MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

28/06/2014

O triunfo inesperado do romance: “Submundo”, de Don DeLillo

submundolivrodon

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos  em 02 de outubro de 2001)

 I

     Amanhã, 03 de outubro, a vitória dos Giants sobre os Dodgers no campeonato de beisobol em Nova York, estará completando 50 anos. A bola que decidiu a partida desapareceu. Ela é um dos elementos que interligam a trama de SUBMUNDO[“Underworld”, 1997, aqui no Brasil traduzido pelo grande Paulo Henriques Britto], obra-prima de 700 páginas de Don DeLillo, cujo prólogo é a sensacional narração do histórico jogo de 1951 e é intitulada O triunfo da Morte, alusão ao quadro de Brueghel (fica-se sabendo, ao longo da partida, que os russos realizaram seu primeiro teste , patômico, ombreando-se aos EUA na capacidade de destruir o mundo).

O vizinho de bairro de DeLillo, Paul Auster publicou em 1992 Leviatã, no qual se aborda a questão do terrorismo; o livro, aliás, é dedicado ao autor de SUBMUNDO que, na mesma época lançara outro de seus romances geniais (Mao II), no qual se lia: “Quem poderá ser levado a sério? Apenas o crente letal, aquele que mata e morre pela fé. Tudo o mais é absorvido. O artista é absorvido, o maluco de rua é absorvido, tratado e incorporado. Somente o terrorista ficou de fora. A cultura ainda não conseguiu descobrir como assimilá-lo. É confuso quando o terrorista mata um inocente. Mas essa é exatamente a linguagem que chama a atenção, a única linguagem que o Ocidente entende”.

Um terceiro motivo para se falar de SUBMUNDO e mostrar por que ele é uma leitura obrigatório no momento, ao contrário das supostas e inúteis previsões do sr. Nostradamus (que parecem um terreno baldio, onde se pode achar tudo que se quer): a capa utiliza uma foto perturbadora de André Kertész, na qual vemos o World Trade Center (por sinal, várias vezes citado na quarta parte do romance, ambientada nos anos 70), através de um ângulo sinistro e ameaçador. Com os fatos recentes, a capa ganhou um significado ainda mais tétrico, bem como o livro.

E um escritor fantástico como DeLillo não deixa escapar nada, tudo volta no romance com um novo significado: uma reprodução do quadro de Brueghel (na revista Life) cai nas mãos de Edgar J. Hoover, o chefão da inteligência americana na Guerra Fria, homem reacionário, reprimido e com fobia de micróbios, em plena partida entre Giants & Dodgers. O significado do quadro volta à tona quando ele vai, em 1966, ao famoso Baile Preto e Branco, no Plaza de Nova York, e há protestos contra a Guerra do Vietnã, incluindo uma dança macabra na própria festa, repleta de chiques, ricos e famosos.

Já nos anos 80, conhecemos a velha freira, deliciosamente chamada Irmã Edgar, também reacionária e paranóica com a possibilidade de qualquer tipo de contaminação, assistir ao triunfo da morte nas ruas do Bronx: quarteirões devastados, assolados pela violência e pela AIDS (ela recebe dinheiro de um grafiteiro soropositivo para informar sobre carros abandonados nas ruas).

delilloSubmundo de Don Delillo

II

É muito difícil fazer justiça a SUBMUNDO num artigo. O livro é grandioso demais, já pela estrutura complexa. De 1951 ele salta para os anos 90 e daí vai recuando novamente.

O curioso em Don DeLillo é como um escritor que trabalha com uma realidade em ruínas, com lixo cultural, com a ausência de totalidade, pode ter criado um romance total, numa linguagem tão elevada, se o termo não soar muito pomposo.

O próprio título, como o livro inteiro, é cheio de associações, remontando ao título de um suposto filme subversivo com relação ao regime soviético, feito por Eisenstein (o diretor de O encouraçado Potemkim & Ivan, o Terrível) e também ao título de um filme de gângster do cinema mudo. Por outro lado, também alude ao subterrâneo mundo do lixo, área de trabalho do protagonista, Nick Shay, que nos informa: “Minha firma trabalhava com rejeitos. Éramos manipuladores de rejeitos… fazíamos a cosmologia dos rejeitos… O lixo é uma coisa religiosa. Sepultamos os rejeitos contaminados com sentimentos de reverência e terror”.

Nick é um personagem enigmático, que assassinou um homem e foi parar num reformatório, sendo doutrinado por jesuítas (ele também possui, supostamente, a bola da partida de 03 de outubro). Seu irmão, Matt, pensando sobre ele, chega à seguinte conclusão: “Quando Nick morrer, uma equipe de metafísicos examinará a caixa preta dele… mas nada garante que  vão encontrar a menor pista que seja”.

Nick e Matrt são personagens fabulosos. Esse é outro mistério de Don DeLillo: como um autor que trabalha com um mundo fantasmagórico e insubstancial pode criar personagens tão incríveis? Já em Ruído Branco, o protagonista (contaminado por uma nuvem tóxica que infesta a região onde mora) e sua família eram inesquecíveis.

Em SUBMUNDO, além dos irmãos Shay, temos Klara Sax, a artista plástica conceitual, com a qual Nick teve um envolvimento aos 17 anos, quando ela ainda era uma dona de casa, esposa do professor de xadrez de Matt, o comovente sr. Bronzini, que termina a vida solitário no Bronx, com sua irmã meio esclerosada, enquanto Klara (aos 70 anos) e seguidores fiéis pintam um cemitério de aviões no deserto. Temos a esposa de  Nick, Marian, que tem um caso com o sócio dele e que considera o marido “demoníaco”, procurando desvendar seu estranho passado. Temor Cotter, o garoto negro que, na versão de DeLillo, ficou  inicialmente com a bola do jogo, mas temos principalmente seu pai, Max Martin, cuja história atravessa o romance como contraponto da inversão temporal realizada pelo maior  dos escritores norte-americanos.

