MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

07/11/2014

A Miss Bundinha de Curitiba e o Prêmio Camões: “A Polaquinha”, de Dalton Trevisan

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de maio de 2012)

Antes tarde do que nunca: semana passada, nosso maior escritor vivo finalmente foi lembrado (aos 86 anos) para o prêmio Camões.

A complicação, em se tratando de fazer uma homenagem à obra de Dalton Trevisan como um todo é a quantidade de títulos. Praticamente um livro por ano (quando não mais — fora as antologias), nenhuma resenha daria conta do seu escopo como contista, a transformação de Curitiba num microcosmo onde se pode acompanhar a passagem do rural para o urbano, o palco montado para as guerras conjugais, os fetiches, a metamorfose de meninos de família em “vampiros” sedentos de luxúria (pelo menos no terreno das fantasias descabeladas), a lenta contudo inexorável disseminação da criminalidade no cotidiano. Que títulos escolher? Essenciais, certamente (desde o seu primeiro livro “reconhecido”, Novelas nada exemplares, de 1959): O vampiro de Curitiba; Cemitério de Elefantes; A guerra conjugal; O rei da terra;A trombeta do anjo vingador; Virgem louca, loucos beijos; o recente Violetas e pavões.

Também lenta e inexorável foi desidratação a que submeteu sua prosa, cada vez mais econômica, abeirando-se do haicai narrativo, quase no limite do não-dizer (nesse sentido, a coletânea 234, de 1997, é emblemática, praticamente um “resumo da ópera”). Isso sem falar nos termos pra lá peculiares, conhecidos de sobra por seus leitores, e que permitiriam até a fixação de um léxico dalton-trevisiniano (quem pode esquecer da “corruíra nanica”?). Ou seja, não há como confundir seu texto como o de qualquer outro autor.

Resolvi, então, celebrar o Camões para Dalton Trevisan comentando seu único e genial romance. Uma das feições que seus relatos tomavam era a das minibiografias ficcionais (como o conto-título de Virgem louca, loucos beijos, que eu particularmente adoro). Em A Polaquinha (1985) a narradora conta para alguém (ou conversa consigo mesma, quem sabe?) suas venturas e desventuras com o gênero masculino, primeiramente com aqueles chamados “homens da sua vida” (um estudante de medicina, um engenheiro, um advogado e depois um motorista de ônibus), antes de se tornar uma profissional do sexo de tempo integral (antes, ela—funcionária num hospital—fazia michês para, como se diz, inteirar o orçamento).

Justamente, um dos achados de um livro inacreditável é  colocar um hiato na narrativa e não explicar claramente como se deu essa passagem brutal. Mesmo porque não se tem certeza de que os fatos ali sejam totalmente verdadeiros, volta e meia ela repassa incidentes que já havia descrito de forma crua, e os enfeita, os retoca para si mesma. Como, aliás, todos fazemos, em maior ou menor medida.

Até “cair na vida”, a Polaquinha se mantém na corda bamba do que se costuma chamar de respeitabilidade: órfã de pai, por um desentendimento com a mãe e as irmãs foi morar sozinha, e seu dia-a-dia (pelo menos, ao rememorá-lo) se concentra no envolvimento com homens e as relações sexuais com eles (e em se tratando de um romance erótico, tudo é muito bem resolvido; aliás, um dos raros em que a linguagem e os atos se combinam perfeitamente, sem falsa poesia ou baixaria gratuita).

No mais, aquela deformação cultural que persiste mesmo depois da emancipação feminina: a expectativa de que o homem mesmo que não sustente a mulher, a “ajude”, dê presentes porque já obteve “o que queria” (num dos capítulos, ela liga para um antigo amante para pedir dinheiro para as cautelas de penhora de joias). Sempre com seu olho atentíssimo aos costumes, o extraordinário escritor curitibano mostra muito bem as diferenças dos pontos de vista masculino e feminino quanto às “vias de fato”, e os desencontros que isso acarreta.

Não há drama, não há moralismo, não há lição a se tirar. Como quase todos, a Polaquinha vai empurrando com a barriga, tateando entre códigos morais vacilantes e inoperantes, entre os desafios da  realidade material e a passagem impalpável do tempo que não poupará nem a grande Miss Bundinha de Curitiba (Meu futuro com ele? O tanque de lavar roupa).

Em tempo: nunca é demais registrar como foi feliz a escolha da capa, uma sensacional figura feminina de Colombotto Rosso que já é parte constituinte da mística dessa obra-prima da nossa literatura.

