MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

22/10/2013

Destaque do Blog: SHIKASTA, de Doris Lessing

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PREÂMBULO

   Fico sempre bravo quando críticos procuram diminuir o valor literário de Doris Lessing (Harold Bloom, por exemplo). Contraditoriamente, é um dos poucos casos em que admito que a influência sobre mim vai além da admiração por sua ficção, por sua grandeza como ficcionista. Dito isto, não sou afeito a gurus, mestres, mas vejo numa certa parcela de escritores, uma propensão ao “pedagógico”, roçando a Sabedoria (palavra perigosa, mas não fugirei do perigo). E ninguém nesse quesito me afetou tanto quanto Doris Lessing (o único outro caso igual que me vem à mente é o de Tolstói). Seus livros são uma fonte inesgotável para mim de aprendizado e “limpada” na mente asfixiada por informações e doutrinações diversas. Por isso, na proximidade do seu aniversário, em 22 de outubro, resolvi reler completamente—pela quinta vez (fora as leituras parciais)—um dos seus romances mais poderosos, até como homenagem ao impacto da primeira leitura, feita há 30 anos, durante o carnaval de 1983. Uma amiga com quem costumava dividir leituras e experiências na época, Miriam Bezerra, definiu bem: depois de ler o romance, disse que não dava para acreditar que alguém tivesse “pensado” um livro assim, quanto mais escrito.

   Já tinha lido outros (Roteiro para um passeio ao Inferno, O verão antes da queda, Memórias de um Sobrevivente, A tentação de Jack Orkney), mas ESSA leitura foi um rito de passagem. Por isso, sempre digo que, se devo apontar “mestres” na vida, eles são Albert Camus e Doris Lessing. Depois da leitura de seus livros, nada mais foi o mesmo.

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(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de outubro de 2013, dia do aniversário de Doris Lessing: 94 anos!)

Os Sherban são uma família diferente. Britânicos, apresentam uma mistura étnica peculiar e viajam pelo mundo todo, pois os pais (Simon e Olga) estão sempre trabalhando com populações nativas paupérrimas, em países como Marrocos e Tunísia, enquanto os três filhos (George e Benjamin, gêmeos, e Rachel) têm uma educação heterodoxa, aclimatando-se às culturas mais discrepantes. George é o provável responsável por esse destino familiar tão insólito: desde pequeno, “apareciam” na sua vida pessoas que instruíam, “delicadamente” Simon e Olga a respeito dele.  Ao chegar ao fim da adolescência, ele é um líder nato, pronto a orientar aqueles que sobreviverão à catástrofe global que destruirá a civilização como a conhecemos. E que para o Império extraterrestre—e altamente espiritualizado—de Canopus, representa a barbárie, a degradação do Plano instituído originalmente para o “planeta ferido”, Shikasta, outrora batizado de Rohanda no início da “colonização” canopiana[1].

A metamorfose de Rohanda em Shikasta se deve às mudanças drásticas e imprevistas do alinhamento cósmico e à intervenção predatória de um Império marcado pela pirataria, Shammat, inimigo de Canopus.

Em 1988, Doris Lessing, em  entrevista à Paris Review[2], revelava sua alegre surpresa com a ótima vendagem no Brasil (país que acabara de visitar) dos cinco volumes da série Canopus em Argos: Arquivos, iniciada em 1979, com Shikasta[3], cujo núcleo dramático procurei resumir acima. Ali também afirmava não ter dito ainda a última palavra sobre esse projeto, interrompido em 1983[4].

Até agora, 30 anos depois da frase que deixa em aberto Os agentes sentimentais não tivemos a prometida continuação. Nesse meio-tempo, ela publicou muitos outros títulos em diversas áreas e ganhou o Nobel em 2007. Uma coisa é certa: a série é a maior obra de ficção das últimas décadas e Shikasta uma obra-prima[5].

No início de Os Agentes Sentimentais lemos: “Pedi licença do serviço em Shikasta; encontro-me num planeta cujo traço dominante é o mesmo de Shikasta. Muito bem! Fico por aqui neste período de serviço. Mas por meio desta aviso, FORMALMENTE, que estou entrando com um requerimento para ser enviado, quando eu tiver concluído minha missão aqui, a um planeta—por mais atrasado que seja, por mais desafiador que seja—cuja população não seja permanentemente afligida por demência autodestrutiva[6]. Ao longo de Shikasta, Johor (destinatário dessa declaração), um dos enviados canopianos (assim como Klorathy, o remetente daquelas palavras), têm de enfrentar —por milênios— as emanações maléficas, os miasmas e as forças retrógradas do planeta cujo destino lhe causa imenso pesar[7] (“Exaurido pelo pesar, a mais inútil de todas as emoções”):

“Somos, todos nós, criaturas das estrelas e das suas forças, ela nos fazem, nós as fazemos, somos parte de uma coreografia da qual, de modo nenhum, nunca, podemos pensar em nos separar. Mas, quando os deuses explodem, ou erram, ou se dissolvem em etéreas nuvens de gás, ou se encolhem, se expandem, ou seja lá o que for que seu destino determine, então, os itens minúsculos da sua substância podem, em sua pequenez, expressar não protesto, o que naturalmente não é próprio da sua posição, mas o reconhecimento da existência da ironia; sim, podem se permitir—sempre com respeito—o mais leve sorriso doloroso da ironia.”

   Em outra passagem:

“ (…) tive um sonho, ou uma visão, e agora sabia o segredo da coluna de Shammat. Vi a antiga Rohanda, bela e cintilante, emitindo suas harmonias (…) Entre Rohanda e Canopus distinguia-se o cordão prateado do nosso amor. Mas uma sombra caiu sobre ele, a sombra de um rosto hediondo, pálido e desfigurado, com olhos fixos de um verde acinzentado. Mãos que pareciam bocas estendiam-se para agarrar e ao seu toque o planeta estremeceu e o som mudou. As mãos arrancavam pedaços do planeta e os levavam à boca, que os mastigava e sorvia sem nunca ficar satisfeita. Então essa figura devoradora transformou-se no jato semivisível do transmissor, que retiro todo o bem e toda a força do planeta e depois dissolveu-se. No meu sonho, inclinei-me ansioso para saber o que tudo isso significava… vi que os habitantes de Shikasta tinham mudado, transformados em seres da mesma natureza da coluna voraz: Shammat tinha-se fixado na própria natureza da raça shikastiana e, agora, o povo era o transmissor que alimentava Shammat.”

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Nós acompanhamos essa triste trajetória da humanidade a partir da sua última missão (quando ele “encarnará” como George Sherban). De forma genial, Doris Lessing mostra tanto esses dolorosos preparativos para uma intervenção no Apocalipse quanto os eventos pregressos (“Shikasta estava sempre presente, está constantemente na nossa agenda”), por meio de uma alternância de relatórios do próprio Johor, de outros enviados, de informes administrativos, de verbetes enciclopédicos, de “especialistas” na raça shikastiana (como Marcel Proust), de pequenas anedotas sobre indivíduos e gatos (algumas delas, momentos extraordinários da ficção ocidental[8]), aproveitando grandes mitos religiosos (o Dilúvio, as Tábuas da Lei), até as formulações espíritas (a reencarnação, as zonas “espirituais” que circundam o nosso “plano” de realidade). Como Tolstoi, a grande escritora inglesa é o que de mais alto a literatura e o dom de fabulação podem oferecer mas, paradoxalmente, ultrapassando a literatura como um fim em si mesmo, ao não recuar nas fronteiras da autoridade moral, da reflexão , do tom profético e da pregação impregnada de urgência[9]. Saramago propôs mais tarde, e é o que ela exige dos seus leitores, uma “insurreição ética” radical, abalando-nos profundamente nas nossas certezas, nas nossas grades de referências e até na nossa percepção da realidade.

Em nenhum outro livro, nem mesmo no ciclo Os Filhos da Violência (1952-1969) e em Roteiro para Um Passeio ao Inferno (1971), nos quais já diagnosticava em profundidade os males da nossa doutrinação mental, ela fora tão longe. Não dá para ler Shikasta impunemente, apenas pelo fascínio e beleza da sua fábula (apesar de apaixonante, em especial depois da “encarnação” de Johor como Sherban) e da polifonia narrativa (temos na 2ª. metade, diários, correspondências e informes dos “humanos” para complementar a visão canopiana dos eventos)[10].

Doris Lessing exige[11] que nos defrontemos com questões e posturas morais, ideológicas, religiosas, com rumos civilizatórios. Seus impérios galácticos são a alegoria perfeita das superestruturas que nos enredam e emparedam nossos horizontes: “Não podemos passar anos e anos mergulhados em uma propaganda falsa e mentirosa sem que as nossas faculdade mentais sejam prejudicadas”. Os 30 anos que transcorreram só confirmaram mais e mais o que está em jogo em Canopus em Argos: Arquivos[12] (veja-se esta passagem—lembrando que o romance é de 1979: “Nessa época começou a haver manifestações contínuas. O povo estava sempre nas ruas, gritando as exigências do momento”). São os livros da Sabedoria da modernidade líquida. E um chamado para o qual sempre serei fiel e pontual, como leitor e indivíduo.

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TRECHOS SELECIONADOS

I

Escolhi um dos segmentos sobre “indivíduos” de Shikasta; aqui, um casal não-nomeado e quase assumem estatura arquetípica, o Homem e a Mulher comuns de todos os tempos:

“Por toda parte ideias, mentalidades, crenças, que foram os alicerces dos povos durante séculos, esgarçam-se, dissolvem-se, desaparecem.