Temos Ismael, o grafiteiro, que além de pichar vagões, também faz incursões homoeróticas no subterrâneo-submundo do metrô, temos a já citada irmã Edgar; temos até um psicopata, o qual assassina pessoas nas estradas do Texas…

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III

Paulo Francis, com a superficialidade que lhe era peculiar nos últimos anos, saudou em  1988 A fogueira das vaidades, de Tom Wolfe, com as seguintes palavras: “Nenhum filme ou jornal de tevê tem ou seguiu remotamente, o alcance desta obra, que estabeleceu a primazia da literatura sobre outros meios de comunicação”. A meu ver, Wolfe nem de longe conseguiu isso, mas talvez Francis já estivesse pressentindo que SUBMUNDO estava vindo por aí e encaixar-se-ia perfeitamente nas suas palavras.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2014/06/28/mao-ii-de-don-delillo-o-indizivel-o-impensavel-e-a-linguagem-que-o-ocidente-entende/

https://armonte.wordpress.com/2011/05/24/destaque-do-blog-ponto-omega-de-don-delillo/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/09/se-todas-as-direcoes-sao-a-mesma-cosmopolis-e-o-futuro-insistente/

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MAO II, de Don DeLillo: o indizível, o impensável e a linguagem que o Ocidente entende

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delillodelillo

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de março de 1998)

Em sociedades reduzidas à conspurcação e ansiedade, o terror é o único ato significante. Existem coisas demais, mais coisas e mensagens e significados do que poderíamos usar em dez mil vidas. Inércia-histeria. É possível a história? Existirá alguém sério? Quem poderá ser levado a sério? Apenas o crente letal, aquele que mata e morre pela fé. Tudo o mais é absorvido. O artista é absorvido, o maluco de rua é absorvido, tratado e incorporado. Somente o terrorista ficou de fora. A cultura ainda não conseguiu descobrir como assimilá-lo. É confuso quando o terrorista mata um inocente. Mas essa é exatamente a linguagem que chama a atenção, a única linguagem que o Ocidente entende”.

Eis um trecho de MAO II (na tradução de  Edson Rocha Braga), de Don DeLillo, a história de Bill Gray, famoso escritor recluso que vive escondido, enquanto tenta concluir um livro, reescrevendo-o interminavelmente. Scott, ex-junkie e fanático pela obra de Gray, e Karen, ex-discípula do reverendo Moon, vivem com ele. Um dia, Scott, a contragosto, traz Brita, obscura fotografa de Nova York, para fazer uma sessão com Gray.

Após essa incursão de Brita na esquiza vida doméstica dos três, Gray inesperadamente visita Nova York e foge de Scott, ao receber uma proposta do editor Charles Everson: fazer, em Londres, a leitura pública de poemas de um suíço mantido como refém por uma milícia maoísta de Beirute, capital mundial do terrorismo.

Gray termina não fazendo a leitura, contudo decide aproximar-se mais do Terror, tentando chegar a Beirute (via Atenas) para conhecer o líder da milícia, Abu Rashid…

delillo

MAO II é um romance lindíssimo. Dá até para imaginar o filme que o genial David Cronenberg faria dele[1]. DeLillo é um autor perturbador,na linha de J.G.Ballard, Philip K. Dick  e de Thomas Pynchon, este último tão recluso e isolado na vida real quanto Bil Gray.Não é à toa que desde o premiado Ruído Branco (1985) ele se transformou num dos ficcionistas mais importantes e influentes dos EUA.

O leitor é apresentado a um mundo fantasmagórico (o que é bem representado pelo título, que alude a um trabalho de Andy Warhol, utilizando—como fez com relação a outras personalidades—o rosto do líder chinês), no qual arte, mídia, lixo, loucura e terrorismo se refletem mutuamente, no qual se pode fazer intermináveis elucubrações (e a elas se dedicam todos os personagens de MAO II), porém nunca se consegue criar qualquer significado estável.

Um mundo assim de escombros, de dissolução, de horror, não impede que o grande escritor norte-americano consiga (ao contrário de Ballard, Dick & Pynchon) criar personagens humanos e interessantes, que nos envolvem em seus desconcertantes (des)caminhos, como Karen, ao ir para Nova York atrás do volatilizado Gray, ingressando, com os restos da sua devoção (não ao Mao, mas ao Moon), no universo dos homeless e sua linguagem peculiar. Poucas vezes de leu algo tão bonito e desesperado na ficção atual que tangencia o apocalíptico. Talvez só na Doris Lessing de Memórias de um sobrevivente & Shikasta, ou no Paul Auster  de No país das últimas coisas., ou mesmo em Leviatã (dedicado, aliás, ao autor de MAO II).

Além da riqueza das questões que levanta, esse romance assombrado e assombrador merece ser consagrado como um dos romances da década de 90 pela sua perfeita estrutura circular. A história de Bill Gray é emoldurada por duas impressionantes cenas (num estádio e em Beirute)em que se mostra a adesão de uma massa a um líder carismático (Moon no começo; o terrorista Abu Rashid no final) e que têm como momento culminantes cerimônias de casamento que desafiam todo o poder da Razão.Assim como as palavras impressionantes de Don DeLillo desafiam o indizível e  o impensável.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2014/06/28/o-triunfo-inesperado-do-romance-submundo-de-don-delillo/

https://armonte.wordpress.com/2011/05/24/destaque-do-blog-ponto-omega-de-don-delillo/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/09/se-todas-as-direcoes-sao-a-mesma-cosmopolis-e-o-futuro-insistente/

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[1] Nota de 2014: Cronemberg acabaria fazendo uma versão (para mim, um filme menor na sua produção, apesar de muito acima da média do que se faz hoje em dia) de outro DeLillo, Cosmópolis.

delillo

09/09/2012

“Se todas as direções são a mesma”: COSMÓPOLIS e o futuro insistente

“O futuro se torna insistente… o passado está desaparecendo. Antigamente, a gente conhecia o passado, mas não o futuro. Isso está mudando… Precisamos de uma nova teoria do tempo”.

