obras de Dostoiévski e como estas ainda vendem bastante. Neste ano de 2003 mesmo, entre os lançamentos figuram novas edições de O idiota e de O JOGADOR  (comentado —aqui— na tradução de Moacir Werneck de Castro), sendo este último particularmente apropriado para uma época onde tanta gente “comum” investe seu tempo e dinheiro no bingo.

Dostoiévski já tinha há anos a idéia de um romance sobre o vício do jogo, do qual ele mesmo era vítima. Apesar disso, a forma que tomou O JOGADOR, escrito em poucas semanas (num período em que ele terminava Crime e Castigo, portanto já estamos na sua grande fase), em 1866, aconteceu porque seu editor o pressionou para entregar um romance pronto dentro de determinado prazo. Isso explica a evidente pressa que marca o andamento do texto (cujos elementos demandariam talvez um vagar maior) e algumas discrepâncias da história. Há até passagens que parecem, num primeiro momento, cochilos do excelente tradutor, como na página 136, onde se lê: “não a encontrara nem uma vez depois do incidente”, contudo parece ser um engano do próprio autor, uma vez que na tradução de Oscar Mendes (nas Obras Completas da Aguilar), pode-se ler: “nem uma vez lhe havia dirigido a palavra depois do incidente” (na edição da José Olympio, Costa Neves parece ter corrigido por sua conta o deslize).

O resultado final de O JOGADOR ficou um pouco estranho: boa parte do tempo aprece uma daquelas histórias curtas, jocosas e humorísticas do tipo A aldeia de Stiepântchikov e seus habitantes; perto do final, entra no clima delirante, abeirando-se do trágico—que não se consuma aqui, mas é o tom que permeia O idiota, por exemplo.

Apesar do título, o narrador-protagonista, Aleksei Ivanovitch, só mergulha no mundo do jogo no capítulo 14 (num total de 17), de modo irreversível, ao que parece. Dostoiévski escapa daquele didatismo naturalista que sempre empana um pouco as histórias sobre vícios e que detalham sua gênese e seus momentos críticos, seja o alcoolismo, sejam as drogas ou outra coisa qualquer, como Farrapo humano, Diário de um adolescente e um vasto etc.

Antes de Aleksei tornar-se jogador, sua narrativa concentra-se na pequena comédia humana em que está envolvido, em Roletemburgo (a qual representa as estações de água onde se pratica a roleta, como Baden Baden ou Wiesbaden), agregado (como preceptor) ao clã de um General arruinado, explorado por gananciosos franceses (a visão xenófoba de Dostoiévski fica bem clara na caracterização de certos personagens não-russos). Todos aguardam a notícia da morte da “babulinka” Antonida Vassilievna, a vovó rica da família.

As pequenas conspirações em torno do General só ganham importância para Aleksei na medida em que envolvem sua enteada, Polina, por quem é apaixonado e que é a típica representante de uma categoria marcante de mulheres no universo dostoievskiano: meio histérica, dúbia, destrutiva e destruidora. Por sua casa, Aleksei se  comporta de modo absurdo, muitas vezes degradante, como se vivesse em estado febril e dissociativo, uma atmosfera que desde O sósia (1848) vai caracterizar o herói típico do grande escritor russo.

As coisas tomam um rumo burlesco quando ao invés de um telegrama anunciando seu esperado “passamento”, aparece em Roletemburgo a “babulinka” em pessoa, a qual, durante dias, joga obstinadamente, perdendo cem mil rublos, acompanhada muitas vezes por Aleksei, que dessa maneira faz o seu aprendizado como futuro jogador. Tirando os capítulos finais, nos quais toda a paixão pelo jogo é descrita com  minúcias admiráveis, a intervenção dessa extraordinária senhora é o grande achado de O JOGADOR e permite, ao leitor, aproveitar o Dostoiévski humorístico, tão fantástico quanto o Dostoiévski trágico. Talvez o romance não tenha saído como ele queria e sonhava. Talvez seja mesmo um livro “menor”. Se essa é uma parcela pequena do gênio do seu autor, na roleta da literatura seria considerada uma fortuna para qualquer outro.

