MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

24/12/2010

“A cidade há de seguir-te(…) A esta cidade sempre chegarás”

Em Pontos de fuga, Graham Greene, ao falar sobre lugares que capturam o nosso coração, escreve: “Aos 31 anos, na Libéria, dei meu coração à África Ocidental… Meu amor pela África aprofundou-se ali, em particular pelo que é chamado, no mundo inteiro, a Costa, aquele mundo de tetos de zinco, de urubus pousando ruidosamente, de caminhos de laterita ganhando uma cor rosada à luz do entardecer.”

Há exatamente 50 anos, Lawrence Durrell (1912-1990) lançou o primeiro volume (Justine) do mais inesquecível registro ficcional do feitiço de um lugar: “Em essência, o que é essa nossa cidade? O que resume o nome Alexandria? Num relance, minha mente exibe incontáveis ruas tomadas de poeira..o doce odor da poeira dos tijolos e das calçadas quentes saciadas com água”.

É desconcertante que só agora apareça uma tradução brasileira de O quarteto de Alexandria (durante anos circulou por aqui a ótima versão portuguesa, de Daniel Gonçalves), que seria completado em 1960. Trata-se de um dos romances mais belos a destrinçar o paradoxo de se existir mais na memória do que no próprio ato de viver.

Então, temos a cidade e a memória, o labirinto e o fio de Ariadne que nos permite percorrê-lo. A cidade, em sua dimensão mitológica, onde Justine, amante do narrador “errava em busca (no meio de uma terrível solidão do espírito) do lampejo que lhe revelaria uma nova perspectiva do seu ser” (é preciso dizer que a, em geral correta, tradução brasileira, às vezes carece de graça. Veja-se como ele traduz o mesmo trecho: “buscando com uma dedicação assustadora a centelha definitiva que a elevaria até uma nova perspectiva de si mesma”). Essa busca é a tentativa de quebrar as imagens fixadas nos espelhos cuja reiterada aparição no livro acabam proporcionando-nos uma imprevisível mistura de Proust e Borges, o mundo da memória perseguindo o Ser e o mundo fantasmagórico em que o ser é apenas um reflexo e igualmente pode Não-ser: “Na hora de ir  para a cama, Justine olhava-se no espelho do primeiro patamar da escadaria e ralhava com seu reflexo: Estou cansada de você, sua judia presunçosa e histérica!”

O narrador do livro é um professor irlandês, envolvido com uma dançarina de cabaré que se prostitui, Cléa. Ele conhece Justine, esposa do milionário Nessim, discípula do místico Balthazar, descendente espiritual da sua homônima criada pelo Marquês de Sade, envolta em sensualidade, mas com um “ar de perpétuo esgotamento” (“uma verdadeira filha de Alexandria; nem grega, nem síria, nem egípcia, mas um híbrido, um complexo”). Enfim, uma mulher “que arrancava as pessoas dos seus velhos invólucros”. A cidade, a memória, a mulher, os grandes pólos enfeitiçantes, imantadores e galvanizantes da literatura, que propiciarão ao narrador o “primeiro grande desastre da idade madura”, numa ciranda amorosa alexandrina que oferecerá “uma existência que esperava de nós o impossível: que existíssemos” na “zona de atração que  Alexandria criava para aqueles que escolhera como seus símbolos”.

Cidade, memória, mulher, espelhos. E um fantasma literário vindo admoestar constantemente o Hamlet de Durrell: o poeta de Alexandria, Konstantinos Kaváfis (1863-1933), com sua poesia de momentos irrisórios impiedosamente reconstruídos:

Dizes: “Eu vou para outras terras, eu vou para outro mar.

Hão de existir outras cidades melhores do que esta.

De todo o esforço feito –estava escrito—nada resta

E sepultado qual um morto tenho o coração.

Até quando vai minha alma ficar nesta inação?(…)

Não acharás novas terras, tampouco novo mar.

A cidade há de seguir-te. As ruas por onde andares

Serão as mesmas… A esta cidade sempre chegarás…

A vida, pois, que dissipaste aqui, neste cantinho

Do mundo, no mundo inteiro é que a foste dissipar”. ( (tradução de José Paulo Paes)

(resenha publicada em três de março de 2007)

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