“A cidade come e dorme barulho. Ela faz barulho em qualquer século. Faz os mesmos barulhos que fazia no século XVII, mais os outros que surgiram de lá para cá

(a resenha abaixo foi  publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,  em 16 de novembro de 2004)

“Estava parado na rua. Não havia o que fazer. Nunca havia imaginado que isso pudesse acontecer com ele. Era um momento esvaziado de urgência e propósito. Ele não havia planejado aquilo. Onde estava a vida que ele sempre levara?  Não tinha vontade de ir a lugar nenhum, não tinha nada em que pensar, não havia ninguém à sua espera. Como podia dar um passo em determinada direção se todas as direções eram a mesma?”

Tenho examinado, aqui nesta minha coluna, a solução que grandes escritores encontraram (ou não) para representar o início do novo milênio.

Nada mais justo que terminar a série com Don DeLillo, autor do maior romance dos derradeiros anos do século passado, Submundo, e cujo Cosmópolis (2003) possivelmente representa a mais alta literatura de ficção que se pode encontrar nesses primeiros anos do novo século-milênio-era, seja lá o que for. Na história do último dia (em abril de 2000) do jovem—já se sentindo ultrapassado (“Eu sempre fui mais jovem que todo mundo. Um dia isso começou a mudar”)—milionário Eric Packer, mega-especulador financeiro, que perde sua fortuna e é assassinado enquanto cruza Nova Iorque para cortar o cabelo (“Ele não sabia o que queria. Então descobriu. Queria cortar o cabelo”), numa limusine gigantesca forrada com cortiça, a grande tentação de qualquer resenhador é citar, citar, citar (mesmo porque a tradução de Paulo Henriques Britto, publicada pela Companhia das Letras, é irretocável).

Como se trata de um texto alucinantemente perfeito, pode-se extrair citações incríveis quase que página a página, embora talvez o melhjor seja seguir o conselho da primeira: “Dizer o quê? Era uma questão de silêncio, não de palavras”.

Parente espiritual do Psicopata americano, de Bret Easton Ellis, Eric move-se (embora o trânsito com freqüência fique congestionado, inclusive com violentas manifestações contra a globalização, numa das grandes seqüências do livro) num mundo em que a obsolescência é muito rápida e no qual as relações esgarçam-se ao ponto da insubstancialidade: “Levou um instante para se dar conta de que conhecia a mulher no banco de trás do táxi ao lado. Era a mulher com quem ele havia se casado 22 dias antes”.

A característica mais intrigante em DeLillo é que ele consegue manter o estatuto épico, que é básico para uma narrativa (ainda que tão maltrato na ficção contemporânea), mesmo quando mergulha fundo na estética minimalista mais fantasmática. Como Clarice Lispector e Robert Musil, ele mantém-se no mundo do grandioso, evocando mitos e potências muito maiores do que a da pós-modernidade: “Estavam cercados por um crescendo de buzinas. Havia naquele barulho alguma coisa que ele não queria apagar da mente. Era o tom de alguma dor fundamental, um lamento tão antigo que parecia aborígene. Pensou em homens esfarrapados em bandos, dando urros rituais, unidades sociais formadas para matar e comer. Carne vermelha. Era esse o chamado, essa a necessidade gritante”.O motorista de Eric: “Ibrahim parecia desconfiado e reparado, uma preparação que ele adquirira em algum deserto, setecentos anos antes de nascer”. O assassino de Eric lhe diz: “Mesmo quando você se autodestrói, você quer fracassar mais, perder mais, morrer mais que os outros, feder mais que os outros. Nas tribos antigas o chefe que destruía mais coisas dele mesmo que todos os outros chefes era o mais poderoso”.

A citação que abre este texto mostra como a jornada de Eric por Nova Iorque e sua própria vida são desprovidas de sentido. Cosmópolis, porém, mostra que a literatura ainda faz todo o sentido do mundo.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2014/06/28/o-triunfo-inesperado-do-romance-submundo-de-don-delillo/

https://armonte.wordpress.com/2014/06/28/mao-ii-de-don-delillo-o-indizivel-o-impensavel-e-a-linguagem-que-o-ocidente-entende/

https://armonte.wordpress.com/2011/05/24/destaque-do-blog-ponto-omega-de-don-delillo/

VER O MESMO TEXTO NUM CONTEXTO MAIS AMPLO EM:

https://armonte.wordpress.com/2010/05/17/doctorow-rushdie-delillo-e-a-virada-do-milenio/

Dois grandes romances da virada do milênio (ou por que Don DeLillo deveria ganhar o Nobel): MAO II e SUBMUNDO

UM ROMANCE ASSOMBRADO E ASSOMBRADOR

Resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de março de 1998

“Em sociedades reduzidas à conspurcação e ansiedade, o terror é o único ato significante. Existem coisas demais, mais coisas e mensagens e significados do que poderíamos usar em dez mil vidas. Inércia-histeria. É possível a história? Existirá alguém sério? Quem poderá ser levado a sério?”

Eis um trecho de MAO II (na tradução de  Edson Rocha Braga), de Don DeLillo, a história de Bill Gray, famoso escritor recluso que vive escondido, enquanto tenta concluir um livro, reescrevendo-o interminavelmente. Scott, ex-junkie e fanático pela obra de Gray, e Karen, ex-discípula do reverendo Moon, vivem com ele. Um dia, Scott, a contragosto, traz Brita, obscura fotografa de Nova York, para fazer uma sessão com Gray.

Após essa incursão de Brita na esquiza vida doméstica dos três, Gray inesperadamente visita Nova York e foge de Scott, ao receber uma proposta do editor Charles Everson: fazer, em Londres, a leitura pública de poemas de um suíço mantido como refém por uma milícia maoísta de Beirute, capital mundial do terrorismo.