(em 05 de fevereiro de 2005, em A TRIBUNA de Santos, foi publicada a resenha abaixo, a qual reproduzo “enxugada” das passagens que repetem informações do texto acima):

A editora 34 continua firme com as obras de Dostoiévski (1821-1881), e por isso podemos contar novamente com a versão de Boris Schnaiderman para UM JOGADOR[1], já publicada há muito tempo, e onde se contraria, com seu uso do artigo indefinido, a tendência geral em que o título fica mesmo O jogador (é o caso da tradução, também recentemente relançada, de Moacir Werneck de Castro). Isso dá um ar ainda mais universal à pequena tragicomédia do protagonista-narrador, Aleksei Ivanovitch.

Dostoiévski era vítima do vício da roleta e escreveu o pequeno romance às pressas para cumprir prazos de entrega assumidos com seu editor. O resultado final acabou meio dividido, híbrido: boa parte do tempo parece pertencer a um filão recorrente nas suas primeiras obras; aproximando-se do final, entra num clima quase trágico. Comédia de erros se transforma em O mercador de Veneza.

Aléksei Ivanovitch  leva quatorze capítulos para descer ao inferno do jogo (…)

E, de repente, “baboulinka” irrompe em Roletembergo muito viva, roubando a cena, jogando dias e dias obstinadamente, lançando fora cem mil rublos: “Ela trocara sucessivamente todos os seus valores, apólices de cinco por cento, títulos de dívida interna e ações. Cheguei a admirar-me de como ela suportava ficar na cadeira aquelas sete a oito horas, quase sem se afastar da mesa, mas Potapitch contou que, por umas três vezes, ela realmente começara a ganhar muito, e, entusiasmada novamente com a esperança, não conseguira mais afastar-se dali. Aliás, os jogadores sabem como uma pessoa pode passar quase vinte e quatro horas sentada com um baralho, sem desviar os olhos das cartas”.

A intervenção dessa extraordinária senhora continua a ser, para mim, o achado maior de UM JOGADOR, embora a intensidade dos capítulos finais, nos quais a paixão por jogar é descrita, seja algo de definitivo quanto ao tema.

E após toda a discussão a respeito do fechamento dos bingos que envolveu o país, nada mais atual.


[1] No meu exemplar da José Olympio, como tradutor consta Costa Neves, mas Schnaidermann afirma que a tradução lançada nas “Obras Completas” é dele, e não há motivo para duvidar.

07/12/2011

A CONDIÇÃO HUMANA: “Os irmãos Karamázov”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em oito de janeiro de 2002)

A editora 34 lançou nova tradução de Crime e Castigo. A Ediouro, por sua vez, veicula mais uma vez (e com sucesso, segundo os livreiros) a já conhecida versão de Natália Nunes & Oscar Mendes para outro clássico dostoiévskiano, Os Irmãos Karamázov (dessa vez tiraram  o “i” que tradicionalmente fazia parte do título, seguindo o original russo, de 1880, Brátia Karamázovi).

É um volume gigante, com uma capa que chama a atenção, papel de boa qualidade, mas com vários problemas: apesar de haver uma preparadora de originais, uma responsável pelo copidesque e duas revisoras, o leitor se defronta com inúmeros erros,que muitas vezes atrapalham a compreensão (Ivan diz a Aliócha que está na região há “quatro anos”, quando na verdade só está há “quatro meses”) e que já devem vir acompanhando (mas para quê, então, tanta gente na equipe, se não fizeram nada?) as edições de uma tradução complicada, que ainda contém um forte sabor lusitano (por essa razão, sempre preferi—aliás, acho-a não só inegavelmente melhor, como também maravilhosa (opinião não muito compartilhada, devo dizer)—a de Rachel de Queiroz, publicada pela José Olympio e feita a partir da versão francesa)[1].

Na página 718, no final da defesa do advogado de Mítia Karamázov, aparece até um trecho enorme de um capítulo anterior. Isso sem contar as discrepâncias incômodas entre as duas traduções: numa, os fatos ocorreram há “treze anos”; noutra, há “trinta”!!!???

