PREÂMBULO
Fico sempre bravo quando críticos procuram diminuir o valor literário de Doris Lessing (Harold Bloom, por exemplo). Contraditoriamente, é um dos poucos casos em que admito que a influência sobre mim vai além da admiração por sua ficção, por sua grandeza como ficcionista. Dito isto, não sou afeito a gurus, mestres, mas vejo numa certa parcela de escritores, uma propensão ao “pedagógico”, roçando a Sabedoria (palavra perigosa, mas não fugirei do perigo). E ninguém nesse quesito me afetou tanto quanto Doris Lessing (o único outro caso igual que me vem à mente é o de Tolstói). Seus livros são uma fonte inesgotável para mim de aprendizado e “limpada” na mente asfixiada por informações e doutrinações diversas. Por isso, na proximidade do seu aniversário, em 22 de outubro, resolvi reler completamente—pela quinta vez (fora as leituras parciais)—um dos seus romances mais poderosos, até como homenagem ao impacto da primeira leitura, feita há 30 anos, durante o carnaval de 1983. Uma amiga com quem costumava dividir leituras e experiências na época, Miriam Bezerra, definiu bem: depois de ler o romance, disse que não dava para acreditar que alguém tivesse “pensado” um livro assim, quanto mais escrito.
Já tinha lido outros (Roteiro para um passeio ao Inferno, O verão antes da queda, Memórias de um Sobrevivente, A tentação de Jack Orkney), mas ESSA leitura foi um rito de passagem. Por isso, sempre digo que, se devo apontar “mestres” na vida, eles são Albert Camus e Doris Lessing. Depois da leitura de seus livros, nada mais foi o mesmo.
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de outubro de 2013, dia do aniversário de Doris Lessing: 94 anos!)
Os Sherban são uma família diferente. Britânicos, apresentam uma mistura étnica peculiar e viajam pelo mundo todo, pois os pais (Simon e Olga) estão sempre trabalhando com populações nativas paupérrimas, em países como Marrocos e Tunísia, enquanto os três filhos (George e Benjamin, gêmeos, e Rachel) têm uma educação heterodoxa, aclimatando-se às culturas mais discrepantes. George é o provável responsável por esse destino familiar tão insólito: desde pequeno, “apareciam” na sua vida pessoas que instruíam, “delicadamente” Simon e Olga a respeito dele. Ao chegar ao fim da adolescência, ele é um líder nato, pronto a orientar aqueles que sobreviverão à catástrofe global que destruirá a civilização como a conhecemos. E que para o Império extraterrestre—e altamente espiritualizado—de Canopus, representa a barbárie, a degradação do Plano instituído originalmente para o “planeta ferido”, Shikasta, outrora batizado de Rohanda no início da “colonização” canopiana[1].
A metamorfose de Rohanda em Shikasta se deve às mudanças drásticas e imprevistas do alinhamento cósmico e à intervenção predatória de um Império marcado pela pirataria, Shammat, inimigo de Canopus.
Em 1988, Doris Lessing, em entrevista à Paris Review[2], revelava sua alegre surpresa com a ótima vendagem no Brasil (país que acabara de visitar) dos cinco volumes da série Canopus em Argos: Arquivos, iniciada em 1979, com Shikasta[3], cujo núcleo dramático procurei resumir acima. Ali também afirmava não ter dito ainda a última palavra sobre esse projeto, interrompido em 1983[4].
Até agora, 30 anos depois da frase que deixa em aberto Os agentes sentimentais não tivemos a prometida continuação. Nesse meio-tempo, ela publicou muitos outros títulos em diversas áreas e ganhou o Nobel em 2007. Uma coisa é certa: a série é a maior obra de ficção das últimas décadas e Shikasta uma obra-prima[5].