    O que resta?

    É verdade que a capacidade dos shikastianos para fechar as brechas abertas nos muros das suas certezas é imensa (…)

    Ele pensa, quando a solidão o perturba, ali de pé, girando entre as estrelas, uma espécie entre miríades—como só recentemente veio a saber—que esses pensamentos são grandiosos demais para ele, precisa abraçar sua mulher, sentir os braços dela ao redor do seu corpo, mas, quando seus olhos se encontram, veem tensão e medo, pois esse abraço pode gerar monstros.

    Ela faz o que tem feito durante milênios, parte o pão, coloca vegetais cortados em um prato, ao lado de uma garrafa de vinho, e pensa que nada nessa refeição é seguro, que os venenos da civilização estão em cada garfada, e que estão se preparando para levar à boca todo tipo de morte. Com um gesto instintivo de salvaguarda, de renovação, estende uma fatia de pão para o filho, mas o geste perdeu a força da fé porque sabe o que pode estar dando a ele.

     Quando ele está trabalhando—nas épocas em que consegue trabalho, pois pode ser um dos que apenas se mantêm vivos, sem utilidade, sem se expandirem, se desenvolverem através do trabalho—ele, quando está trabalhando, muitas e muitas vezes, porque a necessidade é tão antiga quanto o tempo, renova-se com o pensamento de que o que faz é em benefício de outros, que seu trabalho o une aos outros, faz parte de uma teia criativa e pulsa ao ritmo de todos os trabalhadores da terra, mas o pensamento é interrompido, não pode viver nele, pois há amargura e cólera, e depois cansaço e descrença; ele não sabe por que, ela não sabe por que, mas é como se estivessem vertendo no vazio o que há de melhor em seus íntimos.

    Ele e ela, pondo em ordem o lugar onde vivem, limpando e arrumando seu lar, param juntos entre pilhas de vidros, materiais sintéticos, papel, latas, recipientes—o lixo da sua civilização que, eles sabem,é o cultivo da terra e é alimento, o trabalho de homens e mulheres, lixo, lixo, para ser levado e despejado em grandes montanhas que cobrem a terra, que sujam a água (…) Nada do que podem tocar ou ver ou segurar os ampara, em nenhum lugar podem se refugiar no simples bom senso da natureza (…)

      Em toda a sua história, o homem sempre foi capaz de se refazer com a visão das folhas que no outono retornam à terra, ou com a imagem de um muro iluminado de sol, que se desfaz, ou a lembrança de ossos brancos na beira de um riacho.

    E os dois ficam juntos, vendo a cidade do alto, olhando para o lugar em que as máquinas que os destroem, giram e amassam, no ar, na terra, sob a terra… ficam juntos, respirando, mas o ritmo de sua respiração fica mais curto, altera-se, quando pensam que o ar está cheio de corrosão e destruição.

     Eles abrem torneiras e a água corre facilmente, vinda do interior das paredes, mas quando se inclinam para beber ou para se lavar, seus instintos os impedem e têm de lutar contra eles. A água tem gosto de água parada, de corrupção, e por dez vezes já passou pelos seus estômagos e pelos seus rins e sabem que chegará o tempo em que não mais poderão tomá-la  e quando tentarem colher a água da chuva, descobrirão que também está inutilizada, por causa das substâncias químicas espalhadas no ar.

    Olham o voo dos pássaros, os dois juntos na janela, e é como se estivessem despedindo pesarosamente, com um pedido de desculpas silencioso, doloroso, desculpando-se pela espécie a que pertencem: tudo o que levaram àquelas criaturas foi destruição e veneno, e o voo suave e gracioso da ave não lhes traz alegria; é apenas outra coisa da qual devem desviar os olhos, com sofrimento.

     Essa mulher, esse homem inquietos, irritados, magoados, que dormem demais para esquecer, ou que não conseguem dormir, lembrando, procuram por toda parte algo que lhes sirva de amparo, algo que não se desfaça em repulsa no vazio—um deles apanha uma folha no chão, leva-a para casa, fita-a demoradamente (…) Já está sendo devolvida ao solo, mesmo enquanto permanece ali cativa, com sua forma tão perfeita quanto a vela de um barco enfunada pelo vento ou a concha de um molusco. Mas o que está sendo observado não é essa exatidão de linhas perfeitas, pois com um ligeiro desvio dos olhos pode-se ver a forma da matéria adelgaçando-se, esgarçando-se, sob os milhares de forças do crescimento e da morte. E é isso o que os olhos veem através da janela, na árvore de onde a filha caiu, pois é outono e a energia necessária à árvore para sobreviver durante o inverno já se concentra dentro dela—não, não é uma árvore, mas um conjunto de matéria que luta e estremece nos extremos da tensão (…)

    O homem e a mulher, humildemente sentados no canto do quarto, olham fixamente para aquela coisa indescritivelmente perfeita, uma folha dourada no outono, que acaba de cair flutuando da árvore, e então executarão alguns atos que vêm do seu íntimo, e que não podem justificar nem argumentar contra—apenas fecharão a mão sobre a folha, esmagando-a, reduzindo-a a pó, e a jogarão pela janela, olhando a poeira fina chegar ao solo, pois há certo alívio no pensamento de que a chuva, na próxima semana, levará o pó da folha de volta para a terra, para as raízes, para que, no ano seguinte, ela brilhe no ar novamente. Ou talvez a mulher coloque a folha gentilmente num prato azul sobre a mesa, e ironicamente se curve em uma reverência, e com uma espécie de pedido de desculpas, que está sempre na mente dos shikastianos agora, pense que as leis que construíram essa forma perfeita devem ter, têm de ser, no fim, mais fortes do que os lentos venenos que distorcem e pervertem a substância da vida (…)

     Portanto, esta é a condição dos shikastianos agora (…) Nada do que tocam ou veem tem substância, e assim eles repousam em imaginação, no caos, procurando forças nas possibilidades de uma destruição criativa. Estão vazios de tudo, menos do conhecimento de que o universo é um motor ruidoso de criatividade e eles, manifestações temporárias do mesmo.

     Criaturas infinitamente danificadas, reduzidas e degeneradas, afastadas das suas origens, quase perdidas (…) e agora não têm onde se firmar a não ser nos extremos mais ultrajantes da paciência. Uma paciência humilde e irônica, que aprende a olhar uma folha, perfeita por um dia, e a ver nela a explosão das galáxias e o campo de batalha das espécies. Os shikastianos, nesse fim ignóbil e horrível, enquanto lutam, procuram, correm entre seus artefatos desmoronados, esquálidos, erguem as mentes para os píncaros da coragem e da… vou usar a palavra fé. Depois de pensar sobre o assunto. Com cautela. Com um respeito exato e esperançoso.”

 

                                                 II

Escolhi o trecho do diário de Rachel que narra a morte da mãe porque tanto Olga Sherban quanto seu marido Simon são personagens cuja lembrança me deixa emocionado.

“Olga me acordou no meio da noite e disse que eu devia levá-la ao hospital. Telefonei para Suzannah, que veio com o carro do exército. Levamos Olga para o hospital e pedi que Suzannah voltasse e ficasse com as crianças. Levaram Olga para um pequeno quarto de uma das seções onde ela trabalhava (…) Ela disse ao médico-chefe: por favor, não… queria dizer, não me deem narcóticos. Geralmente ele trabalha sob as ordens dela. O médico segurou-lhe a mão, sorriu e assentiu com a cabeça, e fez um sinal aos outros médicos e enfermeiras e todos saíram e me deixaram a sós com Olga. Ela estava muito cansada. Sua pele, cinzenta. Os lábios brancos. Fez um movimento com a mão e eu a segurei nas minhas. Olhava para mim de algum lugar muito distante. Percebi que o máximo que podia fazer era continuar respirando. Disse, com voz subitamente muita alta: Rachel. Esperei, e esperei, e esperei. As luzes brilhantes sobre todo o quarto. Então ela sorriu, um sorriso de verdade, e eu soube que Olga ia morrer naquele momento, e ela disse: bem, Rachel… com carinho na voz. Então parou de respirar. Depois de alguns minutos fechei os olhos dela. Continuavam fitos em mim. Pelo menos parecia. Fiquei ao seu lado até ela estar fria. Não senti pena porque achei que não devia. De qualquer modo, eu não acreditava na morte. E, na verdade, desejava estar com ela. Então, chamei uma enfermeira e perguntei se precisava assinar algum documento, porque eu era o único membro da família que ainda estava na cidade. Deram-me uma xícara de café e um formulário para assinar. Voltei então para casa. Já estava claro. Suzannah estava dormindo no sofá da sala. Isso me fez gostar dela porque havia seis camas vazias que podia ter usado. Não procurou me consolar nem fez nenhuma tolice, apenas mais café e depois acordou as crianças e preparou café para elas. Sentamo-nos na cozinha e eu lhes disse que Olga tinha morrido e que eu ia tomar conta delas. E Suzannah também?, perguntaram. Naturalmente eu disse sim. Parecia a coisa mais certa.

    Compreendi que George vai casar com Suzannah. Como não percebi isso antes? Ela já faz parte da família. Há muito tempo.