Mesmo com todos esses percalços, a releitura de Os Irmãos Karamázov reiterou o óbvio: é o maior romance do século XIX, junto com Guerra e Paz. Se Crime e Castigo era o Hamlet do grande autor russo, a história dos Karamázov, com seu conflito de gerações, é o seu Rei Lear;  por ter um grupo de personagens como protagonistas (embora o narrador insista no fato de que Aliócha é o herói da narrativa, por ser o elemento “positivo” da trama, aquele que aprende com os erros alheios e os próprios), e por se passar numa cidadezinha provinciana, longe da esfera de Petersburgo—a qual domina boa parte da obra dostoiévskiana, o livro se aproxima mais de outro Dostoiévski supremo, Os Demônios; além disso, ambos têm um narrador ambíguo e discutível —em termos literários, com relação à construção do ponto-de-vista narrativo—, que se apresenta como alguém da cidade, um cronista, que meramente acompanhou os fatos, mas que possui o poder da onisciência divina: sabe até o que os outros pensam e sentem.

Na cidadezinha de Skotoprigonievski, Fiódor Karamázov vê, de repente, todos os filhos à sua volta, embora nunca tenha ligado para nenhum deles, após a morte das duas esposas: Mítia, com o qual disputa os favores de Gruchenka (e, por essa razão, é ameaçado de morte pelo filho diversas vezes, principalmente quando ele sabe que o pai fica esperando por elas todas as noites), Ivan e Aliócha.

O que define os Karamázov (e Aliócha se salva por causa do exemplo do “stáretz” Zózima, homem santo cuja vida ocupa um dos inúmeros desvios narrativos do romance) é a voracidade, a avidez sem limites, que faz com que eles toquem os limites da condição humana e sintam que só podem se redimir pelo sofrimento (é o que diz Mítia, ao ser preso: “Quero sofrer e redimir-me pelo sofrimento”).

Ivan é como Raskólnikov (de Crime e Castigo): desenraizado, dominado por teorias racionalistas e niilistas, cujo sofrimento é estéril (porém comovente, leia-se o capítulo “A Revolta”), ao contrário do de Aliócha, o qual consegue se ligar ao povo e ser amado por ele (isso fica claro num capítulo suprimido na edição da Ediouro, mas que está na da José Olympio: o julgamento de Aliócha por executar a fuga de Mítia e sua absolvição aclamada pela audiência lotada).

Não é à toa que Ivan, prestes a ficar louco, receba uma das duas visitas mais famosas que o Diabo fez até hoje na alta ficção (a outra é feita a Adrian Leverkühn, em Doutor Fausto, de Thomas Mann). A fórmula decorrente da postura de Ivan, “se Deus  não existe, tudo é permitido”, leva o bastardo Smerdiákov, invejoso e cruel (vivendo como cozinheiro na casa de seu provável pai), a se julgar autorizado para executar o parricídio.

Assim, Dostoiévski radicaliza e complica o problema do crime, que já era central em Crime e Castigo: desta vez, o personagem possuído por teorias destrutivas não executa o crime, mas é o seu mentor intelectual. O parricídio, crime primordial, é atribuído a Mítia, o mais provável suspeito, que é preso, julgado e condenado, numa seqüência narrativa admirável.

Esbanjando seus recursos como ficcionista, certamente consciente de que atingia o auge da sua obra, Dostoiévski dissemina mil ironias, que ampliam seu drama familiar para um painel imenso: enquanto o padre Fierapont, um religioso fanático, inimigo do “stáretz” Zózima, vê em todos os lugares diabinhos, que ele supostamente “esmaga”, o Senhor do Mal age livremente em meio aos incrédulos (como Ivan) e até entre moças aparentemente inocentes (é  caso de Lisa, apaixonada por Aliócha, uma das personagens mais estranhas de Dostoiévski, não obstante TODAS as mulheres do livro apresentarem um comportamento dúbio).