No início de Os Agentes Sentimentais lemos: “Pedi licença do serviço em Shikasta; encontro-me num planeta cujo traço dominante é o mesmo de Shikasta. Muito bem! Fico por aqui neste período de serviço. Mas por meio desta aviso, FORMALMENTE, que estou entrando com um requerimento para ser enviado, quando eu tiver concluído minha missão aqui, a um planeta—por mais atrasado que seja, por mais desafiador que seja—cuja população não seja permanentemente afligida por demência autodestrutiva”[6]. Ao longo de Shikasta, Johor (destinatário dessa declaração), um dos enviados canopianos (assim como Klorathy, o remetente daquelas palavras), têm de enfrentar —por milênios— as emanações maléficas, os miasmas e as forças retrógradas do planeta cujo destino lhe causa imenso pesar[7] (“Exaurido pelo pesar, a mais inútil de todas as emoções”):
“Somos, todos nós, criaturas das estrelas e das suas forças, ela nos fazem, nós as fazemos, somos parte de uma coreografia da qual, de modo nenhum, nunca, podemos pensar em nos separar. Mas, quando os deuses explodem, ou erram, ou se dissolvem em etéreas nuvens de gás, ou se encolhem, se expandem, ou seja lá o que for que seu destino determine, então, os itens minúsculos da sua substância podem, em sua pequenez, expressar não protesto, o que naturalmente não é próprio da sua posição, mas o reconhecimento da existência da ironia; sim, podem se permitir—sempre com respeito—o mais leve sorriso doloroso da ironia.”
Em outra passagem:
“ (…) tive um sonho, ou uma visão, e agora sabia o segredo da coluna de Shammat. Vi a antiga Rohanda, bela e cintilante, emitindo suas harmonias (…) Entre Rohanda e Canopus distinguia-se o cordão prateado do nosso amor. Mas uma sombra caiu sobre ele, a sombra de um rosto hediondo, pálido e desfigurado, com olhos fixos de um verde acinzentado. Mãos que pareciam bocas estendiam-se para agarrar e ao seu toque o planeta estremeceu e o som mudou. As mãos arrancavam pedaços do planeta e os levavam à boca, que os mastigava e sorvia sem nunca ficar satisfeita. Então essa figura devoradora transformou-se no jato semivisível do transmissor, que retiro todo o bem e toda a força do planeta e depois dissolveu-se. No meu sonho, inclinei-me ansioso para saber o que tudo isso significava… vi que os habitantes de Shikasta tinham mudado, transformados em seres da mesma natureza da coluna voraz: Shammat tinha-se fixado na própria natureza da raça shikastiana e, agora, o povo era o transmissor que alimentava Shammat.”
Nós acompanhamos essa triste trajetória da humanidade a partir da sua última missão (quando ele “encarnará” como George Sherban). De forma genial, Doris Lessing mostra tanto esses dolorosos preparativos para uma intervenção no Apocalipse quanto os eventos pregressos (“Shikasta estava sempre presente, está constantemente na nossa agenda”), por meio de uma alternância de relatórios do próprio Johor, de outros enviados, de informes administrativos, de verbetes enciclopédicos, de “especialistas” na raça shikastiana (como Marcel Proust), de pequenas anedotas sobre indivíduos e gatos (algumas delas, momentos extraordinários da ficção ocidental[8]), aproveitando grandes mitos religiosos (o Dilúvio, as Tábuas da Lei), até as formulações espíritas (a reencarnação, as zonas “espirituais” que circundam o nosso “plano” de realidade). Como Tolstoi, a grande escritora inglesa é o que de mais alto a literatura e o dom de fabulação podem oferecer mas, paradoxalmente, ultrapassando a literatura como um fim em si mesmo, ao não recuar nas fronteiras da autoridade moral, da reflexão , do tom profético e da pregação impregnada de urgência[9]. Saramago propôs mais tarde, e é o que ela exige dos seus leitores, uma “insurreição ética” radical, abalando-nos profundamente nas nossas certezas, nas nossas grades de referências e até na nossa percepção da realidade.
Em nenhum outro livro, nem mesmo no ciclo Os Filhos da Violência (1952-1969) e em Roteiro para Um Passeio ao Inferno (1971), nos quais já diagnosticava em profundidade os males da nossa doutrinação mental, ela fora tão longe. Não dá para ler Shikasta impunemente, apenas pelo fascínio e beleza da sua fábula (apesar de apaixonante, em especial depois da “encarnação” de Johor como Sherban) e da polifonia narrativa (temos na 2ª. metade, diários, correspondências e informes dos “humanos” para complementar a visão canopiana dos eventos)[10].