VER AQUI NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2012/05/24/a-tessitura-da-genialidade-o-passaro-de-cinco-asas-e-a-trombeta-do-anjo-vingador/

https://armonte.wordpress.com/2012/05/24/miserias-minimalistas-50-anos-de-dalton-trevisan/

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24/05/2012

A tessitura da genialidade: “O pássaro de cinco asas” e “A trombeta do anjo vingador”

(as anotações e citações abaixo são excertos de apontamentos da leitura, em agosto de 2007 da edição conjunta—pelo Círculo do Livro—de A trombeta do anjo vingador e O pássaro de cinco asas, quando então planejava um curso sobre a obra de Dalton Trevisan que se chamaria “Curitibenses”, usando a palavra em lugar do correto “curitibanos” por causa de James Joyce e seu Dublinenses; ao todo, são 41 textos de um universo fabuloso e peculiaríssimo)[1]

“Quanto mais ele se humilhava, mais era exaltada: égua branca de fogo, terceiro olho na testa, querubim de cinco asas, não de seis dedos, boca de sete espirros.

   Negava-lhe o menor carinho:

__ A boca é para beijar meu filho!”

Dalton Trevisan é o gênio mimetizador de uma época em que o rural e o urbano ainda conviviam ostensivamente, em que a hipocrisia criava todo um fetichismo sexual, em que fantasia e realidade podiam conviver na linguagem (e ele mostra isso de forma magistral). Nele, o kitsch se revela como requinte autoral.

Veja-se o trecho abaixo do paradigmático Mister Curitiba (de A TROMBETA DO ANJO VINGADOR, 1977):

“Monstro de mil máscaras, desta vez quem seria? O confessor na cela da freirinha, de sete saias, a madre escutando atrás da porta? Um estropiado de guerra, a enfermeira suspensa no pescoço, girando sem parar na cadeira de rodas? O noivo de pé no corredor, rasga em tira a calcinha, os pais da menina .circo… Ela a domadora de botinha preta e chicotinho?

     Zumbia no ouvido um chorrilho de meigos palavrões…”

Ou este outro trecho, de As setes pragas da noiva:

“Em agonia, pedindo água, tapa nas costas, colher de azeite. E tossia, o maldito caroço entalado na garganta.

   Por mais que ela apontasse o olhinho negro espinho no bolso do pijama…”

Ou ainda (de Durma, gordo):

“Você sabe, não é? Então me diga, dona Chica: Por que a segunda empadinha nunca é tão gostosa? Por que o garçom não serve a segunda antes da primeira?”

E esta imagem genial (do extraordinário Questão de herança): “Sem responder, uma funda tragada, as bochechas murchas se beijaram”. E até o mundo dos michês adolescentes ele captura (em O caçador furtivo). E num dos meus contos prediletos, Meu pai, meu pai podemos ler: “Fim de noite um chorou nos braços do outro, pai e filhos bêbados. Se Pedro, que era Pedro, por três vezes negou a Jesus, por que não podia ele negar o pai?”

A tessitura da genialidade:

“Perdido de casa, sem dinheiro para o táxi, fugitivo do último inferninho…”

“…no fundo azedo das entranhas, floresce o lírio vermelho da azia…”

“Na adoração das nascidas rainhas da noite aberto o saco de presentes e distribuídos seus tesouros. Os três magos num só, em busca da estrela do Oriente, a quem ofertou o reloginho de pulso? Todo o ouro para a gorda do Tiki Bar? A mirra para a que era o palácio dos prazeres? O incenso para a Ritinha dos quatro mosqueteiros?”

“Na boca os mil beijos da paixão, sabendo uns a amendoim torrado, outros a batatinha frita…” (são todos trechos da obra-prima que é A longa noite de natal)

E do conto-título, “as mil pulgas da insônia”. E em O despertar do boêmio, “o  lírico e maldito rei da noite, maior tarado da cidade, último vampiro de Curitiba… À procura do sapato perdido na famosa viagem ao fim da noite… Enfia o roupão de seda azul com bolinha branca—lembrança da lua-de-mel… No mapa da babugem a rosa-dos-ventos indica os sete inferninhos da paixão… araponga louca do meio-dia…Tateia o pulso e, ó surpresa, ali está—um relógio à procura de uma bailarina?… Um noivo toucando-se para as núpcias com o sol…”

Achei uma anotação minha, da primeira leitura, já há quase vinte anos, no final de Galinha pinicando na cabeça: “conto genial, o melhor da coletânea inteira”. Não sei se afirmaria isso agora, contudo sei o que me atraiu: a crueza, a rapidez, a eficiência sintética e lapidar. Três páginas concisas que valem por dez: “De noite a gente quer se chegar. Mulher não é para isso? O calorzinho gostoso. Toda a alegria do pobre. Mãezinha do céu, por que ela não deixa? São oito filhos, o que é mais um?