Até em meio a uma aparente ramificação secundária da trama, onde aparece um grupo de meninos que se apega a Aliócha, o livro aprofunda um dos seus temais centrais: a tragédia que é a cisão entre pensar e sentir. O menino Kótia já é um pequeno ideólogo, com reservas contra a pieguice e o sentimentalismo. Não estaria nele a semente de um futuro Ivan Karamázov, isto é, de futuros crimes, sem uma influência positiva? Já não se estaria preparando um drama para a próxima geração?

Otto Maria Carpeaux (que eu geralmente considero superestimado, um crítico literário discutível—e desculpem-me se invisto aqui contra o senso comum) escreveu algo interessante sobre Os Irmãos Karamázov: “É um mundo completo. Tão completo que o leitor pode viver durante anos dentro dos muros desse mundo sem chegar a conhecê-lo completamente, ao ponto de perder-se, às vezes, nos corredores entre os quartos escjuros e entre as celas dos monges”. Ao tentar escrever sobre esse mundo, é que nos damos conta da verdade dessas palavras.


[1] Em duas resenhas, publicadas originalmente em 13 e 20 de dezembro de 2008, comentei o lançamento de uma nova tradução.

Abaixo, o texto:

O lançamento de Os Irmãos Karamázov marca o auge das traduções que Paulo Bezerra vem realizando (diretas do russo0 da obra de Dostoiévski, já que se trata do maior romance da literatura mundial, ao lado de Guerra e Paz e Madame Bovary.

É a história de um parricídio: Fiódor Pavilovitch é assassinado e a culpa real recai sobre o filho mais velho, o desbragado Dmitri, mas os outros filhos também poderiam ter assassinado o pai: o místico Aliócha, o niilista Ivan e o bastardo Smerdiákov (uma mistura de Iago com Calibã).

Além de painel perturbador das contradições sociais da Rússia imperial, um alucinante clima simbólico perpassa Os Irmãos Karamázov, cujo objetivo é mostrar extremos da condição humana. Dois personagens reúnem-se aos Karamázov para que o livro consiga esse efeito: Grúchenka (pomo da discórdia entre o velho Karamázov e o filho) e o stárietz Zóssima, um santo homem. Através do triângulo amoroso, descortina-se o papel das pulsões sexuais. O stárietz, por sua vez, representa o dilema da espiritualidade, o salto da fé. Nem ele é poupado: quando morre, seu corpo começa a feder de forma intolerável e blasfema. Zóssima é o contraponto de Fiódor Pavlovitch para que Aliócha possa se tornar o princípio positivo do romance.

Aliás, a obra-prima suprema de Dostoiévski tornou-se um marco ao mostrar inequivocamente que nós somos porque nos confrontamos com consciências alheias, fazendo a vocação mais original do romance (enquanto gênero literário) ser a polifonia, como nos ensinou o grande compatriota do autor de Os Demônios, Mikhail Bakhtin: a estratificação da narrativa em várias vozes que se entrechocam, entredevoram-se e criam um efeito de amplitude como nunca se viu antes na milenar atividade de contar histórias.

Quando se escreve sobre Os Irmãos Karamázov nunca se deixa de ter em mente o capítulo “O Grande Inquisidor”, no qual Ivan demole as igrejas enquanto instituições, colocando-as como a grande impostura da Humanidade. A certa altura, afirma-se que o paraíso não vale uma lágrima de criança. E atinge-se, então, aquela revolta que Albert Camus considerava a mais nobre virtude do homem: “Por que entre eles não poderia aparecer nenhum sofredor, atormentado pela grande tristeza, e que amasse a humanidade? Supõe que entre esses que só desejam bens materiais e sórdidos tenha aparecido ao menos um como meu velho Inquisidor, que comeu ele mesmo raízes no deserto e desatinou tentando vencer a própria carne para se tornar livre e perfeito, mas, não obstante, depois de passar a vida inteira amando a humanidade, de repente lhe deu o estalo e percebeu que é bem reles o deleite moral de atingir a perfeição para certificar-se ao mesmo tempo de que para os milhões de outras criaturas de Deus sobrou apenas o escárnio, de que estas nunca terão condições de dar conta de sua liberdade, de que míseros rebeldes nunca virarão gigantes para construir a torre, de que não foi para esses espertalhões que o grande idealista sonhou a sua harmonia. (da resenha de 13 de dezembro)

