Em Deus- Um Delírio, um dos livros desta primeira década do novo século, o agressivo Richard Dawkins tem como objetivo mostrar que é possível e necessário maravilhar-se com o mundo e as leis da natureza sem recorrer ao “assombro transcendente monopolizado pela religião”, atacando, assim, o fundamentalismo e o obscurantismo galopantes da nossa época, na qual há ainda a contínua interferência da religião em assuntos que não lhe competem. Aliás, qual assunto compete à religião? Por que determinadas pessoas têm de se guiar (e querem guiar os outros) por regras morais fixadas de forma arbitrária a partir de uma confusa visão mitológica e não apenas pelo contrato social, ainda o mais sensato e racional liame entre o individual e o coletivo? Por que os ateus ainda têm de se sentirem embaraçados e intimidados por marcarem sua posição?
Numa escala de 1 a 7 entre a crença absoluta e confiante e a descrença, Dawkins se coloca na faixa 6: “Não tenho como saber com certeza, mas acho que Deus é muito improvável e levo minha vida na pressuposição de que ele não está lá”.
Certamente o capítulo que mais tem causado controvérsia é “Por que quase com certeza Deus não existe” que se ocupa com as argumentações sobre o fundamento da nossa existência: “a probabilidade de a vida ter surgido na Terra não é maior que a chance de um furacão, ao passar por um ferro-velho, ter a sorte de construir um Boeing 747” (o que contraria frontalmente a teoria creacionista do “design inteligente”). O problema que qualquer teoria do surgimento da vida tem de solucionar é como escapar do acaso como explicação, sem cair na solução fácil de um designer: “a seleção natural é um processo cumulativo, que divide o problema da improbabilidade em partículas pequenas. Cada uma das partículas é ligeiramente improvável, mas não definitivamente…O próprio Darwin disse: Se fosse demonstrado que qualquer órgão complexo existisse e que ele não pudesse ter sido formado por numerosas, sucessivas e pequenas modificações, minha teoria absolutamente ruiria. Mas não consigo encontrar nenhum caso assim”.
É uma discussão que sempre apaixona, porém acho ainda mais essencial o capítulo “Infância, abuso e a fuga da religião” porque mostra que os estragos ocasionados pela religião vão além da interferência nas leis, na vida cotidiana: ela é um abuso psicológico (e enfatiza-se tanto hoje somente o abuso sexual), uma criadora de monstros quando a razão adormece; programa as crianças (que não deviam ser expostas a isso, a essa rotulação como cristãs, ou muçulmanas, ou judias, como se elas “fossem isso”) para a presunção de “que a fé em que nasceram (!!! a fé a que foram submetidas)é a única fé verdadeira, e que todas as outras são aberrações ou simplesmente mentiras”, com os resultados que conhecemos: “Se depois de ter sido expostas de forma justa e adequada a todas as evidências científicas, elas crescerem e decidirem que a Bíblia diz a verdade literal ou que o movimento dos planetas governa sua vida, é direito delas. O essencial é que é direito delas decidir o que pensarão…E isso tem uma importância especial quando lembramos que as crianças serão os pais da geração seguinte, em posição de passar para a frente a doutrinação que as possa ter moldado”. Pena que essa proteção moral seja, creio eu, uma improbabilidade, algo totalmente inviável em nossos modelos de educação.
Para ilustrar seu argumento, Dawkins (como é seu costume) recorre a uma anedota deliciosa: “Dizem que Alfred Hitchcock, o grande especialista na arte de assustar as pessoas, estava dirigindo na Suíça quando de repente apontou pela janela do carro e disse: Essa é a cena mais aterrorizante que já vi. Era um padre conversando com um menininho… Hitchcock pôs a cabeça para fora e gritou: Fuja, menininho! Salve sua vida”.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 04.07.09)