(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 12 de maio de 2015)
«Seja como for, éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o outro, que se alguém por acaso quisesse calcular por antecipação como eu, o filho que se desenvolvia devagar, e tu, o homem feito, se comportariam um em relação ao outro, poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim… » (da Carta ao Pai)
Texto mais famoso de Franz Kafka(1883-1924), obra paradigmática do século passado, A Metamorfose (“DIE VERWANDLUNG”) completa agora em 2015 o centenário de sua publicação original. Entre as diversas traduções, recomendo a de Marcelo Backes, publicada pela L&PM (na série Clássicos, um formato diferente da Pocket[1]), pois dessa edição consta também o conto, bem mais curto, Das Urteil-O Veredicto (isto é, a condenação à morte de um filho pelo próprio pai), o qual ajuda a esclarecer os motivos pelos quais «Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso».
Ambos pertencem (assim como o inacabado O Desaparecido) à fase “filhos” na obra kafkiana, aliás, uma explosão criativa por volta de 1912: em todas essas parábolas, filhos são banidos pelos pais. A diferença é que, enquanto os outros dois permanecem no âmbito da casa paterna, a história de Klaus Rossmann (em O Desaparecido), enviado à América totalmente recriada pela imaginação (uma Amérika, como o romance era conhecido) após ter sido seduzido pela criada, já aciona o mecanismo de “soltar no mundo” o filho pródigo, cuja maior realização ocorrerá em O Castelo.
O «inseto monstruoso» é um caixeiro-viajante, arrimo financeiro dos pais[2]. Numa espécie de vingança masoquista, o genial escritor checo, ao reduzir seu protagonista a um estado inválido, incapaz para o trabalho, sobretudo vergonhoso, estaria dando vazão a um ressentimento pessoal que faz dos familiares de Gregor os verdadeiros monstros da narrativa—mesmo a irmã, Grete, bondosa e compassiva com ele a princípio, metamorfoseia-se numa tirana, quase uma megera.
O nó do problema é o pai (não esqueçamos aquele famoso e patético documento biográfico, a Carta para Hermann Kafka, escrita em 1919[3]). Não por acaso, os capítulos de A Metamorfose encaminham-se para confrontos onde o senhor Samsa praticamente esmaga o filho. Inicialmente, com uma bengalada, relegando-o à condição de prisioneiro no quarto; meses mais tarde, ao acertá-lo com uma maçã que apodrecerá no seu corpo, apressará seu fim.
Esse pai parece revitalizar-se com a desgraça do filho, revirilizar-se, ressentindo-se com a atenção dispensada a Gregor na sua “condição monstruosa”, a qual nada mais é do que a incapacidade de garantir o sustento da família, ou seja, de manter-se no mercado de trabalho, essa expressão odiosa que parece ter se metamorfoseado no nosso único horizonte. Pois o relato também pode ser lido através da ótica do esvaziamento das relações, isto é, a alienação progressiva da própria ideia do “humano”. É por isso que nunca se limitará a ser apenas mera vingança de um filho oprimido e recalcado, para ganhar a dimensão de uma das definitivas alegorias do capitalismo.
O que, porém, só uma leitura, um contato efetivo, transcendendo a miríade de chaves biográficas e interpretativas que se pode ter do texto, mesmo quem não o tenha lido, pode mostrar de fato o impacto que é acompanhar o metamorfoseado rumo à sua morte decretada pela família e pela esfera de produção, em cenas que conseguem o milagre de ser engraçadas (quem pode esquecer a fuga do chefe de Samsa após sua aparição? Ou o espanto dos inquilinos? Ou a empregada jocosa?) e macabras, a um só tempo.
E, pouco antes da terrível sentença familiar contra ele, o inútil, desvalido num mundo em que todos precisam mostrar-se produtivos e capazes, o texto atinge o ápice da beleza quando Gregor rasteja, inconsciente dos danos iminentes (ele que se transformara num monstro rancoroso, rabugento e faminto), rumo à irmã, que toca violino: «…rastejou um pouco mais… a fim de que os seus olhares se encontrassem. Será que ele não passava de um animal, embora a música o emocionasse tanto? Parecia que ela lhe abria um caminho rumo a um alimento desconhecido pelo qual ele tanto ansiava».
TRECHO SELECIONADO
«Depois de ter refletido acerca de tudo isso às pressas, sem conseguir se decidir a deixar sua cama – o despertador acabara de anunciar quinze para as sete –, bateram com cautela à porta, na cabeceira de sua cama.
– Gregor – alguém chamou; era sua mãe –, já são quinze para as sete. Não querias ter partido a essa hora? – A voz suave! Gregor assustou-se quando ouviu sua voz respondendo; e era inconfundivelmente a mesma voz de antes, mas a ela misturava-se, como se vindo de baixo, um ciciar doloroso, impossível de evitar, que só no primeiro momento mantinha a clareza anterior das palavras, para destruir seu som de tal forma quando acabavam por sair, a ponto de fazer com que não se soubesse ao certo se havia ouvido direito. Gregor quis responder em detalhes e esclarecer tudo, mas limitou-se, dadas as condições, a dizer:
– Sim, sim, obrigado mãe, já vou me levantar.
Por causa da porta de madeira, a mudança na voz de Gregor por certo não foi percebida lá fora, pois sua mãe tranquilizou-se com a explicação e se afastou, arrastando as chinelas. Devido à troca de palavras, contudo, os outros membros da família ficaram cientes de que Gregor, ao contrário do que esperavam, estava em casa, e o pai já batia numa das portas laterais, fraco, mas com o punho:
– Gregor, Gregor – ele chamou –, o que está acontecendo? –
Depois de alguns instantes advertiu mais uma vez em voz mais grave:
– Gregor! Gregor! Na outra porta lateral, entretanto, a irmã lamentava em voz baixa:
– Gregor? Não estás bem? Precisas de algo? Gregor respondeu em ambas as direções:
– Já estou pronto – e esforçou-se para, tomando o maior cuidado na pronúncia e fazendo longas pausas entre as palavras, evitar que sua voz chamasse a atenção.
O pai, em todo caso, voltou ao café da manhã, mas a irmã sussurrou:
– Gregor, abra a porta, eu te imploro. »
VER:
https://armonte.wordpress.com/2010/04/07/a-morte-do-caixeiro-viajante/
NOTAS
[1] Mas há também uma edição nesse formato.
[2] «Se eu não me contivesse por causa de meus pais, já teria pedido as contas há tempo; teria me apresentado ao chefe e lhe exposto direitinho o que penso, do fundo do meu coração. Ele teria de cair da escrivaninha! É um jeito bem peculiar o dele, de sentar-se sobre a escrivaninha e falar do alto a baixo com seu empregado, que além do mais tem de se aproximar bastante por causa das dificuldades auditivas do chefe. Bem, a esperança ainda não está de todo perdida; quando eu tiver juntado o dinheiro a fim de quitar a dívida de meus pais com ele – acho que isso demorará ainda uns cinco ou seis anos –, eu encaminho a coisa sem falta. Aí então terá sido feito o grande corte.»
[3] “Brief an den Vater”, também traduzido por Backes para a L&PM.