MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

25/11/2012

O TERROR NAS DOBRAS DO PASTELÃO: “O Desaparecido” de Kafka

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de outubro de 2003)

O acontecimento editorial do ano, a tradução de O DESAPARECIDO (Der Verschollene)de Kafka, resgatando o título original pretendido pelo autor (pois seu amigo Max Brod o publicou postumamente como Amerika, em 1927, pelo qual ainda é conhecido[1]) e baseando-se numa edição crítica histórica, acabou  sendo uma grande surpresa. Esperava-se a versão de Modesto Carone, que vem sistematicamente traduzindo a obra de Kafka , mas a editora 34 e  Susana Kampf Lages adiantaram-se. O resultado é excepcional.

Iniciado em 1912, antes de seus companheiros mais célebres (O processo & O castelo), O DESAPARECIDO  pertence à fase “filhos” de Kafka, que inclui também O veredicto e A metamorfose. Em todos, filhos são punidos e banidos pelos pais. A diferença é que, enquanto os outros dois permanecem no âmbito da casa paterna, numa concentração claustrofóbica, a história de Klaus Rossmann, enviado a uma América totalmente recriada pela imaginação de Kafka (ou seja, uma Amérika), após ter sido seduzido pela criada, já aciona o mecanismo  de “lançar no mundo” o filho pródigo, cuja maior realização ocorrerá em O castelo.

Curiosamente, mesmo lançado no mundo, Rossmann viverá a experiência do banimento repetidas vezes (pelo tio, pelo camareiro-mor do hotel onde se emprega) e só encontrará guarida em ambientes desabonadores, sórdidos e permeados pela sexualidade. O sexo é a grande ameaça aos “esforços” dos personagens kafkianos e representa um ímã, um visgo que os prende a uma situação degradada. O clímax do romance (que permaneceu inacabado, como se tivesse chegado a um ponto insustentável) e a submissão de Karl a Brunelda, uma mulher imensa, uma espécie de Grande Prostituta, que transforma os homem em seus criados; uma Circe cõmica, portanto, que os mantém a todos numa Ogígia vaudevillesca, um apartamento minúsculo e entulhado (espaço típico do universo kafkiano).

Entretanto, já a sedução pela criado apresenta essa advertência quanto ao lado dissolvente da sexualidade (‘…apertou a barriga nua contra o corpo dele, procurou com a mão de uma maneira tão repulsiva entre as suas partes que Karl esticou a cabeça e o pescoço para fora dos travesseiros; ela então empurrou algumas vezes sua barriga contra ele— ele teve a sensação de que ela fosse parte de si mesmo, e talvez por esse motivo foi tomado por uma terrível sensação de desamparo”).

Apesar desses aspectos sombrios, é preciso dizer que O DESAPARECIDO exercita a alta comédia, é um livro muito engraçado. Aliás, é a obra longa de Kafka onde mais acontecem coisas. Não é à toa que ele se inspirou no romance à Dickens. Pode-se dizer igualmente que ele livra o romance das amarras da verossimilhança e instala uma relação do personagem com o espaço que resgata a disponibilidade de Dom Quixote e Sancho Pança ou  Jacques, o fatalista, e seu amo, ou mesmo de Wilhelm Meister: o mundo está  à nossa frente e tudo pode nos acontecer.

É por isso que até a parte em que Rossmann se rende à autoridade de Brunelda (e de seu amante Delamarche), após ser banido pelas autoridades masculinas (e com o fracasso de outra autoridade feminina, a cozinheira-mor, no sentido de mantê-lo na “trilha certa”,  seja lá o que for que isso signifique), O DESAPARECIDO mantém uma notável coesão (há ainda alguns capítulos fragmentários, inclusie aquele famoso em que Rossmann, abdicando do seu nome, adere à trupe do Teatro Natural de Oklahama—é isso aí, leitor, o nome vem errado mesmo)]— um evento que parece se confundir com o mundo todo).

O que diferencia O DESAPARECIDO de Dom Quixote, de Jacques, o fatalista ou de Wilhelm Meister (no qual um rapaz também ‘cai no mundo” ao contrariar a vontade paterna)  e dos livros de Dickens, é que não há nexo de causalidade entre as aventuras do herói ou entre suas descobertas psicológicas. Não há romance de formação, aqui, tudo contribui para o absurdo (há um capítulo em que Karl vai visitar um amigo do tio, entra numa hilária luta corporal com a filha dele, e ao pensar em encontrá-la novamente: ‘se ao menos ele tivesse consigo a barra de ferro que  tio tinha lhe dado de presente para servir de peso para papéis! O quarto de Klara podia ser uma toca bem perigosa), para o divórcio entre a ação e um possível significado.

A comédia pastelão de Kafka (há cenas inesquecíveis que lembram as comédias do cinema mudo, como a perseguição pela policia, na chegada ao edifício de Brunelda) esconde em suas sobras o filme de terror.

VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2009/12/14/o-processo-e-a-peste-a-culpa-e-a-inocencia-da-humanidade/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/25/fascinio-de-kafka-nao-se-esgota/

https://armonte.wordpress.com/2012/11/26/como-chegar-ao-castelo/

https://armonte.wordpress.com/2010/04/07/a-morte-do-caixeiro-viajante/

https://armonte.wordpress.com/2012/09/25/o-amor-complicado-dos-marxistas-por-um-cinefilo/

https://armonte.wordpress.com/2010/06/27/toy-story-as-exigencias-da-infancia/

https://armonte.wordpress.com/2010/06/29/um-verdadeiro-exercicio-de-parodia/


[1] O livro ocupa na obra de Kafka uma função equivalente (de tateio e busca da própria voz) de Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá  na obra de Lima Barreto. Recordações do escrivão Isaías Caminha seria  O Processo do grande escritor carioca, Clara dos Anjos (que eu não aceito como “incompleto” e sim como uma novela perfeitamente acabada) seria o seu A Metamorfose, e por fim, sua obra-prima suprema, Triste Fim de Policarpo Quaresma seria o equivalente de O Castelo. É lógico que essas aproximações só existem de fato na minha cabeça, aproximações que comecei a elaborar a partir de 2005 [nota de 2010]

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