    Agora que George e Benjamin viajaram e mamãe e papai estão mortos, o apartamento ficou enorme. Kassim está no quarto de George e Leila no de Benjamin. Isso é muito importante para eles. Antes, sentiam-se como refugiados que tínhamos acolhido. Mas agora são parte da família. Determinei certas tarefas para os dois, como conservar o apartamento limpo, fazer as compras, e Leila e Kassim sabem cozinhar um pouco. Ainda não os mandei para a escola. Não sei onde, nem como. Pensei em procurar Hasan e perguntar-lhe: Talvez essas crianças sejam como George?”

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[1] “(…) vou registrar as minhas lembranças da visita a Shikasta, então Rohanda, no Primeiro Tempo, quando essa raça era a glória e a esperança de Canopus”.

“Mas então já era Shikasta; Shikasta, a magoada, a danificada, a ferida. O nome já tinha sido mudado.”

[2] Publicada aqui pela Companhia das Letras na coletânea traduzida por Christian Schwartz & Sérgio Alcides, cf. As Entrevistas da Paris Review- volume 1  (2011).

[3]  Ou, mais precisamente Ref.: Planeta Colonizado número 5- ShikastaDocumentos pessoais, psicológicos, históricos sobre a visita de Johor (George Sherban), Emissário (Grau 9), 87º.  do período dos Últimos Dias, que comento na tradução de Aulyde Soares Rodrigues para a Nova Fronteira (1982).

[4] Aquele foi o ano em que ela lançou um romance (Diário de uma boa vizinha) com um pseudônimo, Jane Somers, para testar o sistema editorial e os resenhistas da Grã-Bretanha e dos EUA.

[5] Além dos já referidos  Shikasta e Os agentes sentimentais, este último um livro relativamente fraco do ponto-de-vista da fabulação, enfim, uma obra menor,  Canopus em Argos: Arquivos é formada por  três outros volumes que considero lindos, embora com um “alcance” menor do que a abertura da série: Os casamentos entre as zonas 3,4 e 5; As experiências de Sirius  e Planeta 8.

[6] Documentos relativos aos agentes sentimentais no Império Volyen, que cito na tradução de Aulyde Soares Rodrigues para a Nova Fronteira (1988).

[7] Não deixa de ser contraditório (beneficiando a complexidade do projeto, diga-se de passagem) que toda a intervenção “benéfica” de Canopus se processe numa linguagem que remete aos sistemas colonialistas europeus (que depois serão julgados no clímax do romance). Doris Lessing não deixa de ser uma filha do Império Britânico (ainda que de uma forma irônica), como foi ficando cada vez mais evidenciado pela fase tardia da sua obra.

[8] Em especial, as páginas referentes ao Festival da Criança, um ponto alto do romance.

[9] “O continente [a área dos EUA] estava repleto de lixo, de despojos do resto do mundo. Ao redor de cada cidade, vila ou até mesmo pequenos povoados no deserto, erguiam-se montes de refugo de objetos e alimentos que em outras partes do globo, menos favorecidas, significariam a diferença entre a vida e a morte para milhões de pessoas. Os visitantes desse continente ficavam maravilhados—mas com aquilo que o povo era ensinado a considerar como seu de direito.

    Essa cultura dominante determinou o modo de vida e a cultura da maior parte de Shikasta. Pois, independentemente do rótulo ideológico de cada área nacional, todos tinham em comum a ideia de que a tecnologia era a chave de todo o bem, e que o bem era o aumento da riqueza material, do ganho, do conforto, do prazer. Os objetivos reais da vida—há tanto tempo pervertidos, conservados por nós com dificuldade, mantidos a tanto custo—foram esquecidos, eram ridicularizados por aqueles que chegavam a ouvir falar deles, pois algumas insinuações distorcidas da verdade permaneciam ainda em algumas religiões. E durante todo esse tempo a terra estava sendo pilhada e despojada.”

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[10] Eu adoro particularmente o diário escrito por Rachel Sherban, talvez o ponto alto do livro enquanto estrutura romanesca.  Gosto demais também do reaproveitamento da figura de  Lynda Coldridge, remanescente de Os filhos da violência (mais especificamente do último volume da série, A cidade de quatro portas). Devo dizer, no entanto, que acho excessivamente caricaturais as passagens que enfocam os emissários de Shammat e acho muito longo—e cansativo—o  julgamento das raças brancas (poderia ter sido mais enxuto), apesar de serem, num livro de 450 páginas, pequenos senões.

[11] É o único verbo que me ocorre.

[12] Veja-se por exemplo, essas palavras sobre a ascensão do Partido Trabalhista ao poder: “Ele e os seus tinham-se deixado conquistar por tudo aquilo que deviam odiar e que tinham odiado, mas haviam-se esquecido de odiar. Nos primeiros tempos da sua história, tinham olhado de frente seus opressores, que provocavam e blefavam—e enganavam; e tinham-se sentido superiores porque eram honestos e defendiam a verdade. E, agora, eles também blefavam e provocavam e enganavam—como todo mundo, natualmente. Quem não o fazia? Quem não mentia e roubava e enganava e tomava tudo o que podia? Por que então tinham de ser diferentes?”

   E sobre as transigências  (tantas vezes ignóbeis) da “governabilidade”; “era um governo por grupos de pressão, administração por grupos de pressão, pois o governo não podia iniciar nada, apenas respondia”.

E sobre “vazamento” de informações secretas, numa das “anedotas sobre indivíduos”:

“Pouco a pouco tornou-se obcecado pela monstruosidade da natureza desses experimentos, o que teve como resultado uma neurose—o conflito do dever para com ´país´, ´ciência´, ´família´etc, que não pode resolver, fez com que ficasse doente. Durante anos guardou segredo da sua doença, pois não havia ninguém com quem pudesse discutir a situação (…) Providenciei para que conhecesse, em uma conferência internacional, um homem que trabalhava no mesmo campo, em um país ´inimigo´–coloco a palavra entre aspas porque, nessa época, os inimigos podem se tornar aliados da noite para o dia, ou são secretamente aliados… Esses dois homens, ambos carregando com dificuldade o peso do seu conhecimento, foram imediatamente atraídos um para o outro graças às suas preocupações semelhantes. Combinaram um modo de conseguir que as informações que possuem sejam passadas adiante (…) Cada vez mais esse homem se dedicará à disseminação dessas informações secretas, até ser  descoberto e preso.”

E sobre família:

“A vida da família desmoronou-se. Os casais raramente ficam juntos por muito tempo. As crianças, tendo de se defender sozinhas desde pequenas, sem afeição, formam grupos e logo se transformam em criminosos. Os estudiosos preocupam-se com esse problema, e frequentemente anunciam a solução: maior atenção dos pais aos jovens. As autoridades exortam as famílias nesse sentido, mas os resultados são quase nulos.

     Um aspecto digno de nota é que constantemente são mostradas histórias de famílias ideais, nos vários meios de comunicação e de propaganda, mas são exemplos de épocas passadas e dificilmente se relacionam com presente, mas são muito populares.”

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22/10/2012

DEZ DE DORIS

Filed under: autores centrais,Livros que eu indico — alfredomonte @ 14:30
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Quando gostamos muito de um autor, fazendo constantes referências a ele, e principalmente quando sua obra é composta de uma variedade enorme de títulos, é comum as pessoas interessadas perguntaram qual o livro que seria ideal para começar a leitura, ou quais os nossos  favoritos.

Como Doris Lessing desde 1950 publicou muito, resolvi fazer um roteirinho básico de leitura, com dez dos meus textos prediletos, destinado a quem deseje se iniciar no universo da “arqueóloga das relações humanas”. A numeração abaixo não tem qualquer sentido de hierarquia (e nem quer dizer que os livros não arrolados não sejam importantes,é apenas um vislumbre de uma produção multifacetada e riquíssima):

1)    A tentação de Jack Orkney– Acho que este pequeno romance, publicado como conto, em 1972, e assim mantido nas Collected stories- volume 2 (1978), é a melhor porta de entrada do mundo lessinguiano.  Jack Orkney é um político de esquerda ateu  que, a certa altura da vida, se deixa contagiar, quase como que uma infecção, por Deus. Imaginem, presos como somos a grades de referências e a personalidades encouraçadas ao longo do tempo, o que isso acarreta. Como li o texto de Lessing mais ou menos na mesma época da leitura de A negação da morte,  de Ernest Becker, eles ficaram indissociavelmente ligados na minha memória como grandes reflexões sobre fé, construção neurótica de caráter e prisões  referenciais.

2)     Memórias de um sobrevivente– Outro texto que pode servir de porta de entrada. Publicado em 1974, no Brasil teve o charme extra de ser traduzido por Clarice Lispector. Ele se passa num futuro indeterminado, em que os jovens se transformaram em hordas hostis, toda a estrutura social está precária e esgarçada, e os mais velhos tentam sobreviver refugiados em seus apartamentos. Num deles, a narradora percebe que as paredes “se abrem”, levando-a a realidades alternativas, a territórios diversos. De todas as distopias das últimas décadas, essa é a mais pungente e conseqüente, a meu ver. E é um dos textos mais lindos e perfeitos de uma autora que parece ter vergonha de construir textos lindos e perfeitos.

3)    Ao quarto dezenove (To room nineteen, no Brasil apenas “O quarto 19”)- Publicado inicialmente numa coletânea de 1963, pertence ao ciclo de The Golden Notebook, ciclo perigoso porque poderia confinar a escrita lessinguiana a uma questão de gênero. Contudo, como sempre, ela vai muito além de qualquer limitação. É curioso que a história foi homenageada por Michael Cunningham em As Horas (a parte da mãe do poeta), e nela, uma mulher aluga o mesmo quarto para ali fugir das suas referências. Aos poucos vai se apegando tanto àquele  espaço, vai de tal forma alargando sua permanência ali, que o leitor já deve desconfiar do desfecho. Uma obra-prima.

