PRIMEIRA PARTE
“O coração
A cada chamado da vida deve estar
Pronto para a partida e um novo início
Para corajosamente e sem tristeza
Entregar-se a outros, novos compromissos.
Em todo começo reside um encanto
Que nos protege e ajuda a viver…”
O trecho é de um dos poemas de Joseph Knecht (cujo sobrenome significa servidor), protagonista de O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO (Das Glasperlenspiel, 1943, traduzido pela dupla Lavínia Abranches Viotti & Flávio Vieira de Souza), de Hermann Hesse (1877-1962), que está saindo numa nova edição pela Record, aparentemente “revisada” (é o que alardeia a editora). Durante anos, eu esperei por esse acontecimento, uma vez que sendo ótima, antológica, essa tradução vinha há anos (desde sua publicação original pela Brasiliense) sendo reimpressa com vários erros, além de apresentar de cara um detalhe problemático: a transcrição dos nomes próprios: basta dizer que abrasileiraram Joseph Knecht para José Servo!
Entretanto, na nova edição a capa continuou muito feia e poluída, os nomes próprios aparecerem grafados de forma discrepante ao longo do livro (vai ver só se deram ao trabalho de revisar o começo, afinal é um livro muito extenso), e vemos Johann Sebastian Bach virar João Sebastião Bach. Knecht continua Servo. Há omissões evidentes de palavras, trocas (doença por dança, táticas por tácitas, etc) e efetuaram uma divisão de parágrafos no mínimo suspeita. Só aqui e ali se constata uma efetiva e salutar revisão, como a mudança de Livro das Metamorfoses, como antes aparecia, para o título em uso na atualidade, Livro das Mutações, para designar o I-Ching. Só que é muito pouco para um romance dessa importância e para um lançamento caro.
O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO é a obra máxima de Hesse e sintetiza sua filosofia de vida (principalmente pós-Demian): trata-se de uma apologia do que ele chama “despertar”, no sentido dos versos que abrem este artigo. No romance, por causa das guerras do século XX (chamado de era do folhetim) houve uma mudança global. Criou-se uma província pedagógica, aparentemente utópica, a Castália, para preservar os valores culturais verdadeiros! Lá são cultuadas a Matemática, a Música, a Astronomia, e também o Latim. A ciência e a arte são manipuladas através de uma prática esotérica e misteriosa, o Jogo de Avelórios.
O narrador se resolve a contar a vida de Knecht a partir de sua indicação como um dos eleitos para viver na Castália, quando menino e órfão, de origem obscura. Ele se tornará, malgrado uma certa atitude outsider (vive um tempo com um sábio especialista na língua chinesa e no I-Ching), o Magister Ludi (Mestre do Jogo), porém romperá com o mundo da Castália e preferirá tornar-se um mero preceptor no mundo secular (há, porém, um final abrupto e estranho, logo no início da sua nova vida, perto dos 50 anos): “o seu caminho tinha seguido um círculo, uma elipse ou espiral, ou uma trajetória qualquer, menos uma linha reta, pois é evidente que a linha reta pertence apenas à geometria e não à natureza ou à vida”.
Por que Knecht abandona Castália? Porque, antes de ser eleito Magister Ludi, viveu alguns anos como emissário da província num mosteiro beneditino e enfronhou-se no estudo da História (uma disciplina desprezada pelos seus confrades) com o Padre Jacobus, grande personagem que homenageia o historiador Jacob Burckhardt, assim como Thomas van der Trave, o Magister Ludi anterior à Knecht, nos reporta a Thomas Mann (nos anos em que escreveu o livro, Hesse acompanha também o desenvolvimento de José e seus irmãos, conforme podemos ver pela correspondência trocada entre os dois amigos, e por isso nada nos impede de ver no próprio nome Joseph/José, e na sua trajetória, que combina momentos de obscuridade e momentos de glória, descenso e ascensão, uma alusão ao herói bíblico da tetralogia, que foi completada com José, o provedor, publicado no mesmo ano de O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO, embora as associações na obra de Mann sejam mais procuradas noutra obra dessa fase tardia, Doutor Fausto, de 1947).
Conhecendo melhor História (“estudar História significa entregar-se ao caos, conservando a crença na ordem e no sentido”), Knecht se dá conta de que Castália está encastelada numa existência alienada. Apesar de sustentada pelo mundo secular, procura se manter longe das lutas quotidianas e das grandes questões mundiais. Hesse faz, assim, uma contundente acusação à cultura humanística do seu tempo que não soube incorporar a práxis histórica, e se transformou numa cultura de especialistas. E que, no caso alemão, deu espaço para o nazismo e foi derrotada por ele.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 29 de abril de 2003)
SEGUNDA PARTE
Na seção anterior comentei os pontos discutíveis da nova edição “revisada” de O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO, e também o plano geral da obra e seu “corpo” principal, a biografia do protagonista, Joseph Knecht, o qual, após tornar-se o Magister Ludi, abandona a província pedagógica onde o jogo do título é praticado.