Gray termina não fazendo a leitura, contudo decide aproximar-se mais do Terror, tentando chegar a Beirute (via Atenas) para conhecer o líder da milícia, Abu Rashid…

MAO II é um romance lindíssimo. Dá até para imaginar o filme que o genial David Cronenberg faria dele. DeLillo é um autor perturbador,na linha de J.G.Ballard, Philip K. Dick  e de Thomas Pynchon, este último tão recluso e isolado na vida real quanto Bil Gray.Não é à toa que desde o premiado Ruído Branco (1985) ele se transformou num dos ficcionistas mais importantes e influentes dos EUA.

O leitor é apresentado a um mundo fantasmagórico (o que é bem representado pelo título, que alude a um trabalho de Andy Warhol, utilizando—como fez com relação a outras personalidades—o rosto do líder chinês), no qual arte, mídia, lixo, loucura e terrorismo se refletem mutuamente, no qual se pode fazer intermináveis elucubrações (e a elas se dedicam todos os personagens de MAO II), porém nunca se consegue criar qualquer significado estável.

Um mundo assim de escombros, de dissolução, de horror, não impede que o grande escritor norte-americano consiga (ao contrário de Ballard, Dick & Pynchon) criar personagens humanos e interessantes, que nos envolvem em seus desconcertantes (des)caminhos, como Karen, ao ir para Nova York atrás do volatilizado Gray, ingressando, com os restos da sua devoção (não ao Mao, mas ao Moon), no universo dos homeless e sua linguagem peculiar. Poucas vezes de leu algo tão bonito e desesperado na ficção atual que tangencia o apocalíptico. Talvez só na Doris Lessing de Memórias de um sobrevivente & Shikasta, ou no Paul Auster  de No país das últimas coisas., ou mesmo em Leviatã (dedicado, aliás, ao autor de MAO II).

Além da riqueza das questões que levanta, esse romance assombrado e assombrador merece ser consagrado como um dos romances da década de 90 pela sua perfeita estrutura circular. A história de Bill Gray é emoldurada por duas impressionantes cenas (num estádio e em Beirute)em que se mostra a adesão de uma massa a um líder carismático (Moon no começo; o terrorista Abu Rashid no final) e que têm como momento culminantes cerimônias de casamento que desafiam todo o poder da Razão.Assim como as palavras impressionantes de Don DeLillo desafiam o indizível e  o impensável.

SUBMUNDO  APÓS O ONZE DE SETEMBRO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos  em 02 de outubro de 2001)

 I

     Amanhã, 03 de outubro, a vitória dos Giants sobre os Dodgers no campeonato de beisobol em Nova York, estará completando 50 anos. A bola que decidiu a partida desapareceu. Ela é um dos elementos que interligam a trama de SUBMUNDO [“Underworld”, 1997, aqui no Brasil traduzido pelo grande Paulo Henriques Britto], obra-prima de 700 páginas de Don DeLillo, cujo prólogo é a sensacional narração do histórico jogo de 1951 e é intitulada O triunfo da Morte, alusão ao quadro de Brueghel (fica-se sabendo, ao longo da partida, que os russos realizaram seu primeiro teste , patômico, ombreando-se aos EUA na capacidade de destruir o mundo).

O vizinho de bairro de DeLillo, Paul Auster publicou em 1992 Leviatã, no qual se aborda a questão do terrorismo; o livro, aliás, é dedicado ao autor de SUBMUNDO que, na mesma época lançara outro de seus romances geniais (Mao II), no qual se lia: “Quem poderá ser levado a sério? Apenas o crente letal, aquele que mata e morre pela fé. Tudo o mais é absorvido. O artista é absorvido, o maluco de rua é absorvido, tratado e incorporado. Somente o terrorista ficou de fora. A cultura ainda não conseguiu descobrir como assimilá-lo. É confuso quando o terrorista mata um inocente. Mas essa é exatamente a linguagem que chama a atenção, a única linguagem que o Ocidente entende”.

Um terceiro motivo para se falar de SUBMUNDO e mostrar por que ele é uma leitura obrigatório no momento, ao contrário das supostas e inúteis previsões do sr. Nostradamus (que parecem um terreno baldio, onde se pode achar tudo que se quer): a capa da edição brasileira utiliza uma foto perturbadora de André Kertész, na qual vemos o World Trade Center (por sinal, várias vezes citado na quarta parte do romance, ambientada nos anos 70), através de um ângulo sinistro e ameaçador. Com os fatos recentes, a capa ganhou um significado ainda mais tétrico, bem como o livro.

E um escritor fantástico como DeLillo não deixa escapar nada, tudo volta no romance com um novo significado: uma reprodução do quadro de Brueghel (na revista Life) cai nas mãos de Edgar J. Hoover, o chefão da inteligência americana na Guerra Fria, homem reacionário, reprimido e com fobia de micróbios, em plena partida entre Giants & Dodgers. O significado do quadro volta à tona quando ele vai, em 1966, ao famoso Baile Preto e Branco, no Plaza de Nova York, e há protestos contra a Guerra do Vietnã, incluindo uma dança macabra na própria festa, repleta de chiques, ricos e famosos.

Já nos anos 80, conhecemos a velha freira, deliciosamente chamada Irmã Edgar, também reacionária e paranóica com a possibilidade de qualquer tipo de contaminação, assistir ao triunfo da morte nas ruas do Bronx: quarteirões devastados, assolados pela violência e pela AIDS (ela recebe dinheiro de um grafiteiro soropositivo para informar sobre carros abandonados nas ruas).

II

É muito difícil fazer justiça a SUBMUNDO num artigo. O livro é grandioso demais, já pela estrutura complexa. De 1951 ele salta para os anos 90 e daí vai recuando novamente.

O curioso em Don DeLillo é como um escritor que trabalha com uma realidade em ruínas, com lixo cultural, com a ausência de totalidade, pode ter criado um romance total, numa linguagem tão elevada, se o termo não soar muito pomposo.