   Essa traidora, depois de velha, não me quer na cama. Sou cachorro sem dono na chuva?”

E o eterno “doutor”, onipresente, ouvindo todas as torpezas, em tantos contos? E os eternos joões e marias. E tem o eterno amigo, André, que às vezes come a Maria.

“Se não vem, Maria, deixa eu…

   Guardada pelas verdes asas do dragão na parede.

__ Dormir com você?

    Fez biquinho, estalou a língua, tão pouco-caso.

__ Ah, é? Ah, é?

   Maria arregalou os grandes olhos putais. Não é que ele já de pistolinha na mão?

__Me acuda, Nossa Senhora. Me salve.

               (…)

   Abrindo a blusa em desafio:

__Atire, covarde. Atire em peito de mulher!” (A pombinha e o dragão vermelho).

E as deliciosas referências intertextuais: “Mudou o natal ou mudei eu?” “Janeiro é o menos cruel dos meses”. “outros barões assinalados”. E tem até um que sonha ser o “Fellini de Curitiba”, enquanto arruína uma puta, mas já estamos em O pássaro das cinco asas (1974):

“…a fabulosa égua do carro do Faraó (…) e se for gaguinha? Ou fanhosa? (…)Amor tão furioso, carro de bombeiro com a sirena uivando, a pobre Laura não podia ignorá-lo—a simples bolinha de papel que ela pisava era escorpião abrasado de fogo.

(…) No álbum de retratos antigos o calvário de sua perdição—normalista seduzida pelo próprio tio (…) Entre beijos soluçando que a crucificava de pequenas delícias, ó gostosão de todos o mais fogoso. Menos doida de paixão estivesse, não falaria assim, obrigado a recordar-se de quantos tipos a desfrutaram.

(…) Caçula mimado, o rapaz quase nos 30 anos, não trabalhava e sua mesada mal dava para o cigarro, o jornal, o cinema…”

Aliás, esse conto-título introduz um elemento novo, salvo engano: o intelectualizado, fã de Fellini e Bergman. Mas agarrado ás saias da mãe [e das putas, claro]. E há a narrativa sofisticada (no quesito tempo narrativo) em A segunda volta da chave. Já O gatinho perneta pressagia o rumo do hai-kai narrativo que o grande escritor curitibano trilharia.

E mais trechos:

“Sofria as noites curitibanas, cálice de conhaque na mão (…) á sua espera no final do corredor o sórdido quartinho de pensão.

   Era a mulher da minha vida. Por que é que eu não sabia? Como é que ninguém me contou? (…) Não tivesse ela casado com o garçom eu a esquecia. Hoje estava com outra. Agora fiquei preso a ela para sempre.” ( Noites de Curitiba)

“(…)barata leprosa

    Cambaleando ou não, os bêbados são o verdadeiro mistério do mundo (…) Ou como você explica que, por mais labirintos em que se enveredem, nunca se percam no caminho, encontrem sempre a porta exata, que fecham atrás de si com a segunda volta da chave?

 (…) O triste da noite é dormir com uma mulher”. (O guardador de bêbados)

“Esfregava o bigodão na perna gorducha, deliciando-se ao ver a pele que se arrepiava e os pelinhos que se eriçavam. Tivesse ali na coxa uma pinta de beleza? Não é—intuição? Visão do paraíso? Milagre?—que tinha mesmo, olho negro de longas pestanas.” (Peruca loira e botinha preta)

“(…) a moça pagou o táxi e o hotel.

   Alisava a costeleta e exibia a falha do pré-molar—o galã penteia mil vezes o fulgurante cabelo negro, sempre esquece de escovar os dentes…” (um dos melhores entre os melhores: A noite não tem segredos)[2]

  Adoro A rosa despedaçada, um daqueles contos mini-biografias em que ele é mestre:

“…um gigante de 18 anos, dono da única moto da cidade.

(…) Em bacanal no famoso quarto de espelhos, surpreendida no uniforme de normalista.

   À saída, preveniu o rapaz que de nada lhe valia conhecer as 64 posições do KAMA SUTRA, gritar de amor só com o infame Josias, arrebatada para sempre na garupa da moto, franguinha ao vento.