Na semana passada, comentando a nova tradução de Os irmãos Karamázov, deu-se destaque aqui ao capítulo “O Grande Inquisidor”, que teria especial interesse em nossa época (dominada pelo pensamento e pela figura de Nietzsche, o Dostoiévski da filosofia), no qual  Ivan, o mais intelectualizado dos irmãos Karamázov, demole as igrejas enquanto imposturas. Citando Nietzsche, “Deus está morto, a piedade pelos homens matou-o”. Ou seja, o cristianismo tinha desfibrado o homem, transformando-o em escravo. Mas atenção: nenhum personagem pode ser tomado como porta-voz de Dostoiévski, e no fato de declararem a morte de Deus ele via o perigo supremo, pois se o Ser Supremo, se a nossa idéia de transcendência (que permite julgar os atos terrenos), estão mortos, “tudo é permitido” e nada subsistiria: a moral, a ética, e por extensão, a existência “humana”.

Essa dilaceração entre o extremo a que se pode chegar na linha das idéias e o horror gerado por elas é um dos pontos mais fascinantes entre os muitos da obra-prima de Dostoiévski, que parece a síntese (não por acaso foi seu último livro) das várias experiências anteriores através do drama da família-título (o livro se move em torno do assassinato do pai). Temos de Crime e Castigo a idéia do “crime intelectual”, racionalizado; temos de O Idiota (talvez o mais belo entre os supremos livros dostoievskianos) a tentativa de uma existência “espiritual” no mundo contemporâneo que se revela quixotesca e só atrai desgraças; temos de Os Demônios o tom da narrativa (feita por um morador da cidade provinciana, onde se passam os acontecimentos) e as discussões ideológicas; e temos de todas elas, e mais outras tantos (como Notas do Subsolo; O Sósia, Um Jogador, por exemplo) o clima “febril”, a sensação de que mergulhamos um pouco numa alucinação. De brinde, o livro tem uma das duas visitas do Diabo mais importantes da história do romance (a outra aparece em Doutor Fausto). Pudera, tanto em Dostoiévski quanto em Mann, ele não poderia faltar em uma reflexão sobre o destino de um povo. (da resenha de 20 de dezembro)

06/12/2011

CRIME E CASTIGO: obra-prima polifônica, folhetim, tragédia metafísica, thriller policial, teatro, debate ideológico, drama de redenção, história edificante de superação, auto-ajuda…

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de dezembro de 2001)

“Eu não matei para obter recursos e poder… Eu simplesmente matei; matei para mim, só para mim… não era do dinheiro, Sônia, que eu precisava, quando matei; não era tanto o dinheiro que me fazia falta quanto outra coisa… Eu precisava saber de outra coisa,outra coisa me impelia naquela ocasião; eu precisava saber, e saber o quanto antes: eu sou um piolho, como todos, ou um homem? Eu posso ultrapassar ou não?  Eu ouso inclinar-me e tomar ou não? Sou uma besta trêmula ou tenho o direito de…[…]Sim, mas como matei? Aquilo lá é jeito de matar? Por acaso alguém vai matar como eu fui naquele momento? Algum dia eu te conto com eu fui. Por acaso eu matei a velhota? Foi a mim que eu matei, não a velhota! No fim das contas eu matei simultaneamente a mim mesmo, para sempre.”

Não se pode terminar o ano sem comentar um dos seus principais eventos: a tradução de Paulo Bezerra para Crime e Castigo (Prestuplenie i Nakazanie, 1866), o primeiro dos quatro romances supremos de Fiódor Dostoiévski (os outros são O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamázovi).

Não que faltassem traduções poderosas do livro, como a de Rosário Fusco (do francês) e a versão portuguesa de Natália Nunes, que são as que eu já lera integralmente. Mas o grande tradutor colocou-se o desafio monumental de enfrentar o original russo de um texto que exige uma intensidade de leitura que talvez nem mais seja possível hoje em dia.