O próprio título, como o livro inteiro, é cheio de associações, remontando ao título de um suposto filme subversivo com relação ao regime soviético, feito por Eisenstein (o diretor de O encouraçado Potemkim & Ivan, o Terrível) e também ao título de um filme de gângster do cinema mudo. Por outro lado, também alude ao subterrâneo mundo do lixo, área de trabalho do protagonista, Nick Shay, que nos informa: “Minha firma trabalhava com rejeitos. Éramos manipuladores de rejeitos… fazíamos a cosmologia dos rejeitos… O lixo é uma coisa religiosa. Sepultamos os rejeitos contaminados com sentimentos de reverência e terror”.

Nick é um personagem enigmático, que assassinou um homem e foi parar num reformatório, sendo doutrinado por jesuítas (ele também possui, supostamente, a bola da partida de 03 de outubro). Seu irmão, Matt, pensando sobre ele, chega à seguinte conclusão: “Quando Nick morrer, uma equipe de metafísicos examinará a caixa preta dele… mas nada garante que  vão encontrar a menor pista que seja”.

Nick e Matrt são personagens fabulosos. Esse é outro mistério de Don DeLillo: como um autor que trabalha com um mundo fantasmagórico e insubstancial pode criar personagens tão incríveis? Já em Ruído Branco, o protagonista (contaminado por uma nuvem tóxica que infesta a região onde mora) e sua família eram inesquecíveis.

Em SUBMUNDO, além dos irmãos Shay, temos Klara Sax, a artista plástica conceitual, com a qual Nick teve um envolvimento aos 17 anos, quando ela ainda era uma dona de casa, esposa do professor de xadrez de Matt, o comovente sr. Bronzini, que termina a vida solitário no Bronx, com sua irmã meio esclerosada, enquanto Klara (aos 70 anos) e seguidores fiéis pintam um cemitério de aviões no deserto. Temos a esposa de  Nick, Marian, que tem um caso com o sócio dele e que considera o marido “demoníaco”, procurando desvendar seu estranho passado. Temor Cotter, o garoto negro que, na versão de DeLillo, ficou  inicialmente com a bola do jogo, mas temos principalmente seu pai, Max Martin, cuja história atravessa o romance como contraponto da inversão temporal realizada pelo maior  dos escritores norte-americanos.

Temos Ismael, o grafiteiro, que além de pichar vagões, também faz incursões homoeróticas no subterrâneo-submundo do metrô, temos a já citada irmã Edgar; temos até um psicopata, o qual assassina pessoas nas estradas do Texas…

III

Paulo Francis, com a superficialidade que lhe era peculiar nos últimos anos, saudou em  1988 A fogueira das vaidades, de Tom Wolfe, com as seguintes palavras: “Nenhum filme ou jornal de tevê tem ou seguiu remotamente, o alcance desta obra, que estabeleceu a primazia da literatura sobre outros meios de comunicação”. A meu ver, Wolfe nem de longe conseguiu isso, mas talvez Francis já estivesse pressentindo que SUBMUNDO estava vindo por aí e encaixar-se-ia perfeitamente nas suas palavras

24/05/2011

Destaque do Blog: PONTO ÔMEGA, de Don DeLillo

 «Mas era impossível ver demais. Quanto menos havia para ver, mais ele olhava, mais ele via. A questão era essa. Ver o que está aqui, finalmente olhar e saber que se está olhando, sentir o tempo passando, estar vivo para o que está acontecendo nos menores registros do movimento».

 «O ponto ômega, ele disse. Não sei qual o significado original desse termo, se é que tem significado, se não é um caso de linguagem se esforçando para chegar a alguma idéia fora de nossa experiência».

 (Don DeLillo, Ponto Ômega)

 (uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 24 de maio de 2011)

   «Está tudo impregnado, as horas e minutos, palavras e números por toda parte, estações ferroviárias, itinerários de ônibus, taxímetros, câmeras de segurança. Tudo tem a ver com o tempo, tempo idiota, tempo inferior, gente consultando os relógios e outros instrumentos, outros lembretes. É o tempo das nossas vidas escorrendo ralo abaixo. As cidades foram construídas para medir o tempo, para retirar o tempo da natureza… Quando você retira todas as superfícies, quando você olha dentro da coisa, o que resta é o terror».

    Um homem deixa-se absorver pela contemplação de uma “instalação” conceitual, num museu, na qual Psicose, de Hitchcock, é exibido (sem som) a uma velocidade lentíssima, de forma a durar 24 horas.

     Um acadêmico que colaborou com o Pentágono na elaboração de justificativas para a invasão do Iraque retira-se para o deserto, tendo por companhia um jovem documentarista  “fracassado”, o qual pretende fazer um filme com ele, mas o projeto vai se esvaziando frente àquele espaço indiferente («havia uma casa e fora dela só havia distâncias, nem paisagens nem linhas de visão abrangentes, apenas distâncias»).

     Essa imersão num tempo e num espaço não-domesticados, que basicamente anulam nossas referências cronometradinhas e mesquinhas («O tempo se esvaindo. É o que sinto aqui, disse ele. O tempo lentamente ficando mais velho. Velhíssimo. No dia a dia. É um tempo profundo, milenar. Nossas vidas recuando para um passado distante. É o que está lá fora. O deserto do Plistoceno, o domínio da extinção»), é a matéria de Ponto Ômega [Point omega, EUA-2010, traduzido por Paulo Henriques Britto], de Don DeLillo, o supremo gênio literário a surgir na minha própria e limitada escala cronológica (ele começou a publicar na década de 70), autor dos quatro romances mais belos dos últimos 30 anos (Ruído Branco; Mao II; Submundo & Cosmopolis) e que este ano completa 75 anos.