4)    O caderno  dourado(1962)- Atingiu o meio-século esse monumento do romance que faria por si só a glória literária de Doris Lessing não fosse pela equívoca questão do feminismo. Sejamos claros, é um livro feminista, mas é principalmente uma grande experiência com a forma do romance. Ao explodir a neurótica divisão da protagonista (que compartimenta sua vida em cadernos de notas estanques, de cores diferentes –um para a política, outra para a literatura, outro para os problemas psicológicos, e assim por diante), num caderno de notas (o dourado) que representa o caos e a piração do mundo, ela de certa forma absorveu toda a sua obra anterior, muito prestigiada pelos temas “africanos”. Estamos no pórtico da “grande” Doris Lessing, a narradora épica e tolstoiana do nosso tempo.

     Escolhi verter o título original (The golden notebook) de forma mais literal porque não suporto o título brasileiro (O carnê dourado), particularmente infeliz.

5)    A cidade de quatro portas (The four-gated City)- Em 1969, ela completou um ciclo que se iniciara em 1952, com Martha Quest. Os quatro volumes anteriores são belos romances de formação, com cenas inesquecíveis, e quem é apaixonado por Doris Lessing não os dispensa nem morto. Comparados, no entanto, ao quinto, empalidecem visivelmente: Martha Quest abandona a África e vai para a Inglaterra pós-guerra, e de mulher independente torna-se uma espécie de babá dos filhos de um intelectual. É o fantasma que persegue Lessing, mas ainda é pouco: há o espectro da guerra nuclear, há a possibilidade da criação de uma humanidade pós-nuclear, novas concepções da mente, do homem, da família. Enfim, é Freud, Marx e o Apocalipse, tudo no mesmo livro. Doris Lessing começa a conter a vida inteira em seus livros.

6)    Roteiro para um passeio ao Inferno (Briefing for descent into the Hell, 1971)- Foi o primeiro livro que li de Lessing e, até certo ponto, o mais impressionante. No início, ele se passa no plano da alucinação, evocando mitos civilizatórios e de barbárie, se passando em ambientes primitivos e arquetípicos; depois, ficamos sabendo que o protagonista é um professor que “pirou”. Mais uma vez, a corda bamba se dá entre o caos que pode dar início a um novo começo, ou a volta a uma ordem conformista e  compartimentadora, que só leva à neurose e ao desespero. Menosprezado por alguns, como se fosse uma mera ilustração das idéias de Ronald D. Laing (O eu dividido), esse romance é de uma riqueza assombrosa, provavelmente daí vem sua irregularidade genial.

7)    Gatos e mais gatos (On Cats, 2002)- Doris Lessing dedicou muitas páginas e alguns livros aos gatos. Esse livro reúne tanto ficção quanto passagens biográficas reveladoras. Como eu mesmo sou devoto da religião felina, ninguém deve estranhar a inclusão desse título. No entanto, sinceramente acho que o incluiria de qualquer forma, pela perspicácia e valor literário.

8)    Amor, de novo (Love, again, 1996)- O belíssimo romance sobre o envelhecer que marcou a volta da ficcionista maior da nossa época após alguns anos de mornidão (aqueles que escreveu depois do lindíssimo Planeta 8-Operação Salvamento, de 1982—nenhum deles chega a ser fraco, mas em todos parece faltar algo, um brilho maior). De fato, parece ter destravado de tal forma sua escrita que ela voltou a apresentar nova fase de brilho.

9)     As avós (The grandmothers, 2002) e A fenda (The Cleft, 2007)- Dois pequenos romances que também seriam ótimas introduções não fossem uma espécie de quintessencialização, de depuração extrema, dos temas que sempre foram dominantes na obra de Lessing: no primeiro, com perversidade, ela volta aos universos femininos sufocantes, na história de mães amigas que se tornam amantes dos filhos uma da outra numa espécie de “planeta em separado”, criando mais do que as famílias disfuncionais da moda, uma espécie de clã autofágico; no segundo, já pela ressonância fisiológico-sexual do título, ela opõe padrões civilizatórios, masculinos e femininos, numa parábola que eu considero politicamente incorreta (graças a Deus).

10)    Shikasta(1979)- Ficou o melhor por último, ou seja, a grande obra que deu munição aos críticos que sempre a menosprezaram (ou passaram a menosprezá-la daí para a frente, entre eles Harold Bloom e George Steiner).  É a história de como um planeta que era cuidado por uma potência extraterrestre “espiritual” (Canopus) perde essa conexão, e vai mergulhando no materialismo, na violência e na degradação ambiental, ambicionado pelo pragmático império rival de Canopus, Sirius, e saqueado pelos piratas de Shammat. Depois, vieram mais quatro romances da série Canopus em Argos: Arquivos, três deles extremamente belos, mas no quinto, Os agentes sentimentais (1983), ela já parecia mais desinteressada (e mais didática do que ficcional).

     O que impressiona especialmente em Shikasta é a alquimia da fabulação com a exposição reflexiva. É a literatura seguindo sua vocação de transcender a si mesma.

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A MARAVILHOSA VIDA LONGA DE DORIS LESSING

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Hoje, 22 de outubro, é aniversário de Doris Lessing, num determinando sentido o autor mais importante na minha trajetória de leitor, e ainda hoje uma das (re)leituras que mais encanto me trazem à minha vida. Por nenhum outro motivo, exumando algumas coisas antigas, extraí de 2007 observações ligeiras sobre dois textos dela que li naquele ano (em que ela ganhou o Nobel)[1] Não são nada demais, é só para a data não passar em branco, ainda mais depois da morte de Autran Dourado (em 30 de setembro), outra companhia diária por anos e anos, em agradecimento a tudo o que ela já me proporcionou desde 1982, quando a li pela primeira vez.

Quando se começa a ler O sonho mais doce, de Doris Lessing, é-se projetado de imediato no mundo dela, nas suas obsessões, essas mulheres que são cercadas por gente o tempo todo, essas dependências que se criam dentro das grandes casas[2] (e também a sobreposição de perspectivas—como um fato ou gesto poderia ser interpretado anos depois).

Por isso mesmo, o livro pode trazer ao apreciador da estupenda escritora inglesa, a sensação de déjà vu. No entanto, como não admirar o verdadeiro poder simbólico que ela conferiu à mesa da casa de Julia, que reúne as características de comunhão e proteção, opostas à dispersão, além da fartura (oposta ao abandono e à penúria); e enfim, é um apelo à unidade (oposta ao desmantelamento de todos os valores) e à fraternidade (oposta ao egoísmo intolerável dos que “sonham com a comunhão” e amam uma “humanidade futura”, ainda totalmente inexistente):

“Na cozinha, Colin acomodou Sylvia em volta da mesa, a MESA , de novo ampliada  para sua capacidade máxima (…) [Sylvia] Estava deprimida; Londres às vezes tem esse efeito em londrinos que estiveram fora e que, enquanto morava ali, não faziam muita ideia do peso, das numerosas dádivas e capacidades da cidade.Londres, depois da missão,  estava lhe dando um murro mais ou menos na região do estômago. É um erro ir muito depressa de, digamos, Kwadere, para Londres; antes, é preciso passar por alguma coisa equivalente a uma câmara de descompressão”.

Se a princípio parece fadado a ser um livro mais mais fraco entre os romances realmente longos de Lessing, O sonho mais doce cresce alucinantemente na sua centena de páginas final, apesar de haver uma certa falta de empatia com a personagem dominante nesse passo [Sylvia].

Pensado bem, o romance tem um movimento  de se abrir para o mundo e ao mesmo tempo de fazer as personagens sempre voltarem a certas constantes  [a mesa mítica, por exemplo],que o faz um inesperado irmão das histórias de John Irving (como Hotel New Hampshire  ou As regras da Casa de Sidra). No final, remontamos a Dickens, acompanhando gente que cresce, se afasta e “ganha o mundo”, mas sempre se reencontra.

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[1]  Eram textos que ainda não conhecia (demorei um pouco para ler O sonho mais doce, achando que seria a última obra dela, e queria guardá-lo ainda um pouco mais, como se fosse um amuleto para que ela continuasse entre nós—e não é que, ela hoje está completando 93 anos ?)– hoje o meu exemplar de Alfred e Emily é que faz essa função dentro do meu pensamento mágico; no início de 2007, eu relera O carnê dourado por conta de um curso sobre Cortázar; numa das aulas, fiz  uma leitura comparativa entre a obra-prima de Lessing e O jogo da amarelinha.

[2] As avós, a obra seguinte (bem mais curta, com um quê de Henry James na sua fusão de uma narrativa quase mundana e polida com um sopro de crueldade e perversidade) bagunça o coreto: são mulheres que centralizam a vida à sua volta, mas com um propósito bem definido: criar um “nós” entre elas e os filhos (que se tornam amantes), estabelecendo uma linha divisória com o “eles” (o resto do mundo, mesmo que sejam eventuais maridos e esposas).

Leitura em espelho: ANDANDO NA SOMBRA, de Doris Lessing, e A FORÇA DAS COISAS, de Simone de Beauvoir

    

                              I

“A memória é uma grande criadora de comédia. Décadas depois, um evento que foi doloroso, ou mesmo aterrorizante, pode parecer simplesmente absurdo”. Esse trecho é do primeiro volume autobiográfico de Doris Lessing, Debaixo da minha pele, e ajuda a entender Andando na sombra: esse segundo volume é um ajuste de contas com o comunismo, que dominou e assombrou a vida da grande escritora inglesa durante muitos anos, um “evento doloroso e aterrorizante” que, colocado sob perspectiva, revela-se absurdo.