Doris Lessing exige[11] que nos defrontemos com questões e posturas morais, ideológicas, religiosas, com rumos civilizatórios. Seus impérios galácticos são a alegoria perfeita das superestruturas que nos enredam e emparedam nossos horizontes: “Não podemos passar anos e anos mergulhados em uma propaganda falsa e mentirosa sem que as nossas faculdade mentais sejam prejudicadas”. Os 30 anos que transcorreram só confirmaram mais e mais o que está em jogo em Canopus em Argos: Arquivos[12] (veja-se esta passagem—lembrando que o romance é de 1979: “Nessa época começou a haver manifestações contínuas. O povo estava sempre nas ruas, gritando as exigências do momento”). São os livros da Sabedoria da modernidade líquida. E um chamado para o qual sempre serei fiel e pontual, como leitor e indivíduo.
VER TAMBÉM NO BLOG:
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TRECHOS SELECIONADOS–
I
Escolhi um dos segmentos sobre “indivíduos” de Shikasta; aqui, um casal não-nomeado e quase assumem estatura arquetípica, o Homem e a Mulher comuns de todos os tempos:
“Por toda parte ideias, mentalidades, crenças, que foram os alicerces dos povos durante séculos, esgarçam-se, dissolvem-se, desaparecem.
O que resta?
É verdade que a capacidade dos shikastianos para fechar as brechas abertas nos muros das suas certezas é imensa (…)
Ele pensa, quando a solidão o perturba, ali de pé, girando entre as estrelas, uma espécie entre miríades—como só recentemente veio a saber—que esses pensamentos são grandiosos demais para ele, precisa abraçar sua mulher, sentir os braços dela ao redor do seu corpo, mas, quando seus olhos se encontram, veem tensão e medo, pois esse abraço pode gerar monstros.
Ela faz o que tem feito durante milênios, parte o pão, coloca vegetais cortados em um prato, ao lado de uma garrafa de vinho, e pensa que nada nessa refeição é seguro, que os venenos da civilização estão em cada garfada, e que estão se preparando para levar à boca todo tipo de morte. Com um gesto instintivo de salvaguarda, de renovação, estende uma fatia de pão para o filho, mas o geste perdeu a força da fé porque sabe o que pode estar dando a ele.
Quando ele está trabalhando—nas épocas em que consegue trabalho, pois pode ser um dos que apenas se mantêm vivos, sem utilidade, sem se expandirem, se desenvolverem através do trabalho—ele, quando está trabalhando, muitas e muitas vezes, porque a necessidade é tão antiga quanto o tempo, renova-se com o pensamento de que o que faz é em benefício de outros, que seu trabalho o une aos outros, faz parte de uma teia criativa e pulsa ao ritmo de todos os trabalhadores da terra, mas o pensamento é interrompido, não pode viver nele, pois há amargura e cólera, e depois cansaço e descrença; ele não sabe por que, ela não sabe por que, mas é como se estivessem vertendo no vazio o que há de melhor em seus íntimos.
Ele e ela, pondo em ordem o lugar onde vivem, limpando e arrumando seu lar, param juntos entre pilhas de vidros, materiais sintéticos, papel, latas, recipientes—o lixo da sua civilização que, eles sabem,é o cultivo da terra e é alimento, o trabalho de homens e mulheres, lixo, lixo, para ser levado e despejado em grandes montanhas que cobrem a terra, que sujam a água (…) Nada do que podem tocar ou ver ou segurar os ampara, em nenhum lugar podem se refugiar no simples bom senso da natureza (…)
Em toda a sua história, o homem sempre foi capaz de se refazer com a visão das folhas que no outono retornam à terra, ou com a imagem de um muro iluminado de sol, que se desfaz, ou a lembrança de ossos brancos na beira de um riacho.
E os dois ficam juntos, vendo a cidade do alto, olhando para o lugar em que as máquinas que os destroem, giram e amassam, no ar, na terra, sob a terra… ficam juntos, respirando, mas o ritmo de sua respiração fica mais curto, altera-se, quando pensam que o ar está cheio de corrosão e destruição.
Eles abrem torneiras e a água corre facilmente, vinda do interior das paredes, mas quando se inclinam para beber ou para se lavar, seus instintos os impedem e têm de lutar contra eles. A água tem gosto de água parada, de corrupção, e por dez vezes já passou pelos seus estômagos e pelos seus rins e sabem que chegará o tempo em que não mais poderão tomá-la e quando tentarem colher a água da chuva, descobrirão que também está inutilizada, por causa das substâncias químicas espalhadas no ar.