Apesar da sua imersão numa escala cósmica, há um narcisismo arraigado em Richard Elster, o acadêmico estrategista de guerra, que só será quebrado após a filha, Jessie, que para ali fora mandada pela mãe (preocupada com um relacionamento “esquisito”), desaparecer, sem deixar quaisquer indícios. Possibilidades do que poderia ter acontecido com ela misturam-se em nossa mente ao destino de Janet Leigh na cena do chuveiro em Psicose: «O ponto ômega se estreitou, aqui e agora, reduzindo-se à ponta de uma faca penetrando um corpo. Todos os grandes temas do homem reduzidos a uma única dor local, um corpo, lá fora em algum lugar, ou não».

    Em contrapartida, o episódio que de certa forma emblematiza o romance acontece quando Jim (o documentarista) está à procura de Jessie e se sente perdido no deserto, sem achar o seu carro: «Não sabia muito bem se aquele caminho de granito esfarinhado era o mesmo pelo qual eu viera. Tentei relembrar a cor e textura, até mesmo o ruído que meus sapatos faziam sobre o cascalho». Embora ele acabe por encontrar enfim o veículo, a sensação de que a alternativa contrária seria factível e irrisória passa a assombrar o leitor: «Perguntei a mim mesmo se aquela garganta, aquele desfiladeiro, se ramificava, um ramo norte e um ramo sul, e teria eu entrado no ramo errado? Não consegui me convencer de isso não era possível?». É possível, é provável, só que parece não fazer a menor diferença.

Ponto Ômega é o limite da saturação, da consumação entrópica que o ser humano está preparando para si mesmo: «Porque agora vem a introversão. O padre Teilhard de Chardin sabia disso, o ponto ômega. Um salto para fora da nossa biologia. Faça essa pergunta a você mesmo. Nós temos que ser humanos para sempre? A consciência se esgotou. Agora é voltar para a matéria inorgânica. É isso que nós queremos. Queremos ser pedras num campo».

    Principalmente na brecha que se abre no tempo cerrado das cidades para um tempo mais “real”, por assim dizer, durante a exibição do filme de Hitchcock, muitas vezes lembrei-me do universo de Julio Cortázar, mestre em delinear outras orillas, margens alternativas para o nosso mundo ( «se a mostra fosse estendida e ele continuasse voltando, cinco, seis, sete horas por dia, semana após semana, seria possível para ele viver no mundo? Ele queria isso? Onde ficava o tal do mundo?»). A grande diferença é que Cortázar, apesar de inquietante, não é um pessimista, antes pelo contrário. O universo de DeLillo é muito mais desesperado. Nele, e nesse sentido Ponto Ômega pode ser considerado a síntese da sua poética narrativa, há sempre uma atmosfera de véspera do fim. Não aquela tolice profetizada por calendários maias e quejandos, porém uma espécie de exigência estética, de desatulhar o mundo das referências e conexões. Um apocalipse higiênico.

Delillo_Omega

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 ANEXO IDIOSSINCRÁTICO

    Uma das minhas limitações como apreciador de arte  é o fato de não suportar “instalações” (e, de resto, arte conceitual em geral, a própria palavra “conceitual” me dá arrepios). Não consigo levar a sério um sujeito que faz uma estrutura com ripas e compensados de madeira onde a gente entra, o espaço vai se estreitando, a gente vai se apertando até sair numa fenda estreitíssima e então alguém lá fora nos explica que a tal estrutura “é   o capitalismo parindo o terceiro mundo”!!!

  Digo isso uma vez que o gatilho de Ponto Ômega foi, ao que parece, acionado no imaginário de Don DeLillo por uma “instalação”, e, apesar de considerar o texto lindíssimo, tenho a certeza de que se fosse eu o espectador, acharia tudo gratuito e meio hilário.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2014/06/28/o-triunfo-inesperado-do-romance-submundo-de-don-delillo/

https://armonte.wordpress.com/2014/06/28/mao-ii-de-don-delillo-o-indizivel-o-impensavel-e-a-linguagem-que-o-ocidente-entende/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/09/se-todas-as-direcoes-sao-a-mesma-cosmopolis-e-o-futuro-insistente/

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17/05/2010

Doctorow, Rushdie, DeLillo e a virada do milênio

Primeira parte

    Nos anos 80, um recorde de estupidez foi alcançado quando a Rocco transformou Roger´s version, de John Updike, em Pai-Nosso Computador. A Record, talvez inspirada por seu nome, tentou quebrá-lo recentemente com o título brasileiro de City of God, de E.L. Doctorow: Deus—Um fracasso amoroso!!??

      Doctorow escreveu um dos melhores romances norte-americanos, O livro de Daniel (1971). Chegou perto com A Grande Feira e a novela Vida dos poetas, e ainda tem outros belos livros, como os muito famosos Ragtime e Billy Bathgate, além de Tempos Difíceis (na verdade, Benvindo a Tempos Difíceis, pois Hard Times é o nome de um lugarejo) e The Waterworks- A mecânica das águas.

      Estabelecida, portanto, a minha admiração, é preciso dizer que City of God (traduzido com empenho por Roberto Muggiati) representa um fracasso amoroso de leitura. O título original nada tem a ver com o nosso Cidade de Deus, de Paulo Lins, e sim com Santo Agostinho. Como a metrópole urbana dos nossos dias, representada por Nova Iorque, pode ser o palco da manifestação do Senhor, como podemos nos relacionar com Ele num mundo como o nosso, com seus problemas específicos e carregando o fardo dos horrores muito particulares do século XX?

      “…do jeito que as coisas estão acho que temos de refazê-Lo. Se precisamos nos refazer, precisamos refazer o Senhor, Deus”.

     Um Deus contemporâneo?  “Estamos vivendo numa democracia pós-moderna. Acha que Deus não sabe disso?”

    O livro de Santo Agostinho serve como referência devido à “toda a sua mala de truques de escritor. Todas aquelas doutrinárias tratadas como se existissem, como personagens num romance de Henry James” (outro padroeiro do romance é Wittgenstein, o qual tem até seu estilo parodiado).