Andando na sombra começa em 1949 , a partir da emigração da autora de Roteiro para um passeio ao inferno da Rodésia para a Inglaterra, e sua estréia como escritora, com a publicação de A canção da relva. Mesmo assim, tudo que não tem a ver com a experiência dela como militante do Partido Comunista fica secundário no livro, o que, ao mesmo tempo, representa sua força e sua fraqueza.

Doris Lessing já abordou muitas vezes essa sua desilusão, já explorou muitas vezes a dificuldade que tantas pessoas tiveram para se desvencilhar da lealdade para com ideais que nunca correspondiam à realidade e que, ao fim e ao cabo, legitimavam atrocidades cometidas na URSS, principalmente no período stalinista. Ela sempre associou a dificuldade de abandonar o partido e a própria idéia de comunismo, sem se tornar vítima de uma “má consciência”, de estar cometendo uma traição aos explorados e descamisados do mundo, como uma espécie de substituto do fervor religioso.

Nunca, entretanto, ela se estendeu tanto na questão como em Andando na sombra, onde a narração do período e a reflexão propiciada pelo olhar memorialista se alternam (processo que ela já usara magistralmente em Debaixo da minha pele, um de seus melhores textos), fazendo com que o livro seja quase  que o seu testamento, a súmula de suas idéias, o seu balanço final: “Será que têm interesse hoje essas antigas paixões políticas? Para mim o importante é o que se aprende com elas. Continuamos convivendo com o (hoje) incrível e imperdoável fato de que algumas das pessoas mais preocupadas com a sociedade, mais esperançosas quanto ao futuro, mais dedicadas, foram coniventes com os crimes do mundo comunista, recusando-se, primeiro, a reconhecê-los…. E essa atitude, essa relutância em criticar a URSS, continua até hoje e se evidencia na forma como Hitler é colocado na posição de criminoso-mor de nossos tempos, ao passo que Stálin era mil vezes pior…. O interesse, com certeza, é o porquê. Afinal de contas, essa situação, ou uma que lhe seja parecida, voltará a acontecer, num contexto diverso, numa história diferente. Tudo volta.”

Apesar do brilho com que ela captura toda a “atmosfera” da Guerra Fria, é justamente a concentração maciça de pormenores da atividade política que faz com que Andando na sombra não seja tão bom quanto Debaixo da minha pele. Casas,pessoas, obras e outros “detalhes” que aparecem nesse segundo volume, ficam apenas como um pano-de-fundo fuliginoso nessa sombria constatação a posteriori da comédia absurda que foi o engajamento dos anos 50, através da observação mortífera da memória.

Há maravilhosas observações sobre diversos outros temas (os gatos, por exemplo, que ganham três páginas inesquecíveis) e a narração da mudança, em 1962, para uma casa própria (no final do livro) é demais, com sua descrição da reforma, dos trabalhadores e dos vizinhos, porém tudo  fica acachapado no todo do livro e ele fica desarmônico, desigual.

E embora Andando na sombra seja esclarecedor no sentido de mostrar por que Doris Lessing tantas vezes colocou como alter ego das suas narrativas donas-de-casa (como em O verão antes da queda,  A cidade de quatro portas, Memórias de um sobrevivente, por exemplo), é pena que ela  equacione tão pouco sua vida com os livros que surgiram a partir dessa época, como os maravilhosos The golden notebook- O carnê dourado e Landlocked- Exilada em seu país.

Nesse ponto, Andando na sombra perde longe para as incríveis memórias de Simone de Beauvoir, principalmente Na força da idade & A força das coisas, nas quais política, literatura, existência dia-a-dia são capturadas de uma forma coesa e poderosa, e uma coisa não avassala a outra no texto, mesmo que o tenha feito na vida.

Mas a própria Simone de Beauvoir  adverte para as conclusões apressadas demais: “Apresento cada momento da minha evolução e é preciso ter a paciência de não fechar a conta antes do fim”.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de setembro de 1998)

                                    II

 Há poucas leituras mais apaixonantes e absorventes que a dos volumes autobiográficos de Simone de Beauvoir: Memórias de uma moça bem-comportada,Na força da idade, A força das coisas, Balanço Final.

A força das coisas (1963) recentemente ganhou nova tradução no Brasil (feita por Maria Helena Franco Matias, pela Nova Fronteira; já havia  outra, com o belo título de Sob o signo da história). Cobre um período mais ou menos similar ao retratado por Andando na sombra, de Doris Lessing.

Quando Paris foi libertada pelos Aliados e a Segunda Guerra terminou havia um clima de esperança e fraternidade entre simpatizantes e militantes do socialismo e do comunismo. As dissensões  entre todos e a Guerra Fria fizeram com que as posições se radicalizassem,  o engajamento muitas vezes descambou para o sectarismo fanático, e a postura pró-URSS levava a conflitos internos que Jean-Paul Sartre e Simone tentaram superar.

Já tendo contado esse período em Os mandarins (que deverá figurar como um dos grandes romances do século), por que tentar de novo? “Eu pensava que é projetando uma experiência no imaginário que apreendemos com mais clareza o seu significado. Mas eu lamentava que o romance sempre fracassasse em expressar sua contingência. Numa autobiografia, os acontecimentos se apresentam em sua gratuidade, seus acasos, suas combinações,tal qual se passaram: essa fidelidade faz compreender melhor do que a mais hábil transposição como as coisas acontecem a sério com os homens. O perigo é que, através da sua caprichosa profusão, o leitor possa não distinguir nenhuma imagem clara, apenas um amontoado confuso de coisas. O escritor não tem meios para contar simultaneamente os fatos de uma vida e seu significado. Nenhum desses dois aspectos da realidade é mais verdadeiro que o outro. Os mandarins, portanto, não me dispensava de prosseguir essas memórias…”

E, à medida que o leitor vai prosseguindo nas memórias de La Beauvoir, elas vão ficando cada vez mais desoladas e desoladoras. A Guerra da Argélia a transforma numa “exilada em seu país” , com ódio de seus compatriotas, que consentem com a tortura, o massacre, as injustiças gritantes. O governo de De Gaulle torna-se uma ditadura.

Ao mesmo tempo, a autora de A convidada (outro belíssimo romance) vai se dando conta do seu processo de envelhecimento: “Bruscamente esbarro na minha idade… Muitas vezes paro, espantada, diante desta coisa incrível que me serve de rosto. Detesto a minha imagem. Talvez as pessoas que me encontrem vejam simplesmente uma qüinquagenária que não está nem bem nem mal, tem a idade que tem. Mas eu vejo minha cara de velha, onde se instalou uma varíola da qual jamais me curarei”.

Mesmo assim ela vive, escreve, sente, ama, participa.E tudo isso é mostrado de uma forma quase milagrosa, mesmo no discurso ultra-organizado, cartesiano. Esse rigor discursivo, essa  austeridade e transparência, não conseguem neutralizar a contradição (instigante, aliás, e que fornece a chave do livro) entre viver o horror da ditadura e dar o devido valor a um instante, a uma paisagem,a um encontro, a um sentimento individual e fugaz. A vida salta dessas páginas, em que “a força das coisas” destrona o amor pelo absoluto que foi o núcleo do projeto pessoal de Simone de Beauvoir na sua infância,mocidade e começo da maturidade, como ela conta em Memórias de uma moça bem-comportada e no extraordinário Na força da idade, e que fica clara nos textos de Quando o espiritual domina, suas primeiras tentativas ficcionais mais articuladas. É possível que a vitalidade poderosa do livro seja resultado também do fato de ter sido escrito muito perto dos acontecimentos, ainda no calor da hora, ainda com o engajamento total da autora no que está contando, sem indulgência, sem conciliação, sem serenidade.

Os livros de Simone de Beauvoir dão o que ela pede a uma obra literária em A força das coisas: “…a recriação de um mundo que envolve o meu e que lhe pertence, que me desambienta e me ilumina, que se impõe a mim para sempre com a evidência de uma experiência que eu teria vivido”.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em  29 de setembro de 1998)

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(sobre Simone de Beauvoir):

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(sobre Doris Lessing):

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MÚLTIPLA DORIS LESSING

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Na semana passada, num artigo em que fazia “apostas” para o Nobel (ver abaixo), declarei que o primeiro nome a vir à minha mente era o de Doris Lessing. Era, na verdade mais uma indicação do gosto pessoal persistente, revelando uma paixão que dura há um quarto de século (a primeira vez que a li foi em 82, e comecei já com um dos melhores, Roteiro para um passeio ao inferno) do que uma aposta: aquela que é o maior nome vivo da ficção (agora com 87 anos) fora preterida nas duas oportunidades em que deram o prêmio a escritoras de língua inglesa: em 91, para Nadine Gordimer (fina estilista, autora de romances excelentes, e por quem eu tenho o maior respeito, só que seria o mesmo que premiar Lygia Fagundes Telles no lugar de Clarice Lispector); e em 93, para Toni Morrison, em minha opinião uma escritora decepcionante e menor, embora a unanimidade da crítica em torno de obras (Amada, A canção de Solomon, Jazz, Paraíso) que eu considero recheadas de partes ridículas e constrangedoras, me leve a crer que o erro de percepção é meu, e se trate de uma incompatibilidade fundamental mais do que um juízo crítico.

memórias

Parecia pouco provável que a essa altura do campeonato lhe atribuíssem o prêmio. E que surpresa: 50 anos após o anúncio de Albert Camus como ganhador, sai da caixinha o nome de um autor que me influenciou tanto quanto ele. Considero a premiação mais relevante desde 1969 (o ano de Samuel Beckett). Não que, de lá para cá, não fossem anunciados grandes nomes (Neruda, Soljenítisin, Bellow, Singer, Montale, Canetti, William Golding, Claude Simon, Pinter, Saramago, Naguib Mafhouz, Octavio Paz, Coetzee, Günter Grass), porém nenhum deles foi, é ou será o que Doris Lessing representa: um mundo, a recuperação épica de toda as fraturas individuais e desmoronamentos coletivos das últimas décadas, uma romancista de quem vários títulos parecem conter toda a vida, e que ainda por cima, numa chave mais miniaturista, a do conto, consegue igual maestria.