  O moço chorou de ódio, assim mesmo casou.”

Tem o telefonema-paradigma para a esposa, após a noitada de farra e excesso, e não ter chegado no “santo lar”: “Insistiam os amigos que dona Maria era uma santa, ele rato piolhento de esgoto. Santa podia ser, mas imprestável na cama.” E a frase-paradigma da mulher sobre o homem “desgracido”: “Assim que ele morra eu começo a viver”.

Entre os contos que eu destacaria, estão  Que fim levou o vampiro de Curitiba?, narrado pelo indefectível Nelsinho, e Eu, bicha:

“…que foi feito do inocente menino?

(…) O corpo de moço bonito, mais bem construído que o da mulher, não pode ser altar de sacrifício?

(…) corredor do Cine Curitiba (ali era chão sagrado)

…Django

…barata leprosa de olho pintado

(…)observavam de mão no bolso…”

   Trevisan sempre capricha nos seus títulos. Mas Última corrida de touros em Curitiba é quase insuperável.

Cito agora os dois extraordinários parágrafos finais de Moela, coração e sambaquira:

“Todas as noites do velho são dores, eis que vem o fim. No tempo das aflições minha alma é uma lesma aos uivos que retorce os chifres e se derrete no pires de sal. Devo catar as migalhas debaixo da mesa? Morder a pelanca do meu braço?

  (…) Que gosto tem a gota de sangue na gema do ovo (…) se não posso ter a minha sopa de bucho com dois aperitivos e um pão, só me cabe morrer (…) O rei da terra, quando a peticinha oferecia, erguendo um canto da saia e exibindo a grossa coxa nua: Aqui tem bastante, meu velho, para a tua fome?”

Agora: terrível mesmo é Ó doce cantiga de ninar, no qual a mãe “satisfaz” o filho, mostrando que até no aleijamento e retardo a gente não se livra do desejo e do instinto sexual, é a nossa maldição, pelo menos das formas que vivemos isso.

E Os velhinhos é o fecho perfeito para a coletânea, com seu malicioso título que evoca qualquer coisa de cândido e com um sopro nostálgico, e mostra o inferno humano, a falta de sabedoria mesmo na avançada idade:

“…única diferença de um para outro quarto é a morrinha de cada velho, ali a catinga de cachorro molhado, aqui a tristura de papagaio piolhento.

…lambem as migalhas esses que, um dia, poderosos e terríveis, foram os reis da terra… Mais que se enfeitem, não passam de velhinhos sebosos (…) A primeira janela que se ilumina no edifício vizinho encontra-os no canto escuro, passando o binóculo um para o outro (…) É suficiente olhar, espiar, frestar. Não sozinho, na doce companhia tenebrosa dos outros (…) enxame fervente de baratas leprosas na cinza do fogão…”


[1] Sou eternamente grato à coleção “Literatura Comentada” da Abril Cultural que me apresentou, entre outras, a obra de Dalton Trevisan. Foi no volume dedicado a ele que me apaixonou por Virgem louca, loucos beijos; logo depois, li Cemitério de elefantes e então o mal já estava feito.

[2] Aliás, naqueles dias de leitura do livro de Trevisan assisti numa madrugada qualquer, no Canal Brasil, um filme dos anos 1970, Bordel-Noites proibidas, que me ajudou deveras a entender ainda mais esse clima sórdido, com seus atores velhos em cenas de cama deprimentes, maus tratos às mulheres, babujando, com ar de taradas, e assim mesmo, com toda essa caíção, refletindo o gosto do público. Por que, em caso contrário, por que fariam tal filme? A que demanda ele atendia?

MISÉRIAS MINIMALISTAS: Dalton Trevisan

(resenha publicada originalmente em “A Tribuna”, em 24 de novembro de 2009)

      A primeira coletânea “’oficial” (parece que havia uns volantes anteriores, uma espécie de literatura-mimeógrafo avant la lettre, que se tornaram famosos na Curitiba da época) de Dalton Trevisan, Novelas nada exemplares, foi lançada em 1959. Neste meio século, ele publicou uma seqüência extraordinária de títulos (Cemitério de elefantes; O vampiro de Curitiba; A guerra conjugal; O rei da Terra; O pássaro de cinco asas; A trombeta do anjo vingador; Virgem louca, loucos beijos, para citar alguns), fazendo jus, após a morte de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, ao posto de nosso maior prosador vivo, pelo menos para mim, que o adorei de cara, assim que comecei a ler seus textos. Em meados dos anos 80, estava no apogeu quando publicou o inusitado romance A polaquinha, que nasceu com vocação de obra-prima.