Olham o voo dos pássaros, os dois juntos na janela, e é como se estivessem despedindo pesarosamente, com um pedido de desculpas silencioso, doloroso, desculpando-se pela espécie a que pertencem: tudo o que levaram àquelas criaturas foi destruição e veneno, e o voo suave e gracioso da ave não lhes traz alegria; é apenas outra coisa da qual devem desviar os olhos, com sofrimento.
Essa mulher, esse homem inquietos, irritados, magoados, que dormem demais para esquecer, ou que não conseguem dormir, lembrando, procuram por toda parte algo que lhes sirva de amparo, algo que não se desfaça em repulsa no vazio—um deles apanha uma folha no chão, leva-a para casa, fita-a demoradamente (…) Já está sendo devolvida ao solo, mesmo enquanto permanece ali cativa, com sua forma tão perfeita quanto a vela de um barco enfunada pelo vento ou a concha de um molusco. Mas o que está sendo observado não é essa exatidão de linhas perfeitas, pois com um ligeiro desvio dos olhos pode-se ver a forma da matéria adelgaçando-se, esgarçando-se, sob os milhares de forças do crescimento e da morte. E é isso o que os olhos veem através da janela, na árvore de onde a filha caiu, pois é outono e a energia necessária à árvore para sobreviver durante o inverno já se concentra dentro dela—não, não é uma árvore, mas um conjunto de matéria que luta e estremece nos extremos da tensão (…)
O homem e a mulher, humildemente sentados no canto do quarto, olham fixamente para aquela coisa indescritivelmente perfeita, uma folha dourada no outono, que acaba de cair flutuando da árvore, e então executarão alguns atos que vêm do seu íntimo, e que não podem justificar nem argumentar contra—apenas fecharão a mão sobre a folha, esmagando-a, reduzindo-a a pó, e a jogarão pela janela, olhando a poeira fina chegar ao solo, pois há certo alívio no pensamento de que a chuva, na próxima semana, levará o pó da folha de volta para a terra, para as raízes, para que, no ano seguinte, ela brilhe no ar novamente. Ou talvez a mulher coloque a folha gentilmente num prato azul sobre a mesa, e ironicamente se curve em uma reverência, e com uma espécie de pedido de desculpas, que está sempre na mente dos shikastianos agora, pense que as leis que construíram essa forma perfeita devem ter, têm de ser, no fim, mais fortes do que os lentos venenos que distorcem e pervertem a substância da vida (…)
Portanto, esta é a condição dos shikastianos agora (…) Nada do que tocam ou veem tem substância, e assim eles repousam em imaginação, no caos, procurando forças nas possibilidades de uma destruição criativa. Estão vazios de tudo, menos do conhecimento de que o universo é um motor ruidoso de criatividade e eles, manifestações temporárias do mesmo.
Criaturas infinitamente danificadas, reduzidas e degeneradas, afastadas das suas origens, quase perdidas (…) e agora não têm onde se firmar a não ser nos extremos mais ultrajantes da paciência. Uma paciência humilde e irônica, que aprende a olhar uma folha, perfeita por um dia, e a ver nela a explosão das galáxias e o campo de batalha das espécies. Os shikastianos, nesse fim ignóbil e horrível, enquanto lutam, procuram, correm entre seus artefatos desmoronados, esquálidos, erguem as mentes para os píncaros da coragem e da… vou usar a palavra fé. Depois de pensar sobre o assunto. Com cautela. Com um respeito exato e esperançoso.”
II
Escolhi o trecho do diário de Rachel que narra a morte da mãe porque tanto Olga Sherban quanto seu marido Simon são personagens cuja lembrança me deixa emocionado.