Quando ela estreou na literatura, em 1950, chegando a Londres, aos 30 anos, vinda da África (nasceu no Irã, em 1919, que então era a romanesca Pérsia), com The Grass is singing-A canção da relva, no qual conta a história de uma fazendeira branca assassinada por um criado negro, com quem tivera relações, parecia uma estilista tão fina quanto sua colega Nadine Gordimer, na tradição flaubertiana, capaz de tratar um tema explosivo com grande elegância. Volta e meia, aliás, ela publica um livro “perfeito” e bem acabado, talvez para nos mostrar: olha o que eu poderia ter sido, como eu faria bem isso…

Mas assim com a parede do apartamento da narradora do extraordinário Memórias de um sobrevivente insiste em se abrir para outros tempos e outras possibilidades da realidade, os romances de Doris Lessing começaram a romper os diques da mera ficção (enquanto isso ela estabelecia um sólido nome como contista, com suas histórias africanas, reunidas em dois volumes obrigatórios a qualquer um que ame a arte da narrativa, no Brasil intitulados A terra do velho chefe e Sabores do exílio).

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Isso aconteceu com duas obras-primas: 1º.) o ciclo de cinco romances que acompanha a protagonista Martha Quest da infância na África até a Terceira Guerra Mundial, Os filhos da violência, iniciado em 1952 e só concluído em 1969, com A cidade de quatro portas. Para mim, é a única realização romanesca do século XX a rivalizar com Guerra e Paz, em abrangência e ímpeto épico, e que lhe valeu o epíteto (dado por Irving Howe) de “arqueóloga das relações humanas”. Não é que a ficção lessinguiana seja epigonal ao realismo do século XIX, não, ela é tomada pelo mesmo furor arcaico e homérico do velho Tolstoi, um talento que parece natural, nem parece “literatura”. É claro que isso é mentira, sua fabulação é tão construída como a de qualquer outro, mas o efeito é poderoso e único; 2º.) o seu romance mais famoso, The golden notebook- O carnê dourado, onde a heroína, Anna Wulf, enfrenta a loucura e a fragmentação, o caos do mundo à sua volta, subdividindo-os em diferentes cadernos que procuram conter a realidade, até que essas frágeis molduras também explodem. Embora O carnê dourado tenha sido encampado como bíblia do feminismo, a sua incomparável arquitetura narrativa e seu visionarismo sempre o resgatarão de ficar datado e reduzido a um manifesto.

shikasta

Se Doris Lessing tivesse ficado por aí, já seria um dos maiores nomes da literatura. A partir da sua adesão ao sufismo, ela parece ter ficado cada vez mais ousada literariamente. Além de dois contos longos antológicos, O quarto 19 (homenageado em As horas) e A tentação de Jack Orkney (onde o protagonista, comunista, é contagiado pela idéia da existência de Deus), em 1971 aparecia Roteiro para um passeio ao inferno, que começa em pleno delírio do protagonista, um professor de literatura que “pira” e mistura medos pessoais, arquétipos e mitos civilizatórios. Aos poucos, ficamos sabendo que ele foi enviando por instâncias intergalácticas (ou deuses) para cumprir uma missão, mas a esqueceu e se perdeu na condição humana (daí, o sentido literal do título, “instruções para uma descida aos infernos”); em 1973, apareceu o livro que a tornou famosa no Brasil, O verão antes da queda (que está na linha daqueles livros que citei mais atrás, no comentário a The Grass is singing); em 1974, um ponto alto da sua produção, Memórias de um sobrevivente, que prenunciava um pouco o que estava para vir: no final da década de 70, Lessing se lançou na criação de uma série cosmológica, que contava os embates entre dois impérios, o de Canopus, e o de Sirius (um contra-império maléfico, Shammat, representava o desequilíbrio entre ambos). Os agentes de Sirius não conseguiam compreender os métodos e intenções dos agentes de Canopus porque acreditavam na tecnologia, no progresso material, na racionalização do mundo.

O primeiro resultado dessa confrontação (resumida aqui de forma tão simplória) foi Shikasta, o meu favorito pessoal entre todos os livros de Doris Lessing, numa preferência absolutamente aliterária. É uma lindíssima reescritura da história da Terra, e ainda que esnobado por críticos do naipe de George Steiner e Harold Bloom, acho que é um dos livros necessários na bagagem de qualquer existência. Por isso, considero-o além do literário.

O outro grande livro da saga, e complementar, é As experiências de Sirius, que tem algumas das cenas mais lindas já escritas pela grande escritora britânica.  Mas há dois outros volumes onde se pode dizer que ela atingiu a perfeição absoluta do relato literário, duas jóias de ourivesaria narrativa: Os casamentos entre as zonas 3,4 e 5 e Planeta 8-Operação Salvamento.

Quando a série termina, com Os agentes sentimentais, parece que é mais por desinteresse do que por outra coisa. O livro não é ruim, mas parece uma dramatização literária das suas idéias sintetizadas num livro emblemático: Prisão que escolhemos para viver:

 

Parece-me, cada vez mais, que estamos sendo governados por ondas de emoções de massa e que, enquanto o fenômeno durar, não será possível avaliar respostas sérias, ponderadas e desapaixonadas que poderiam nos salvar. Olhando para minha vida, que agora conta 60 anos, o que vejo é uma sucessão de grandes eventos de massa, de emoções inflamadas, de paixões selvagens e sectárias (…) Um movimento de massa sucede a outro; pela guerra e contra ela; pela tecnologia e contra ela. E cada um cria nas pessoas um determinado ânimo, violento, emocional, sectário, suprimindo os fatos que não convém, mentindo e abandonando a sensatez da fala ponderada que, para mim, é a única maneira de chegarmos à verdade (…) Todo avanço do mundo, todo o seu desenvolvimento, estão ligados à complexa capacidade de nutrir várias idéias, muitas vezes contraditórias, ao mesmo tempo.”

Por essa época, ela criou um alter ego e enganou as editoras e meios de comunicação na Inglaterra, com Jane Somers, uma escritora “menor” e bem acomodada à tradição da narrativa britânica. Da brincadeira resultaram Diário de uma boa vizinha e Se os velhos pudessem. A “verdadeira” Doris Lessing produzia, por sua vez, mais um grande e provocativo livro (que veio divulgar no Brasil), The good Terrorist- A terrorista. Já parecia, contudo, estar perdendo o fôlego.

Alguns anos depois, porém, reaparecia em plenos anos 90, com um romance maravilhoso e inusitado: Amor, de novo. E lançava pouco depois dois volumes autobiográficos: o primeiro, Debaixo da minha pele, é excepcional; já o segundo, Andando na sombra, deixou um pouco a desejar no seu acerto de contas com o comunismo, talvez porque ela já o tivesse feito em várias ocasiões, na sua ficção, e porque ela minimiza muito sua carreira literária, cujo desabrochar deveria ser o contraponto do livro.

E agora, na década que estamos vivendo, mais um romance ciclópico, O sonho mais doce (2001), sua chegada ao século XXI. E se alguém acha que ela virou uma doce e boa velhinha, basta ler o malicioso, incisivo e lapidar prefácio que escreveu (em 2003) para textos recuperados de Virginia Woolf (homenageando o único outro nome comparável a ela na literatura inglesa), A casa de Carlyle e outros contos. O prefácio é tão ela, e isso representa uma força tão grande, que até deixa a autora prefaciada em segundo plano.

(texto publicado originalmente em duas partes, em A TRIBUNA de Santos,  em 13 de outubro e 20 de outubro de 2007)

VER TAMBÉM SOBRE DORIS LESSING:

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ANEXO

APOSTAS PARA O NOBEL

Chega outubro e as pessoas começam a perguntar: quem você acha que merece ganhar o Nobel? Quais as suas apostas?

Há 50 anos Albert Camus foi anunciado como o vencedor. Quem sabe em 2007 o nome escolhido seja tão fundamental para a literatura…

Se Doris Lessing  é o primeiro nome a vir à mente do responsável por esta coluna, dos grandes escritores ativos da atualidade o que produziu as obras mais impressionantes em anos recentíssimos (caso de Submundo e Cosmópolis) foi Don DeLillo. Nos EUA, além dele, seriam escolhas mais que justas Philip Roth, John Updike, Thomas Pynchon,Joyce Carol Oates, Joan Didion, John Irving, sem falar no lendário Norman Mailer, cuja obra-prima Um sonho americano acaba de ser reeditada no Brasil.