Pois quem já leu Crime e Castigo jamais consegue esquecer determinadas cenas, fora a atmosfera toda do romance, permeada pelo assassinato da velha usurária e de sua irmã. Por exemplo, quem consegue esquecer a cena em que Raskólnikov, na primeira visita em que faz à prostituta Sônia, inclina-se até o chão e beija seus pés, dizendo: “Eu não me inclinei diante de ti, eu me inclinei diante de todo o sofrimento humano”?

Algum outro autor que não fosse um Dostoiévski conseguiria partir o coração do leitor com uma cena tão potencialmente ridícula (e, aliás, não faltam elementos “ridículos” em todos os grandes textos dostoiévskianos)?

O mesmo Raskólnikov, muito tempo depois, na Sibéria, sofre o impacto da revelação do seu amor por Sônia (a quem tratava tão mal, apesar de ela ser a “representante viva do sofrimento humano”), ao olhar pela janela do hospital da prisão: “Ela estava em pé e parecia esperar algo. Nesse momento alguma coisa cortou o coração de Raskólnikov.” E do leitor também, por mais que lute contra essa emoção quase masoquista.

E o suicídio do inesquecível vilão psicológico que é Svidrigáilov (apaixonado por Dúnia, irmã de Raskólnikov), estourando os miolos e dizendo: “Para a América!”?

E as maravilhosas cenas que envolvem  Catierina Ivánovna (madrasta de Sônia), a personagem feminina mais marcante de um livro onde não faltam personagens marcantes? A reunião de exéquias do marido dela, a sua loucura pelas ruas de Petersburgo, e a sua morte (ela é tuberculosa) são momentos indescritíveis, que mostram bem a diferença entre ler uma cena genial e comentá-la.

Como Dostoiévski pode ter criado um Raskólnikov, um Svidrigáilov, um Porfiri Pietrovitch (o funcionárilo da Justiça russa que suspeita de Raskólnikov e atormenta-o em um jogo de gato e rato) e uma Catierina Ivánovna num mesmo livro?

É engraçado haver tanta gente que lê histórias “edificantes”, de “superação” (quando não religiosas), e Crime e Castigo, essa obra-prima da literatura, é o livro mais edificante e religioso já escrito.

Todo o processo narrativo consiste em humilhar o orgulho intelectual de Raskólnikov, que o levou a cometer um crime para verificar se pertencia à família dos grandes homens (a quem é “permitido tudo”), até que ele aceite com humildade a sua redenção através do amor cristão de Sônia (nas anotações sobre o romance, pode-se ler: “Não existe felicidade no conforto, a felicidade adquire-se em troca de sofrimento. O homem não nasceu para a felicidade”). É duro de engolir, é piegas, leitor, é isso que você está pensando? Experimente, então, ler impunemente o romance. Todos os julgamentos desse tipo ficam suspensos diante de Dostoiévski.

Por outro lado, Crime e Castigo revela, com terrível realismo, os mecanismos de uma sociedade opressiva, no sentido policialesco e autoritário. Sonhando em ser um Napoleão no seu cubículo, Raskólnikov só percebe o quanto é restrita a liberdade após cometer seu crime. Antes de Kafka, Dostoiévski mostra a engrenagem burocrática e jurídica que tolhe o movimento do indivíduo. É por isso que o livro parece ainda tão moderno e influenciou de maneira definitiva a ficção, inclusive uma das suas grandes tendências: o romance policial.

Raskólnikov, o Hamlet russo que no final é derrotado por sua Ofélia, ao contrário do ancestral dinamarquês, é também um personagem histriônico, como se seu drama se desenrolasse diante de um público. Esse aspecto teatral fornece um grande dinamismo aos livros de Dostoiévski (facilitado pelo fato de que poucas vezes os personagens conseguem ficar sozinhos—geralmente estão cercados por uma multidão, como a que se reúne no cubículo de Raskólnikov), e aqui nos acompanhamos verdadeiras performances, seja a de Marméladov (o pai de Sônia e marido de Catierina Ivánovna, bêbado contumaz que morre em conseqüência de um atropelamento), sejam as de Svidrigáilov, as de Porfiri Pietróvitch, e especialmente as de Catierina Ivánovna.

