
![os-homens-que-nao-amavam-as-mulheres-stieg-larsson[7]](https://armonte.files.wordpress.com/2012/01/os-homens-que-nao-amavam-as-mulheres-stieg-larsson7.jpg?w=335&h=480)
“… há dezenas e dezenas de assassinatos de mulheres não solucionados na Suécia do século XX. Certa vez ouvi Persson, o professor de criminologia, dizer na tevê que os assassinos seriais são muito raros na Suécia, embora alguns jamais tenham sido identificados (…) Esses crimes foram cometidos num período muito longo e em diferentes regiões do país (…) Não há um esquema claro, marcante. Os crimes foram cometidos de formas diferentes e não há uma verdadeira assinatura, apesar de alguns elementos retornarem toda vez. Animais, Fogo. Violências sexuais graves. E, como você disse, uma paródia de conhecimentos bíblicos. Mas, pelo que se sabe, nenhum dos investigadores da polícia usou a Bíblia para interpretar os crimes…”

(o texto abaixo foi condensado para uma resenha publicada em A TRIBUNA de Santos, em 31 de janeiro de 2012)
TRADUÇÃO E ESTILO
É escandaloso que as editoras brasileiras ainda publiquem traduções indiretas a partir de versões francesas ou anglo-americanas, como fez (em 2008) a Companhia das Letras com a série Millennium (2005), de Stieg Larsson (1954-2004): Paulo Neves, por exemplo, traduziu o primeiro volume, Os homens que não amavam as mulheres de Les hommes qui n´aimaient pas les femmes e não de Män som hatar kvinnor, o que explica talvez por que o título é tão rebarbativo, quando simplesmente seria mais lógico e preciso “Os homens que odiavam as mulheres”. O fato é tanto mais inexplicável porque, neste caso específico, o retorno financeiro era garantido, será que não poderiam investir numa versão direta do sueco?
Por conseguinte, a primeira observação a ser feita é que não dá para julgar o estilo de Larsson, sua qualidade geral como escritor, graças às opções da edição brasileira. Seria uma impropriedade, ainda mais porque de fato me incomodei muito com algumas passagens demasiadamente pedestres (sem contar quase que um tom publicitário, em certos momentos). Vou dar alguns exemplos, para desimpedir a área e falar do enredo, todavia é preciso considerar que se trata de uma versão de uma versão, e por isso não se pode chegar a nenhuma conclusão, mesmo que o leitor experiente possa alimentar algumas suspeitas:
(pág. 64): “Às vezes viam-se com tanta freqüência que tinham a impressão de ser um casal; outras vezes transcorriam semanas, meses, entre cada encontro. Mas, como os alcoólatras atraídos pelas prateleiras de bebidas após um período de abstinência, retornavam sempre um para o outro em busca de mais (…) Aí veio a Millennium e, menos de uma semana depois, todas as resoluções vieram abaixo quando, no final de um dia de trabalho, os dois fizeram amor selvagemente em cima da mesa de Érika…”
(pág. 136): “Tentou falar com Érika mais uma vez, e ouviu uma voz pedindo que deixasse uma mensagem. Fez isso, depois apagou a luz e foi se deitar. Seu último pensamento antes de dormir foi que corria o sério risco de enlouquecer com o isolamento de Hedeby...”1
(pág. 200-201): “A mochila continha seu iBook Apple 600, branco, com o disco rígido de 25 gigas e memória RAM de 420 megas, fabricado em janeiro de 2002 e com tela de 14 polegadas. Quando o adquiriu, era o que havia de melhor na Apple (…) Fizera cópias de todos os documentos e ainda possuía um velho computador de mesa Mac G3 e outro Toshiba portátil que poderia usar (…) Optou, como era de se esperar, pela melhor escolha possível: o novo Apple Powerbook G4 de 1Ghz, com tampa de alumínio e dotado de um processador Power PC 7451, AltiVec Velocity Engine, memória RAM de 960 megas e disco rígido de 60 gigas. Tinha Bluetooth e um gravador de CD e DVD integrado. Mais que isso, era o primeiro notebook do mundo com tela de 17 polegadas, uma placa Nvidia e resolução de 1440 por 900 pixels…”
(pág. 271): “Num dos primeiros dias de junho, Mikael foi a Hedestad. Estava pensando em outra coisa, quando o ônibus entrou na estação, e foi então que subitamente se deu conta do que havia germinado em seu cérebro. A luz o atingiu como um relâmpago num céu sem nuvens…”
Creio que é suficiente. Não insistirei no assunto.