“Olga me acordou no meio da noite e disse que eu devia levá-la ao hospital. Telefonei para Suzannah, que veio com o carro do exército. Levamos Olga para o hospital e pedi que Suzannah voltasse e ficasse com as crianças. Levaram Olga para um pequeno quarto de uma das seções onde ela trabalhava (…) Ela disse ao médico-chefe: por favor, não… queria dizer, não me deem narcóticos. Geralmente ele trabalha sob as ordens dela. O médico segurou-lhe a mão, sorriu e assentiu com a cabeça, e fez um sinal aos outros médicos e enfermeiras e todos saíram e me deixaram a sós com Olga. Ela estava muito cansada. Sua pele, cinzenta. Os lábios brancos. Fez um movimento com a mão e eu a segurei nas minhas. Olhava para mim de algum lugar muito distante. Percebi que o máximo que podia fazer era continuar respirando. Disse, com voz subitamente muita alta: Rachel. Esperei, e esperei, e esperei. As luzes brilhantes sobre todo o quarto. Então ela sorriu, um sorriso de verdade, e eu soube que Olga ia morrer naquele momento, e ela disse: bem, Rachel… com carinho na voz. Então parou de respirar. Depois de alguns minutos fechei os olhos dela. Continuavam fitos em mim. Pelo menos parecia. Fiquei ao seu lado até ela estar fria. Não senti pena porque achei que não devia. De qualquer modo, eu não acreditava na morte. E, na verdade, desejava estar com ela. Então, chamei uma enfermeira e perguntei se precisava assinar algum documento, porque eu era o único membro da família que ainda estava na cidade. Deram-me uma xícara de café e um formulário para assinar. Voltei então para casa. Já estava claro. Suzannah estava dormindo no sofá da sala. Isso me fez gostar dela porque havia seis camas vazias que podia ter usado. Não procurou me consolar nem fez nenhuma tolice, apenas mais café e depois acordou as crianças e preparou café para elas. Sentamo-nos na cozinha e eu lhes disse que Olga tinha morrido e que eu ia tomar conta delas. E Suzannah também?, perguntaram. Naturalmente eu disse sim. Parecia a coisa mais certa.
Compreendi que George vai casar com Suzannah. Como não percebi isso antes? Ela já faz parte da família. Há muito tempo.
Agora que George e Benjamin viajaram e mamãe e papai estão mortos, o apartamento ficou enorme. Kassim está no quarto de George e Leila no de Benjamin. Isso é muito importante para eles. Antes, sentiam-se como refugiados que tínhamos acolhido. Mas agora são parte da família. Determinei certas tarefas para os dois, como conservar o apartamento limpo, fazer as compras, e Leila e Kassim sabem cozinhar um pouco. Ainda não os mandei para a escola. Não sei onde, nem como. Pensei em procurar Hasan e perguntar-lhe: Talvez essas crianças sejam como George?”
[1] “(…) vou registrar as minhas lembranças da visita a Shikasta, então Rohanda, no Primeiro Tempo, quando essa raça era a glória e a esperança de Canopus”.
“Mas então já era Shikasta; Shikasta, a magoada, a danificada, a ferida. O nome já tinha sido mudado.”
[2] Publicada aqui pela Companhia das Letras na coletânea traduzida por Christian Schwartz & Sérgio Alcides, cf. As Entrevistas da Paris Review- volume 1 (2011).
[3] Ou, mais precisamente Ref.: Planeta Colonizado número 5- Shikasta– Documentos pessoais, psicológicos, históricos sobre a visita de Johor (George Sherban), Emissário (Grau 9), 87º. do período dos Últimos Dias, que comento na tradução de Aulyde Soares Rodrigues para a Nova Fronteira (1982).
[4] Aquele foi o ano em que ela lançou um romance (Diário de uma boa vizinha) com um pseudônimo, Jane Somers, para testar o sistema editorial e os resenhistas da Grã-Bretanha e dos EUA.
[5] Além dos já referidos Shikasta e Os agentes sentimentais, este último um livro relativamente fraco do ponto-de-vista da fabulação, enfim, uma obra menor, Canopus em Argos: Arquivos é formada por três outros volumes que considero lindos, embora com um “alcance” menor do que a abertura da série: Os casamentos entre as zonas 3,4 e 5; As experiências de Sirius e Planeta 8.
[6] Documentos relativos aos agentes sentimentais no Império Volyen, que cito na tradução de Aulyde Soares Rodrigues para a Nova Fronteira (1988).
[7] Não deixa de ser contraditório (beneficiando a complexidade do projeto, diga-se de passagem) que toda a intervenção “benéfica” de Canopus se processe numa linguagem que remete aos sistemas colonialistas europeus (que depois serão julgados no clímax do romance). Doris Lessing não deixa de ser uma filha do Império Britânico (ainda que de uma forma irônica), como foi ficando cada vez mais evidenciado pela fase tardia da sua obra.
[8] Em especial, as páginas referentes ao Festival da Criança, um ponto alto do romance.