Ao teatro (Dostoiévski foi um grande fã de Shakespeare e parece ter tirado muito proveito disso) se une o folhetim: é o caso da grande cena, na qual outro vilão apaixonado por Dúnia, Lújin, acusa Sônia de roubo em meio às exéquias do pai dela. E pensar que o nosso público de hoje acredita encontrar emoções nos aborrecidos, amorfos e inúteis folhetins da tevê.

Teatro, folhetim, drama psicológico e metafísico, parábola de redenção mística, debate de idéias, painel social. É isso Crime e Castigo e a obra desse russo que viveu de 1821 a 1881: é apenas um pouco menos que a Bíblia.

27/12/2009

Em relação ao século XIX: BICENTENÁRIOS, SESQUICENTENÁRIOS

      “… todos os seres da natureza, perceptíveis para nós, mantêm uma relação recíproca (…) Imagine a água, o óleo, o mercúrio: você verá uma unidade, uma coesão entre as suas partes. Essa união só deixará de existir pela força ou por outra determinação qualquer. Cessando esta, tornam logo a juntar-se de novo (…) E isso será diferente segundo a diversidade dos seres. Ora agirão como amigos ou velhos conhecidos que rapidamente se reúnem, se juntam, sem modificarem um ao outro, tal como o vinho ao se misturar com a água; ora, ao contrário, permanecerão absolutamente estranhos um ao outro, sem se unirem, mesmo através de fricções ou misturas mecânicas, como o óleo a água (…) Não falta muito para vermos nessas forma simples as pessoas que conhecemos… Entretanto o que mais se assemelha a esses seres inanimados são as massas se enfrentando no mundo, as classes sociais, as profissões, a nobreza e a burguesia, o militar e o civil (…) Contudo, tal como esses grupos que se agregam por meio de costumes e leis, há também, em nosso mundo químico, elementos para juntar aquilo que se repele mutuamente…”

      2009 marca não só o bicentenário do nascimento de gênios como Edgar Allan Poe, Nikolai  Gógol  (há posts sobre as duas efemérides aqui no meu blog) e Charles Darwin, como também o de uma obra fundamental e curiosamente pouco conhecida do público comum: As Afinidades Eletivas (relançada recentemente, em tradução de Erlon José Paschoal, pela Nova Alexandria, em edição de capa dura, mas a que possuo é a de  1992; as citações podem ser encontradas na Primeira Parte- Capítulo IV; há uma notável adaptação cinematográfica do livro feita pelos irmãos Taviani, com a grande Isabelle Hupert).

    Na citação acima, misturei as falas de vários personagens (o Capitão, Eduard, Charlotte) que estabelecem o “processo químico e orgânico” de modificação dos sentimentos de um casal nobre, devido à aparição de uma “outra determinação qualquer”, a irresistível Ottilie, a qual levará Eduard ao adultério. O extraordinário romance de Goethe (1749-1832) marca o aprofundamento da análise dos sentimentos individuais na ficção, mostrando que o absoluto não existe  nesse reino, só o relativo, e que portanto pode haver uma decomposição narrativa infinita dos seus elementos. Nem Rousseau nem Richardson, no século anterior, haviam ido tão longe.

p.s.- Apesar de estar fora do âmbito deste post, o nascimento do grande amigo de Goethe e seu maior “rival”, por assim dizer, na literatura alemã, Schiller, completa 250 anos em 2009.