Na América Latina, o peruano Mario Vargas Llosa é imbatível, embora o mais venerável (ainda que inativo) seja o argentino Ernesto Sábato (e não possamos esquecer o uruguaio Mario Benedetti). O Brasil também poderia passar a existir no mapa Nobel com o genial Dalton Trevisan, nosso maior escritor vivo, ou com Autran Dourado. Na nossa ex-metrópole, o nome mais cotado é mesmo o de Antônio Lobo Antunes.

A literatura da França anda muito fraca, mas seria justo lembrar o espanhol que criou obras-primas em francês, Jorge Semprún (A grande viagem, A segunda morte de Ramón Mercader, Um belo domingo); ou do tcheco Milan Kundera, que após ter escrito alguns dos melhores livros do século XX (A brincadeira, A valsa dos adeuses) na sua língua natal, adotou a língua do seu país de exílio nos seus últimos textos.

É, aliás, a síndrome Camus (escritor que veio da Argélia para o coração da literatura de língua francesa). Os “que vêm de fora” lentamente dominam a cena. Ninguém exemplifica melhor isso do que o extraordinário anglo-indiano que escreveu Os filhos da meia-noite, Os versos satânicos, O último suspiro do mouro e Fúria:  Salman Rushdie.

Mas se o império britânico agoniza e os imigrantes é que lhe trazem seiva nova, um escritor como Ian McEwan, com livros da categoria de Amsterdam, ainda representa seu último alento.

Aqui também não poderia faltar a canadense Margaret Atwood, de Madame Oráculo e Olho de gato. E um autor insólito e inventivo de um país que foi destruído e pulverizado, a Iugoslávia: Milorad Pavitch, de Dicionário Kazar e Paisagem pintada com chá. E por falar em paisagens na neblina temos ainda o albanês Ismail Kadaré, de Abril despedaçado e Dossiê H.

E se o mundo islâmico é a maior inquietação do Ocidente de Bush, um escritor lúcido e poderoso não pode faltar nesta lista: Táriq Ali, de Sombras da Romãzeira e Medo de espelhos.

Apostas feitas.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 6 de outubro de 2007)

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“Amor, de novo” e a vocação de Doris Lessing para “borrar quadros harmoniosos”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 15 de outubro de 1996)

Ela odeia esse tipo de afirmação, mesmo assim vamos lá: Doris Lessing é o maior nome vivo da ficção,  um gênio literário cujo conjunto da obra paradoxalmente ultrapassa os limites da própria literatura, com livros que fizeram a cabeça de muita gente, pela apaixonante discussão e idéias e problemas fundamentais das últimas décadas, pela sua percepção das relações humanas, pela sua capacidade de contar histórias que parecem nos incluir e nos dizer respeito infinitesimalmente.

Vista da maneira acima, sua obra ganha um ar monumental, seus maiores livros parecem conter a vida inteira! E isso é um pouco verdade, em se tratando de The golden notebook (que, no Brasil, virou algo como uma propaganda do baú da felicidade: O carnê dourado), Roteiro para um passeio ao inferno, os cinco volumes de Os filhos da violência ou Shikasta.

De vez em quando, no entanto, ela concentra-se num trabalho mais flaubertiano, no sentido de algo mais curto, mais trabalhado estilisticamente, mais harmonioso formalmente. É o caso de A canção da relva, Memórias de um sobrevivente ou Planeta 8 (este último pertence à mesma série iniciada por Shikasta, Canopus em Argos; arquivos). E é nesse nicho que se alinharia o seu novo livro, Amor, de novo (Love, again, na tradução de José Rubens Siqueira), não fosse por alguns detalhes. A própria Doris Lessing já afirmou que gosta de “borrar os quadros harmoniosos e seguros”.

Amor, de novo não é a história de amores geriátricos que a grande escritora inglesa já tentara, com resultados módicos (para ela), em Se os velhos pudessem (1984). Apesar de Sarah, a protagonista, ter 65 anos e apaixonar-se por dois homens na trama (um ator e um diretor, pois estamos, aqui, no meio teatral), ambos com metade da sua idade, não seria Doris Lessing quem cairia na complacência irresponsável e tola de algo tipo Ensina-me a viver.

Pois qualquer um que já viveu no ambiente de um grupo teatral, tal como ela o descreve, sabe como sempre há joguinhos sexuais, conquistas cobiçadas e (quando o grupo convive muito proximamente) transferência de expectativas da peça para as relações comezinhas. É claro que no contexto do romance essa “magia” é intensificada pelo teor da peça que o grupo está montando e que estreará numa cidadezinha francesa (e que eu não revelarei aqui).

Por outro lado, o torvelinho de exacerbação romântica em que Sarah é projetada serve para que ela resgate sua própria história amorosa, para que ela sobreponha diversas fases da vida, diversas camadas de experiências, o que acaba sendo, de certa forma, um “roteiro para um passeio ao inferno” por causa da dor, da ansiedade, do desejo sexual insatisfeito, mas, como sempre acontece nos livros de Doris Lessing, as paredes se abrem e algum autoconhecimento, mesmo que precário, é proporcionado. E obviamente ninguém quer isso porque é mais charmosos sofrer e obcecar-se do que ir ao fundo do poço, à origem de toda essa azáfama em torno do Outro:

“Sarah, que durante anos jamais pensara em se casar ou mesmo viver com um  homem, passaria agora a procurar um homem com quem pudesse partilhar aquele amor que carregava com ela como uma carga que tinha de depositar nos braços de alguém… Eus esquecidos brotavam como bolhas num líquido fervente, explodindo em palavras: Aqui estou—lembra-se de mim? Ela disse a si mesma que era como uma crisálida dependurada de um ramo, seca e morta por fora, mas cuja substância por dentro, perde a forma, ferve e se agita, sem nenhum objetivo aparente, e, no entanto, essa sopa acaba tomando a forma de um inseto: uma borboleta. Estava, obviamente, dissolvendo-se em alguma espécie de sopa fervente, que talvez viesse a assumir outra forma em algum momento. Não precisava ser nada como uma borboleta, ela já ficara contente com um como-era-antes”.

E como é que Doris Lessing borra seu confortável quadro, isto é, seu livro tão brilhantemente escrito, com um estilo que ninguém consegue superar hoje em dia? Através de uma série de pequenas frases, dirigidas ao leitor, provocando-o para que participe do jogo, como se o narrador estivesse a espreitá-lo tanto quanto a Sarah. Essas pequenas frases quebram a “perfeição” óbvia que Amor, de novo teria facilmente e funcionam como as paredes que se abriam para a percepção renovada da narradora do extraordinário Memórias de um sobrevivente, fazendo com que sejamos levados para aquele universo narrativo, mesmo    que queiramos ficar apenas como compadecidos espectadores dos lances cênicos.

Para quem estava sentindo falta da presença luminosa e arejante de Doris Lessing no mundo (fazia muitos anos que não tínhamos uma obra de ficção sua), esse novo e poderoso livro veio nos mostrar que, aos 77 anos (a ser comemorados em 22 de outubro próximo), ela continua arguta, generosa, impactante, a grande “arqueóloga das relações humanas” (como já foi chamada), e que ler um livro seu continua a ser uma experiência iniciática, para não dizer única.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2013/10/22/destaque-do-blog-shikasta-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/18/a-filha-da-primeira-guerra-alfred-e-emily-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/multipla-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/dez-de-doris/

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https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/a-maravilhosa-vida-longa-de-doris-lessing/

https://armonte.wordpress.com/2012/10/22/leitura-em-espelho-andando-na-sombra-de-doris-lessing-e-a-forca-das-coisas-de-simone-de-beauvoir/

A REDE SOCIAL

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA  de Santos, em 27 de maio de 1997)

Há uma sincronicidade nas queixas de quem acompanha diariamente o noticiário:  aos poucos sentimo-nos embrutecendo diante de fatos que parecem atingir um pico insuperável de horror, mas que são superados pelos fatos seguintes, e começamos a achar qualquer horror perfeitamente assimilável.

Para Doris Lessing, nas cinco conferências que compõem Prisões que escolhemos para viver (Prisons we choose to live inside, traduzido por Jacqueline Klimeck Gouvêa Lima), realizadas em 1985  (no Canadá), esse estado de coisas é uma reação inconsciente de forças retrógradas contra o impulso para a frente que se delineia nos  últimos séculos na humanidade. A tese do livro é que a raça humana atualmente dispõe de uma quantidade enorme de informações esclarecedoras sobre o nosso comportamento e as razões que nos fazem agir dessa ou daquela maneira em determinadas situações “mas que não as utilizamos na melhoria de nossas instituições e, conseqüentemente, de nossas vidas”.

Isso acontece porque contra a porção sensata, disposta a aprender, da mente humana, há uma camada de primitividade, selvageria e reações irracionais, muito mais profunda e arraigada, que responde imediatamente aos apelos “emotivos”: “Parece-me, cada vez mais, que estamos sendo governados por ondas de emoções de massa e que, enquanto o fenômeno durar, não será possível avaliar respostas sérias, ponderadas e desapaixonadas que poderiam nos salvar. Olhando para a minha vida, que agora conta sessenta e seis anos, o que vejo é uma sucessão de grandes eventos de massa, de emoções inflamadas, de paixões selvagens e sectárias (…) Um movimento de massa sucede a outro: pela guerra e contra ela; pela tecnologia e contra ela… E cada um cria nas pessoas um determinado ânimo: violento, emocional, sectário, suprimindo os fatos que não convêm, mentindo e abandonando a sensatez da fala ponderada, que, para mim, é a única maneira de chegarmos á verdade. E, paralelamente, enquanto todas essas convulsões sociais ocorrem, surge uma outra revolução, silenciosa, baseada na sensatez e na observação acurada de nós mesmos, de nosso comportamento, de nossas capacidades”.