      Os problemas de Deus são associados aos problemas dos narradores. Como organizar esse material caótico à nossa volta? Tim Pemberton, o protagonista, diz ao seu amigo Everett: “Está perturbado porque se deu conta… como você, errônea e gloriosamente, presumiu que podia escrever um livro sobre isto!” Everett tenta tecer um romance partindo do roubo da cruz de uma Igreja Episcopal, ato sacrílego que servirá para  aproximar o casal central, o reverendo Pemberton e a rabina Sarah Blumenthal, embora Doctorow, autor evocativo por excelência, continue a exercitar sua máquina do tempo, desta vez com incursões nos guetos judeus da época da Segunda Guerra e nas trincheiras da Primeira, só para dar dois exemplos. Ele se vale também dos nomes de família que utilizou em Mecânica das águas, Pemberton e McIlvaine.

    Ele precisava de 350 páginas para exercitar a ironia de contestar a onipresença tanto de Deus quanto do Narrador? Já que estamos no terreno religioso, Doctorow cometeu os pecados do orgulho e da soberba, pretendeu escrever o Livro da virada do milênio, a obra-referência. Não conseguiu. O que salva City of God de ser apenas um romance cansativo e falho, são as mesmas qualidades que também salvavam Loon Lake- O lago da solidão, até então seu trabalho mais discutível: iluminações repentinas, o estilo, enfim,  toda a sua mala de truques de escritor.

(resenha publicada em  26 de outubro de 2004)

 

Segunda parte

    Em City of God, de E.L. Doctorow, tentativa meio frustrada de sintetizar ficcionalmente a virada do milênio, se pode ler: “Os infelizes migrantes do mundo acham que, se conseguirem apenas chegar aqui, poderão fincar um pé. Manter uma banca de jornais, uma birosca, dirigir um táxi… o que pintar. Você quer dizer a eles que este não é um lugar para pessoas pobres. A linha de fractura racial que corre pelo coração da terra também corre através do seu coração. Somos seres étnicos sujeitos a um código de cor e criadores de enclaves sociais, multiculturalmente desconfiados e verbalmente agressivos, como se a cidade, considerada como uma Idéia, fosse um fardo pesado demais até mesmo para as pessoas que moram nela”.

     Outro grande escritor, Salman Rushdie, ousou encarar de frente a virada do  milênio elegendo Nova Iorque, o centro do Império, como ponto de inflexão, apesar do resultado não ser tão caudaloso quanto suas imensas (e fabulosas) obras-primas anteriores (Os filhos da meia-noite; Os versos satânicos; O último suspiro do mouro). Enquanto Doctorow investigava manifestações de Deus na secularização triunfante (e Deus é uma obsessão norte-americana, junto com as armas, como bem lembrou Harold Bloom), Fúria (Fury, traduzido por José Rubens Siqueira e lançado pela Companhia das Letras), o modesto—em páginas—romance do milênio de Rushdie , atualiza o mito grego das Erínias, ou seja, as Fúrias, as divindades destruidoras que ameaçam seu protagonista, Malik Solanka, no primeiro verão do novo  milênio, enquanto Bush e Al Gore, ou Gush e Bore, se digladiam pela posse da coroa do Império, com os resultados que conhecemos.

     Solanka está longe de ser o migrante pobre que tenta fincar pé na terra da promissão americana. Pelo contrário, está rico devido à criação de uma boneca, Little Brain, um dos produtos mais rentáveis da indústria cultural. Amargurado com o destino da sua criatura, e após um ligeiro surto psicótico (quando pensara em assassinar esposa e filho), ele abandona sua família em Londres, como já riscara da sua vida suas origens, em Bombaim, procurando a América como lugar de renascimento. Dentro de si ele surpreende o regurgitar de uma raiva avassaladora, com lapsos de memória que o levam a suspeitar que bem poderia ser o assassino de três belas jovens da alta-sociedade, enquanto o eterno ruído da cidade o persegue (“A cidade estava lhe ensinando uma lição. Não havia como escapar da invasão do barulho. Viera em busca de silêncio e encontrara um ruído maior que aquele que deixara para trás. O ruído agora estava dentro dele”).

    “Debaixo da auto-satisfação retórica dessa Améria empacotada, homogeneizada, dessa América com 22 milhões de novos empregos e a maior taxa de casas próprias da história, dessa América Shopping Center dona de ações, de orçamentos equilibradose baixo déficit, as pessoas estavam estressadas, pirando, e falando nisso  o dia inteiro em supercadeias de clichês burríssimos”.

      Não pense o leitor que Fury se limita a ser essa diatribe anti-Império Americano, embora haja passagens assassinas, de uma forma que Michael Moore jamais sonharia.  A grande força de Salman Rushdie, apesar de todo o magma discursivo do livro, que não poupa nada e ninguém, ainda reside no seu talento incomum de contar histórias, com relação ao qual não parece ter perdido o prazer (ao contrário de Doctorow), na teia emocional que ata Malik Solanka às três mulheres mais importantes da sua vida: sua esposa; Mila, uma garota sérvia que lembra (pois quer fazer lembrar) sua boneca Little Brain; e sua verdadeira paixão, Neela, que fará com que ele se confronte com sua infância e o arrastará para fora de Nova Iorque,a city of god da hora,  ainda que para se dar conta de que a Fúria, ou seja, aquela linha de fractura racial que corre pelo coração da terra, está confortavelmente alojada no mundo todo.

(resenha publicada em 2 de novembro de 2004)

 

Terceira Parte

    Em Cosmópolis, o poema em prosa de Don DeLillo a respeito da insubstancialidade do mundo contemporâneo, pode-se ler: “O futuro se torna insistente… o passado está desaparecendo. Antigamente, a gente conhecia o passado, mas não o futuro. Isso está mudando… Precisamos de uma nova teoria do tempo”.