Em Sidarta (1922), o narrador nos diz que o herói do livro teve a percepção do que, na verdade, significa a sabedoria: “Nada era a não ser a predisposição da alma, a faculdade, a arte secreta de conhecer a cada instante em plena vida a idéia de unidade, de sentir a unidade, de encher dela os pulmões”.
Essa é a tônica das três belíssimas histórias que complementam O JOGO DAS CONTAS DE VIDRO, além da história principal (que termina de um modo estranho, como se Hesse não tivesse a energia para inventar uma vida para Knecht pós-Castália) e de um conjunto de poemas.
São três possibilidades de reencarnação de Joseph Knecht, uma no período pré-civilizatório (O conjurador da chuva), outra nos primeiros tempos do Cristianismo (O confessor) e outra numa Índia atemporal (A encarnação hindu). Não é à toa que o livro se fecha com esta última, uma vez que é no pensamento oriental, com sua consciência da impermanência e transitoriedade de tudo (e mesmo assim uma noção de unidade, e não de fragmentação), que Hesse encontra saída para o impasse da razão ocidental, para sua tendência à petrificação e perpetuação.
Mais ainda, todos os caminhos para o despertar individual só podem ser experimentados, jamais ensinados ou doutrinados. Sabedoria que encontra eco num dos filmes mais importantes do nosso tempo, Matrix, no qual Morfeus diz a Neo, o Escolhido, “cedo ou tarde você vai perceber, como eu, que há uma diferença entre conhecer o caminho e percorrê-lo”.
Em O conjurador da chuva, Knecht é uma espécie de feiticeiro de uma tribo (cuja linha de poder é matriarcal). Sua função: dominar fenômenos da natureza para propiciar a colheita e a prosperidade da aldeia; caso contrário, seu destino é a imolação. É magistral a maneira como Hesse nos mostra Knecht-conjurador (apesar de guiado “mais pelos sentidos do que pelo intelecto”) como ancestral da pesquisa científica, embora algo tenha se perdido pelo caminho: “…aspiravam à mesma meta da ciência e da técnica dos milênios posteriores, ao domínio da natureza e ao manejo de suas leis”, entretanto “não se separavam da natureza nem tentavam descobrir seus segredos à força, nunca se contrapondo a ela ou lutando com ela. Continuavam parte integrante da natureza, com inteira e devota entrega de si próprios”. É assim que se pode fazer jus à condição de conjurador do tempo: “Em períodos de puríssima concordância e harmonia anímica, ele trazia no seu íntimo o tempo dos próximos dias, com exatidão e sem perigo de erro, prevendo-o como se trouxesse no sangue a partitura a ser tocada lá fora”.
O confessor, por sua vez, ao discutir o problema da alteridade, quase nos coloca no universo de Borges (assim como um os poemas de Knecht, Um sonho, no qual um bibliotecário vai desfazendo o que se lê nos livros catalogados). Dos três, é o meu favorito pessoal, e um dos supremos momentos de Hesse. Mostra como um latinizado Knecht (Joseph Flamulus), anacoreta do deserto que ouve sem julgar os pecados dos penitentes, cansa-se da sua condição e resolve procurar Dion, outro confessor, o qual age de forma oposta, anatematizando os penitentes. E é o suposto confessor rabugento que dirá para Flamulus as seguintes e inesquecíveis palavras, das quais Dostoievski teria orgulho: “Nós é que somos pecadores propriamente, nós que sabemos e pensamos, que comemos da árvore do conhecimento (…) não somos nunca inocentes, somos pecadores perpétuos, morando no pecado e no incêndio de nossa consciência (…) Nós não estamos nos ocupando deste ou daquele desvio ou prevaricação, mas continuamente com a própria culpa original. Por isso é que um de nós só pode assegurar ao outro que está a par do que se passa e que o ama como irmão”. Hesse já criara, em 1930, uma elegante e bela coincidentia oppositorum, em Narciso e Goldmund, um dos seus melhores livros. De qualquer forma, quem ler a narrativa, verá que solução genial é encontrada para o dilema de Flamulus.
A encarnação hindu distingue-se de Sidarta porque o personagem não é um buscador da Verdade, dedicado à procura do sagrado e do divino. Pelo contrário, é nas fímbrias do sagrado que o personagem principal, Dasa, vai vivenciar o Maia, a vida ilusória que tomamos como realidade, antes de se tornar servidor de um sábio iogue, cuja presença permeia sua vida, a qual oscila entre a glória e a desgraça: “de súbito todos os longos anos que vivera, os tesouros que guardara, as alegrias que gozara, as dores sofridas, o medo que sentira, o desespero que atingira as raias da morte, eram-lhe tirados, apagados, transformados em nada—e no entanto não se extinguiam! Pois a recordação permanecera, as imagens haviam ficado dentro dele….”Moral: mesmo perseguindo a transcendência, não se pode desembaraçar-se da experiência.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 06 de maio de 2003)