ENREDO E MISTÉRIO
Passei dois dias inteiros entretido com a leitura das quinhentas páginas de Os homens que não amavam as mulheres. Como se diz, devorei o livro. Realmente me envolvi com a história do jornalista Mikael Blomkvist (um dos editores-sócios da revista investigativa Millennium, de Estocolmo) que vai para a isolada ilha de Hedeby, em Hedestad, para (a princípio relutantemente; convencido, contudo, com a possibilidade de virar o jogo contra o mega-empresário Wennerström, que o derrotara na justiça, impondo-lhe três meses de prisão e uma indenização) oficialmente escrever a biografia do idoso (82 anos) e afastado chefe de um tradicional grupo empresarial familiar da Suécia, agora em declínio, Henrik Vanger, e extra-oficialmente revisar todo o material acumulado desde 1966, ano do sumiço e provável assassinato da sobrinha do milionário, Harriet (que morava com ele, pois o pai se afogara e a mãe era uma alcoólatra), aos dezesseis anos.
O paradeiro de Harriet Vanger nunca foi descoberto nem o suposto crime solucionado. Nos aniversários de Henrik, a menina tinha o hábito de lhe dar flores emolduradas. Após 1966, ele continuou a receber esse tipo de presente, e como desconfia de que foi um dos membros da família que se livrou de Harriet (pouco antes de seu desaparecimento, ela disse—com outras pessoas presentes—que precisava muito conversar com ele, mas um acidente dramático na ponte que liga a ilha ao continente tomou a atenção de todos naquele dia), também suspeita que esse envio de flores é um perverso ato do assassino para infernizar sua vida, mantendo-o obcecado.
Mikael cai num ninho de cobras (ao mesmo tempo, é um encanto do livro narrar de forma tão meticulosa o cotidiano que ali estabelece, a paisagem, os tipos humanos, até o comércio local, parece que nos ilhamos com ele): as casas locais são habitadas por empregados leais ou parentes que se detestam e não se falam, a família tem na sua árvore genealógica vários membros que foram ativos participantes de movimentos nazistas, e a única pessoa realmente simpática, fora Henrik, é o seu atual sucessor à testa do grupo empresarial consideravelmente encolhido, mas gozando ainda de prestígio: Martin, irmão de Harriet.


Dos demais, a que mais se aproxima de Mikael (e se aproxima mesmo, pois iniciam uma ligação sexual) é Cecilia Vanger, só que depois ela se alinha com o restante dos familiares na pressão para que se afaste (ele sofre um atentado, o gato que acolhe na casa de hóspedes é esquartejado, e todos começam uma campanha de hostilidade explícita), quando fica evidente que está descobrindo novos fatos e indícios, nunca antes vistos no material reunido por Henrik ao longo das décadas.
Fazendo um tratamento tecnológico moderno das fotos de Harriet no dia do seu desaparecimento, ele percebe que antes de atravessar a ponte e voltar para casa, para a reunião familiar anual que ali acontecia, a garota viu algo em Hedestad que a perturbou e que fez com que ela quisesse ter a conversa esclarecedora com Henrik. E graças a uma visita da própria filha (envolvida em estudos bíblicos, causando preocupação ao pai), Mikael descobre que certos números e nomes anotados no diário de Harriet são referências ao Levítico, e ele estabelece uma ligação entre as passagens que os números apontam e brutais assassinatos (com mutilações terríveis, além de estupro) de mulheres ao longo de décadas por toda a Suécia. O que ele não consegue entender é como uma adolescente de dezesseis anos podia saber detalhes de tais crimes…2
Essa atmosfera de local isolado e microcósmico, com um pequeno grupo de suspeitos, sempre me cativará, é o legado Agatha Christie, e faz com que me interesse até por coisas do tipo Caçadores de Mentes, de Renny Harlin, que não é nenhuma maravilha, mas cuja premissa é atrativa.
Nem importa muito que se saque bem antes do final quem é o assassino e o que aconteceu com Harriet. Sob o ponto de vista do mistério tradicional, dá para ler numa boa, com grande prazer, Os homens que não amavam as mulheres.