     Há duas semanas, estou comentando obras que vinculam o novo milênio a essa insistência do futuro em detrimento da percepção do passado e o sentimento fantasmagórico que o real, pensado dessa forma, suscita: City of God (2000), de E.L. Doctorow, Fury (2001), de Salman Rushdie. Neste último, vimos como o ruído da cosmópolis (DeLillo: “A cidade come e dorme barulho. Ela faz barulho em qualquer século. Faz os mesmos barulhos que fazia no século XVII, mais os outros que surgiram de lá para cá”, diz o protagonista, que mandara forrar sua limusine com cortiça) correspondia às potências destruidoras agitando-se dentro de Malik Solanka, o professor de história das idéias (passado) que ficou rico com a criação de uma boneca-ícone da indústria cultural (a insistência do futuro).

      Na visão escabrosa de Rushdie, a condição-boneca se torna o epítome da deterioração do material humano, daí a intensa associação entre esse artefato lúdico e três jovens da  alta-sociedade barbaramente assassinadas (“Um corpo morto na rua parece muito uma boneca quebrada”). Em sua origem, a boneca representava diretamente uma pessoa e era um perigo em mãos alheias.Mais tarde, com o advento da produção em massa, tal ligação se rompeu, pois as bonecas passaram para a esfera da linha de montagem, sem personalidade, uniformes: “Tudo isto estava mudando de novo. A conta bancária de Solanka devia tudo ao desejo das pessoas modernas de possuir bonecas não apenas com personalidade, mas com individualidade. Agora mulheres vivas queriam ser como bonecas, cruzar a fronteira e parecer brinquedos. Agora a boneca era o original, a mulher a representação”.

     Nesse caos,com seres humanos-brinquedos,com o virtual devorando o real, há espaço no entanto para um momento literariamente extraordinário, de resgate do Mito em plena cosmópolis. Mila, a garota que imitava a boneca de Solanka, o leva para  o mercado da alta-computação, e vendo-a em frente ao seu laptop, ele assiste, na verdade, à aparição daquele tipo de entidade tão recorrente na cultura da Índia, a que destrói e refaz o mundo: “Mila como Fúria, a engolidora do mundo, o eu como pura energia transformadora. Nessa encarnação, era simultaneamente aterrorizante e maravilhosa”.

(resenha publicada em 9 de novembro de 2004)

 

Quarta Parte

    “Estava parado na rua. Não havia o que fazer. Nunca havia imaginado que isso pudesse acontecer com ele. Era um momento esvaziado de urgência e propósito. Ele não havia planejado aquilo. Onde estava a vida que ele sempre levara?  Não tinha vontade de ir a lugar nenhum, não tinha nada em que pensar, não havia ninguém à sua espera. Como podia dar um passo em determinada direção se todas as direções eram a mesma?”

      Tenho examinado a solução que grandes escritores encontraram (ou não) para representar o início do novo milênio. Nada mais justo que terminar a série com Don DeLillo, autor do maior romance dos derradeiros anos do século passado, Submundo, e cujo Cosmópolis (2003) possivelmente representa a mais alta literatura de ficçãoque se pode encontrar nesses primeiros anos do novo século-milênio-era. Na história do último dia (em abril de 2000) do jovem—já se sentindo ultrapassado (“Eu sempre fui mais jovem que todo mundo. Um dia isso começou a mudar”)—milionário Eric Packer, mega-especulador financeiro, que perde sua fortuna e é assassinado enquanto cruza Nova Iorque para cortar o cabelo (“Ele não sabia o que queria. Então descobriu. Queria cortar o cabelo”), numa limusine gigantesca forrada com cortiça, a grande tentação de qualquer resenhador é citar, citar, citar (mesmo porque a tradução de Paulo Henriques Britto, publicada pela Companhia das Letras, é irretocável). 

    Como se trata de um texto alucinantemente perfeito, pode-se extrair citações incríveis quase que página a página, embora talvez o melhjor seja seguir o conselho da primeira: “Dizer o quê? Era uma questão de silêncio, não de palavras”.

     Parente espiritual do Psicopata americano, de Bret Easton Ellis, Eric move-se (embora o trânsito com freqüência fique congestionado, inclusive com violentas manifestações contra a globalização, numa das grandes seqüências do livro) num mundo em que a obsolescência é muito rápida e no qual as relações esgarçam-se ao ponto da insubstancialidade: “Levou um instante para se dar conta de que conhecia a mulher no banco de trás do táxi ao lado. Era a mulher com quem ele havia se casado 22 dias antes”.

    A característica mais intrigante em DeLillo é que ele consegue manter o estatuto épico, que é básico para uma narrativa (ainda que tão maltrato na ficção contemporânea), mesmo quando mergulha fundo na estética minimalista mais fantasmática. Como Clarice Lispector e Robert Musil, ele mantém-se no mundo do grandioso, evocando mitos e potências muito maiores do que a da pós-modernidade: “Estavam cercados por um crescendo de buzinas. Havia naquele barulho alguma coisa que ele não queria apagar da mente. Era o tom de alguma dor fundamental, um lamento tão antigo que parecia aborígene. Pensou em homens esfarrapados em bandos, dando urros rituais, unidades sociais formadas para matar e comer. Carne vermelha. Era esse o chamado, essa a necessidade gritante”.O motorista de Eric: “Ibrahim parecia desconfiado e reparado, uma preparação que ele adquirira em algum deserto, setecentos anos antes de nascer”. O assassino de Eric lhe diz: “Mesmo quando você se autodestrói, você quer fracassar mais, perder mais, morrer mais que os outros, feder mais que os outros. Nas tribos antigas o chefe que destruía mais coisas dele mesmo que todos os outros chefes era o mais poderoso”.

      A citação que abre este texto mostra como a jornada de Eric por Nova Iorque e sua própria vida são desprovidas de sentido. Cosmópolis, porém, mostra que a literatura ainda faz todo o sentido do mundo.

(resenha publicada em 16 de novembro de 2004)

 

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