    Além dos 200 anos do nascimento do profeta do Evolucionismo, temos os 150 anos da sua obra mais célebre, A Origem das Espécies, que deu origem a uma avalanche de lançamentos comemorativos (Richard Dawkins que o diga). Aliás, com relação à obra-prima de Goethe, é bom lembrar que o último capítulo da obra-prima de Darwin se chama “Afinidades mútuas entre os seres orgânicos”: “Tentei demonstrar neste capítulo que o arranjo de todos os seres orgânicos que viveram em todos os tempos em grupos subordinados a outros grupos;  que a natureza das relações que vinculassem num pequeno número de grandes classes todos os organismos vivos e extintos, por linhas de afinidades complicadas,  divergentes e tortuosas; que as dificuldades que encontram e as regras que seguem os naturalistas nas suas classificações;  que o valor que se liga aos caracteres  quando são constantes e gerais, que tenham uma importância considerável ou mesmo que não tenham nenhuma, como nos casos dos órgãos rudimentares; que a grande diferença de valor que existe entre os caracteres de adaptação ou análogos e de afinidades verdadeiras; tentei demonstrar, repito, que todas essas regras, e ainda outras análogas, são a consequência natural da hipótese do parentesco comum das formas associadas e de suas modificações pela seleção natural, junto às circunstâncias de extinção e de divergência de caracteres que determina.  Analisando esse princípio de classificação, é necessário não esquecer que o elemento genealógico foi unicamente aceito e empregado para classificar em conjunto, na mesma espécie, os dois sexos, as diversas idades e as variedades reconhecidas, seja qual for, além disso, a sua conformação. Se se estende a aplicação desse elemento genealógico, causa única conhecida das semelhanças que se verificam entre os seres organizados, compreende-se o que é necessário entender por sistema natural: é tudo um simples ensaio de coordenação genealógica em que os diversos graus de diferenças adquiridas se exprimem pelos termos variedade, espécies, gêneros, famílias, ordens e classes“…  (utilizo a tradução de Eduardo Fonseca, pela Ediouro).

     No mesmo ano, uma obra anteciparia o conteúdo de O Capital e, embora mais discretamente que a do pensador inglês, mudaria toda a nossa maneira de conceber o mundo e a história: Contribuição à Crítica da Economia Política, de Karl Marx, uma boa introdução às idéias do genial pensador prussiano, que naquele ano prosseguia em seu definitivo exílio em Londres, pensando no fim do capitalismo em pleno coração do Império.

       1859 marca também o nascimento do grande pensador francês Henri Bergson (autor do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Matéria e Memória & A evolução criadora), um dos mais influentes da primeira metade do século XX; também naquele ano nascia  o criador de Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle, e a publicação, além de um dos textos mais deliciosos de Dostoiévski (A Aldeia de Stiepantchikov  e Seus Habitantes), uma jóia de humor e precisão narrativa (na minha opinião, sua melhor obra antes da grande fase iniciada com Memórias do Subsolo),  de uma das novelas mais lindas de  Tolstói, A Felicidade Conjugal (que também ganhou uma nova edição em 2009, pela 34, na tradução de Boris Schnaiderman).

     Trinta anos depois, ele anatematizará apocalipticamente a instituição do casamento (muito visada, assim como seu duplo, o adultério, pelos autores da época) em Sonata a Kreutzer. Porém, aos 31 anos, num tour – de force, ele adota o ponto-de-vista de uma jovem esposa, Macha, que se apaixona e se casa com um homem quase vinte anos mais velho. É através das impressões e reflexões de Macha que o leitor vai acompanhando uma profunda e alquímica (pensando em Afinidades Eletivas, podemos dizer que goethiana) transformação de sentimentos, mas que ocorre em filigrana: temos as diversas nuances que constituem a “realidade” dos sentimentos. O amor romântico de Macha e  Sierguei Mikhálitch morre e, como ela diz, “não tem mais força nem suculência. O que sobrou? Sobrou o amor ,  isto é, a felicidade conjugal,como conclui a narradora num dos mais belos finais já escritos: “…terminou o romance com meu marido; o sentimento antigo tornou-se uma recordação querida, algo impossível de trazer de volta, e o novo sentimento de amor aos filhos e ao pai dos meus filhos deu início a uma nova vida, de uma felicidade completamente diversa e que ainda não acabei de viver”. De Goethe a Tolstói, passando pelo grande Stendhal, os sentimentos na literatura se tornam mais interessantes que a ação romanesca, até chegarmos ao auge com Proust e seu Em Busca do Tempo Perdido.

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