Acontece que não é só Mikael quem investiga o caso. Após se convencer de que há uma ligação entre o sumiço/provável morte por homicídio de Harriet e os crimes envolvendo as mais diversas mulheres, ele solicita ajuda para pesquisa do advogado de Henrik (o qual sofrera um infarto e está internado), Dirch Frode, que também pertence à lista dos suspeitos, e este revela sem querer que chegaram ao nome de Mikael através de um minucioso dossiê elaborado pela estranha investigadora da firma de segurança de Dragan Armanskij, uma figura disfuncional e no entanto eficientíssima em seu tipo de serviço subterrâneo, Lisbeth Salander (que, creio eu, Stieg Larsson tomou como seu grande achado ao conceber Millennium, e o sucesso de Rooney Mara na adaptação cinematográfica parece lhe ter dado razão).
Mikael fica ao mesmo tempo horrorizado e fascinado com o dossiê elaborado pela hacker que é tutelada pelo Estado (devido ao seu histórico psiquiátrico), procurando-a então e vencendo sua habitual resistência a qualquer pessoa, principalmente tipos masculinos que evocam “autoridade”, sua antissociabilidade, seu quase autismo, a atrai para a pesquisa dos históricos dos assassinatos.
Creio que é a hora de parar de falar dos eventos narrativos, sob o risco de ser por demais indiscreto e desmancha-prazer. O que se tem de verificar agora é se a participação de Lisbeth Salander realmente ajuda na história ou se a atrapalha. Para mim, há uma mistura dos dois resultados.

Para começar, há um deplorável proselitismo de Larsson com relação à violência contra as mulheres (que parece ser alarmante na insuspeita Suécia, assim como o nível de corrupção e o apego a elementos fascistas), representado por estatísticas e certas insistências desnecessárias. Não precisava tanta falta de sutileza: o título, o desvendamento dos crimes, passados e presentes, tudo deixaria isso muito mais claro e menos demagógico (mesmo porque ele, caso vivesse, lucraria muito com o livro). E o drama da própria Lisbeth Salander já seria suficiente (apesar dos exageros): ela sempre foi bem tratada por um tutor compreensivo, que talvez fosse a única pessoa de sua confiança, e que lhe permitiu liberdade absoluta na condução da sua vida; este, entretanto, sofre um AVC e lhe designam outro, que controlará suas finanças e abusará dela sexualmente, de forma particularmente hardcore, até que ela lhe o troco. Esse troco me parece um dos pontos discutíveis da narrativa, muito mirabolante e fantasioso. Pode até ser catártico para todos nós a maneira como ela se livra do tutor, pouco antes de Mikael aparecer em carne e osso na sua vida (e ela se apaixonará, de uma maneira também um tanto forçada), mas é uma das voltas do parafuso com o qual Lisbeth Salander, se por um lado ajuda no encanto entretecedor da história como elemento de uma dupla investigativa carismática, por outro a atrapalha e faz adernar.
Tudo bem sua disfuncionalidade e aparência pouco ortodoxa, se é que isso ainda existe (anoxérica, parecendo uma adolescente aos vinte e quatro anos, toda tatuada e cheia de piercings3) como contraste à figura mais convencional de Mikael. O que me irrita profundamente é que os autores sempre caem no clichê de mostrar que, por trás da disfuncionalidade, não há apenas uma inteligência normal, mas genialidade. Sim, porque a certa altura percebemos que Salander é praticamente um gênio da informática, além de possuir memória fotográfica, claro, consumindo documentos com a mesma facilidade do nerdíssimo dr. Reid de Criminal Minds. É mentalidade de seriado e de fantasia juvenil. Enfim, ela não podia ser esquisita apenas e envolvente como personagem, tinha de ser algo hiperbólico, vencendo inclusive um arguto (e fortíssimo fisicamente) adversário no desfecho do mistério da ilha (enquanto Mikael está em posição de vítima).
E é por isso que embora eu tenha me deixado envolver e gostado deveras do mistério da ilha, acho horrível e pentelha toda a parte final (além de longa), o momento do novo confronto entre Mikael e Wennerström, sua nêmesis inicial. O fato de ter enveredado por esse caminho não é, entretanto, a razão da decepção causada por essa parte. Se fosse mais curta, e menos hiperbolizada, seria um final perfeito.
Acontece que Stieg Larsson resolveu fazer de Salander uma heroína de livros de Robert Ludlum, ou então algo entre Lara Croft e a Sydney Bristow, protagonista daquele delicioso seriado Alias (vivida por Jennifer Garner), a qual rodava o mundo em poucas horas, disfarçava-se de qualquer coisa, entrava em qualquer sistema ou área restrita.
Transformada numa mulher poderosa e turbinada, Salander vai esvaziando pela Europa afora contas estratégicas de Wennerström e Os homens que não amavam as mulheres se torna um outro livro para mim, uma ficção indigesta pelo qual não tenho o menor interesse, simpatia ou envolvimento (mesmo assim, com um instinto caça-níqueis invejável, cortejando a porção adolescente cada vez maior do público, que parece não se contentar mais com um tom adulto nas histórias, tem que ter essa reserva de puerilidade, muito enfatizada pela mentalidade nerd predominante). Ele já abusara da paciência, nos levando a Austrália (não contarei o porquê). Antes tivéssemos ficado em Hedeby, em meio às intrigas da família Vanger.