O grande obstáculo à “revolução silenciosa” que é a observação acurada de nós mesmos, são as táticas dos governos para permanecerem no poder, utilizando a propaganda e manipulando a sociedade como um todo. Como se afirma no texto, na nossa “democracia” “as pessoas (as sortudas, as que não são excluídas) são treinadas apenas para atuarem em determinado estágio, quase sempre temporário, da tecnologia, educadas para atuarem a curto prazo”.

Nada do que é dito em Prisões que escolhemos para viver é original. O mérito, nem um pouco desprezível, desse pequeno livro é colocar as coisas de maneira clara, impondo-se como uma boa síntese da nossa época.

Uma das causas do nosso aprisionamento na teia de primitividade e emoções de massa é o medo do pensamento individual, medo de contrariar o grupo, medo de ficar sozinho. Quem já leu as obras de ficção, as maiores da nossa época, de Doris Lessing, sabe que essa é uma antiga preocupação da genial escritora inglesa: a falácia da valorização do indivíduo pela sociedade democrática: “O fato é que vivemos nossas vidas em grupos—grupos familiares, profissionais, sociais, religiosos e políticos. Pouquíssimas pessoas, na realidade, são felizes sozinhas, e tendem a ser vistas pelos vizinhos como esquisitas, egoístas ou coisa pior. A maioria não suporta a solidão por muito tempo. Estão sempre querendo pertencer a grupos (…) O perigo não está em pertencer a um grupo, mas em não compreender as leis que governam o grupo e, conseqüentemente, os indivíduos. A coisa mais difícil do mundo é manter uma opinião pessoal dissidente, sendo membro de um grupo”.

Sofremos uma lavagem cerebral diária para que não pensemos por nós mesmos, para aderirmos a uma visão-padrão, para nos embrutecermos diante dos fatos concretos que aparecem à nossa frente e quebram a conveniente superfície das coisas. E tanto o conhecimento que poderíamos ter sobre nós mesmos quanto a sensatez que poderíamos cobrar de nós mesmos vão por água abaixo para podermos nos manter “ajustados”, “antenados” com um mundo que se dissolve a cada dia.

Ler Doris Lessing, e isso fica bem claro em Prisões que escolhemos para viver, é uma atitude antípoda à leituras dos livros de auto-ajuda, que prometem fazer com que nos ajustemos à sociedade. Lessing propõe justamente o oposto: o ajustamento à sociedade causa a fragmentação da mente e da personalidade (tema do magnífico Roteiro para um passeio ao inferno, possivelmente seu romance mais marcante, ao lado de A cidade de quatro portas e de Shikasta, embora não haja um livro de Doris Lessing que não valha a pena ler).

As fórmulas-miojo da auto-ajuda querem tornar confortável nossa prisão, simplificando a realidade, assim como os dogmas, as posições sectárias, a indústria cultural. Contra a lavagem cerebral da simplificação, o melhor antídoto são as iluminadoras palavras abaixo:

   “Todo avanço do mundo, todo seu desenvolvimento, estão ligados à complexa capacidade de nutrir várias idéias, muitas vezes contraditórias, ao mesmo tempo”.

VER TAMBÉM NO BLOG:

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25/01/2011

O amante de Lady Chatterley: o infernal e a promessa do paradisíaco

Um presente inesperado para os leitores brasileiros na nova tradução de O amante de Lady Chatterley (co-edição da Penguin e da Companhia das Letras, e realizada por  Sérgio Flaksman) é o soberbo ensaio introdutório de Doris Lessing (para mim, o maior autor vivo), que eu lera há alguns anos quando foi reproduzido no Estadão, se não me falha amemória, e que mostra como a presença da guerra marca definitivamente a atmosfera do livro. Abaixo um trecho para servir como epígrafe de uma resenha mais antiga sobre o livro:

“nunca um romance mais persuasivo de propaganda tinha sido escrito em favor do casamento, da fidelidade profunda que vem não da moral pública, ou do que chamamos de resoluções tomadas por fulano ou sicrano, ou da religião, mas da unidade entre um homem e uma mulher que torna totalmente impossível o sexo casual ou qualquer tipo de infidelidade”.

( 0 texto a seguir foi publicado originalmente em A TRIBUNA de 02 de dezembro de 2003)

       Entre as comemorações literárias de 2003, talvez a mais ilustre seja a dos 75 anos de publicação de O amante de Lady Chatterley (e olhe que em 1928 foram lançados Contraponto, de Aldous Huxley, e Orlando, de Virginia Woolf), cuja mais recente tradução, salvo engano, é a de Glória Regina Loreto Sampaio, lançada pela Graal (ligada à Paz & Terra).

      Como se sabe, a trajetória editorial de O amante de Lady Chatterley foi acidentada (complicada, ademais, pela morte de D.H. Lawrence em 1930). Há várias versões do romance, que foi considerado pornográfico e circulou em cópias piratas ou mutiladas.

       “,,,poderíamos permitir-nos ouvir a respeito dos assuntos mais íntimos do próximo se houvesse respeito pela alma humana que se debate e luta, se fôssemos tomados por um espírito de fina solidariedade (…) é aí que se coloca a imensa importância do romance, se bem utilizado. Ele pode informar o fluxo de nossa consciência solidária, levando-a a lugares novos, fazendo nossa solidariedade refluir, afastando-a de coisas que já morreram… se corretamente manipulado pode revelar os lugares mais recônditos da existência, pois é naqueles espaços secretos e passionais da vida que a maré de percepção sensível precisa fluir e refluir, limpando e refrescando”.

      Como é difícil fazer justiça a uma obra desse quilate, é preciso ressaltar o ângulo que mais interesse tenha 75 anos depois e que permita verificar melhor as qualidades e defeitos do texto, pois como todos os grandes trabalhos de Lawrence (por exemplo, Mulheres apaixonadas e A serpente emplumada) a história de Constance Chatterley é desigual e desequilibrada, é genial, as prolixa demais e o protagonista masculina, Mellors, o guarda-caça (ou couteiro) que se envolve com a esposa do patrão revela-se um chato de galocha com suas preleções e diagnósticos civilizatórios.

Isso acontece porque O amante de Lady Chatterley é um romance de idéias, que aciona imagens poderosas para dar vida e substância a essas idéias, mas que muitas vezes derrapa no discursivo.

      Por um lado há um estado demoníaco da civilização: finda a Primeira Guerra, os homens estão mutilados, metafórica e literalmente (como Clifford, o marido de Constance), a natureza  e o caráter das pessoas estão sendo devorados pela Revolução Industrial, cujo símbolo são as infernais minas de carvão que desfiguram as aldeias e a paisagem da região onde se passa o romance.

      Em contrapartida, há o bucólico e o idílico: o bosque de  Wragby (propriedade de Clifford, mas alienada dele, que é uma ausência ali), no qual Mellors descobrirá a mulher-fêmea que habita Lady Chatterley, longe da falsidade (e fatalidade) do progresso e da civilização industrial. Nesse sentido, é emblemática a cena em que o casal, nu, se cobre de flores. Nem por isso, Mellors deixa de ter consciência da corda bamba em que vive. Constance lhe pergunta o sentido da sua existência. Ele diz: “Não creio no mundo, nem no dinheiro,nem no progresso, nem no futuro de nossa civilização. Se houver um futuro para a humanidade, terá de ser algo muito diferente do que temos hoje”.

      Parece simplista e regressivo, e de certa forma é mesmo. Mas Lawrence era um grande poeta (foi o sucessor legítimo de Thomas Hardy, autor de Tess, em capturar a Inglaterra agrária que sobreviveu à Revolução Industrial) e consegue momentos belíssimos nessa contraposição do infernal e do paradisíaco (ou da promessa do paradisíaco, sempre ameaçado e frágil).

     O livro só perde sua intensidade quando quer se explicitar demais. Lawrence, aliás, escreveu um pós-escrito (encontrável em outra tradução, a de Fernando Ximenes, pela Ediouro; há ainda uma tradução mais conhecida e reeditada, a de Rodrigo Richter) em que formula claramente suas idéias, e de um modo mais belo e contundente do que o exposto na pedagogia fálica entre Mellors e Constance, que revolta tanto—e com razão—as feministas. Para ele, as pessoas desvitalizaram-se por esquecer das suas necessidades verdadeiras, que estão ligadas ao ritmo de nascimento, morte e regeneração do cosmo e das estações.

     O ensaio permite entender melhor por que ele inicia o romance com as famosas palavras, “Nossa época é essencialmente trágica; assim sendo, recusamo-nos a vivê-la como tal. O cataclismo aconteceu, estamos entre as ruínas”. O curioso é que, considerado imoral e desmoralizador dos costumes, o grande escritor inglês defende o casamento e a igreja católica por estarem sintonizados com as profundas necessidades interiores do ser humano: “Eu entendo que o matrimônio, ou algo parecido com ele, é essencial, e que a igreja antiga conhecia bem as necessidades persistentes do homem, além das necessidades espasmódicas de hoje e de ontem”.

    Setenta e cinco anos depois, todas as questões de O amante de Lady Chatterley ainda estão presentes.

    E a mais trivial e deliciosa é: Lawrence seria mais Mellors ou Lady Chatterley?

(uma versão mais condensada da resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de 25 de janeiro de 2011)

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