[9] “O continente [a área dos EUA] estava repleto de lixo, de despojos do resto do mundo. Ao redor de cada cidade, vila ou até mesmo pequenos povoados no deserto, erguiam-se montes de refugo de objetos e alimentos que em outras partes do globo, menos favorecidas, significariam a diferença entre a vida e a morte para milhões de pessoas. Os visitantes desse continente ficavam maravilhados—mas com aquilo que o povo era ensinado a considerar como seu de direito.
Essa cultura dominante determinou o modo de vida e a cultura da maior parte de Shikasta. Pois, independentemente do rótulo ideológico de cada área nacional, todos tinham em comum a ideia de que a tecnologia era a chave de todo o bem, e que o bem era o aumento da riqueza material, do ganho, do conforto, do prazer. Os objetivos reais da vida—há tanto tempo pervertidos, conservados por nós com dificuldade, mantidos a tanto custo—foram esquecidos, eram ridicularizados por aqueles que chegavam a ouvir falar deles, pois algumas insinuações distorcidas da verdade permaneciam ainda em algumas religiões. E durante todo esse tempo a terra estava sendo pilhada e despojada.”
[10] Eu adoro particularmente o diário escrito por Rachel Sherban, talvez o ponto alto do livro enquanto estrutura romanesca. Gosto demais também do reaproveitamento da figura de Lynda Coldridge, remanescente de Os filhos da violência (mais especificamente do último volume da série, A cidade de quatro portas). Devo dizer, no entanto, que acho excessivamente caricaturais as passagens que enfocam os emissários de Shammat e acho muito longo—e cansativo—o julgamento das raças brancas (poderia ter sido mais enxuto), apesar de serem, num livro de 450 páginas, pequenos senões.
[11] É o único verbo que me ocorre.
[12] Veja-se por exemplo, essas palavras sobre a ascensão do Partido Trabalhista ao poder: “Ele e os seus tinham-se deixado conquistar por tudo aquilo que deviam odiar e que tinham odiado, mas haviam-se esquecido de odiar. Nos primeiros tempos da sua história, tinham olhado de frente seus opressores, que provocavam e blefavam—e enganavam; e tinham-se sentido superiores porque eram honestos e defendiam a verdade. E, agora, eles também blefavam e provocavam e enganavam—como todo mundo, natualmente. Quem não o fazia? Quem não mentia e roubava e enganava e tomava tudo o que podia? Por que então tinham de ser diferentes?”
E sobre as transigências (tantas vezes ignóbeis) da “governabilidade”; “era um governo por grupos de pressão, administração por grupos de pressão, pois o governo não podia iniciar nada, apenas respondia”.
E sobre “vazamento” de informações secretas, numa das “anedotas sobre indivíduos”:
“Pouco a pouco tornou-se obcecado pela monstruosidade da natureza desses experimentos, o que teve como resultado uma neurose—o conflito do dever para com ´país´, ´ciência´, ´família´etc, que não pode resolver, fez com que ficasse doente. Durante anos guardou segredo da sua doença, pois não havia ninguém com quem pudesse discutir a situação (…) Providenciei para que conhecesse, em uma conferência internacional, um homem que trabalhava no mesmo campo, em um país ´inimigo´–coloco a palavra entre aspas porque, nessa época, os inimigos podem se tornar aliados da noite para o dia, ou são secretamente aliados… Esses dois homens, ambos carregando com dificuldade o peso do seu conhecimento, foram imediatamente atraídos um para o outro graças às suas preocupações semelhantes. Combinaram um modo de conseguir que as informações que possuem sejam passadas adiante (…) Cada vez mais esse homem se dedicará à disseminação dessas informações secretas, até ser descoberto e preso.”
E sobre família:
“A vida da família desmoronou-se. Os casais raramente ficam juntos por muito tempo. As crianças, tendo de se defender sozinhas desde pequenas, sem afeição, formam grupos e logo se transformam em criminosos. Os estudiosos preocupam-se com esse problema, e frequentemente anunciam a solução: maior atenção dos pais aos jovens. As autoridades exortam as famílias nesse sentido, mas os resultados são quase nulos.
Um aspecto digno de nota é que constantemente são mostradas histórias de famílias ideais, nos vários meios de comunicação e de propaganda, mas são exemplos de épocas passadas e dificilmente se relacionam com presente, mas são muito populares.”