O FILME DE DAVID FINCHER
Por todos os motivos expostos acima, acabei apreciando mais o resultado final do filme de David Fincher, apesar das inevitáveis super-simplificações da trama e de detalhes apressadamente contados, que são inevitáveis quando se faz uma versão tradicional, sem nenhum empenho autoral, de um livro. Pois, apesar do trabalho estiloso, elegante, Fincher certamente fez um filme pouco pessoal, nada como o esplêndido Zodíaco, por exemplo. Mas muito eficiente.
O roteiro de Steve Zaillian eliminou certas situações, sem prejuízo (como o caso com Cecilia Vanger e a período na prisão) e conseguiu um grande achado, alterando a solução do paradeiro de Harriet de forma muito mais consistente e bem-amarrada do que no romance (nada tira o fato de que não se pode ter a menor simpatia por uma pessoa que atormenta durante trinta e poucos anos uma pessoa dita amada, mandando-lhe presentes que ganham um ar macabro e perverso). É pena que ele não promoveu alterações mais profundas no final, que ficou mais rápido e enxuto (como devia ser no livro), dando mais dignidade à revanche de Mikael, mas ainda com a inverossímil e ridícula intervenção de Lisbeth Salander no mundo das altas (e escusas) finanças.
E aqui entra o calcanhar de aquiles de Rooney Mara, indicada para tantos prêmios de atriz principal (entre eles, o Globo de Ouro e o Oscar). Que ela é perfeita para o tipo de personagem, isso é inegável, e toda a sua composição cai como uma luva, principalmente no contraponto com o ótimo Daniel Craig (que está demais: ao invés de James Bond, temos um tipo meigo, sutil, quase frágil, sem veleidades de herói, inclusive no plano físico), até o clímax. Já era meio cômico ver a graciosa Jennifer Garner e seus disfarces de “fatal” e “poderosa” em Alias, só que era um dos fetiches da série: os seus absurdos. Quando Rooney Mara tem de se caracterizar quase como uma Bond girl na etapa final, ela acaba caindo na caricatura e convence muito pouco. Fica parecendo a vulgaríssima Cristina Aguilera quando quer dar uma de diva do passado ou figura de musical.


Mesmo assim, como thriller cinematográfico, Os homens que não amavam as mulheres convence mais, no todo, do que o romance. No futuro, preferirei frequentar essa versão abreviada e sintética de uma narrativa de quinhentas páginas que resultou mal alinhavada. A historinha no fundo está toda ali e numa dose mais aceitável.
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1 O que representa uma risível super-suscetibilidade do personagem, que mal chegara ali. Diante do que acabara de enfrentar (um processo de difamação) e iria enfrentar depois (prisão, a investigação de um crime cheia de tensão, perigo de morte), o trecho soa como puro efeito vazio.