Já na época em que minha coluna em “A Tribuna” se iniciou (1993), depois de livros como Dinorá e Ah, é?, eu me perguntava se o grande escritor curitibano não ficara em “ponto morto”. De fato, colocando no mercado praticamente uma obra por ano, a impressão que, ligado o piloto automático, cada uma delas era a mesma com novo título. Por esse motivo, fazia alguns anos que nem me dava ao trabalho de ler seus últimos textos, como Macho não ganha flor ou O maníaco do olho verde.

Violetas e pavões  (não confundir com o belo Violetas e caracóis, de Autran Dourado) se tornou assim, uma bela surpresa. Como já confessei, não li a produção mais recente de Dalton Trevisan e não posso avaliar se as qualidades dessa coletânea estavam presentes nas anteriores; baseando-me apenas nela, no entanto, afirmo que nosso maior contista está dando conta da realidade do século 21. É lógico que parte dos 22 textos ainda se voltam para suas obsessões recorrentes com os fetiches sexuais da pequena burguesia, o que nos proporciona deliciosas, porém manjadas (para o leitor habitual de Trevisan) brincadeiras como, por exemplo, “Lábios vermelhos de paixão”: “Minha putinha é o encontro místico das ondas do céu e das nuvens do mar. Já lambida do licor de abelha rainha –os pentelhos emaranhados, os grandes lábios trêmulos, o vale das sombras no portal das coxas fosforescentes”).

O surpreendente em Violetas e pavões é a substituição dos filhinhos de boa família que se pervertem em fantasias sexuais delirantes, nos bas-fonds de Curitiba, ou dos egressos de um mundo ainda rural insistindo nos seus direitos de macho e vivendo em perpétua e sórdida guerra conjugal, pela terrível realidade que inunda o noticiário atual. Temos agora vidas regidas pelo tráfico onipresente, pela necessidade incessante de drogas como o crack, pelas passagens na polícia, pelas prisões inúteis, pelo flerte com a bandidagem e a contravenção, mesmo de empregadinhos “honestos”. Nesses contos ou nos micro-textos (que ironicamente imitam a diagramação da poesia) é que Trevisan renova sua obra, de uma forma aterradora.

Ainda temos a modernização das temáticas mais antigas: a velha professora que mergulha num inferno dantesco ao ser internada num hospital público (“’Misericórdia”), a filha obrigada pelo pai a substituir a mãe (que se mandou com o amante) como parceira de cama, o que evoca o mundo constitucionalmente patriarcal da obra daltontrevisiniana (“Ele”), a sordidez miserável da guerra conjugal no caso do marido que joga álcool na mulher e a deixa toda queimada, e que, saído da cadeia, a obriga a aturar sua presença sempre por perto e ameaçadora (“Cachaça e pamonha”).

Mas os contos verdadeiramente renovadores são aqueles que, como “A desgraça de Zeno”, “Aprendiz de traficante”, “Não sou o Buba”, “Tenha uma boa noite!” ou “Elas cantam só pra mim”, nos proporcionam numa impressionante miniatura, verdadeiros short cuts os contornos da nossa atualidade. Nesses contos, Trevisan consegue o milagre de chegar quase ao “grau zero de escritura”: geralmente são em primeira pessoa, mas em certo ponto parece que essa voz se torna anônima, e estamos ouvindo conhecidos, gente que escutamos de passagem, jornalistas relatando fatos que adquirem contorno de  “lendas urbanas”.

Parece que chegamos a um estado de mito, em que tudo é ritualizado e reatualizado: a mulher que resolve ir à Bolívia e traficar, e que é roubada por falsos (falsos?) policiais, o rapaz que recebeu seu salário e que, após uns chopes, tem de voltar para casa (e para as reclamações da mulher grávida) através de uma área “barra pesada”, o rapaz que tem de reconhecer o corpo do irmão abatido por traficantes a quem devia, o fotógrafo que gosta de fumar seu baseadinho e que é pego num excesso de zelo por guardas municipais e que se complica porque tem fotos comprometedoras de menores em seu laptop…

Vejamos um exemplo:

“A polícia sabia da casa 749 do tráfico ali perto. Foram até lá. Direto pelo caminho de sangue e os sinais de luta.

     No quarteirão escuro a única de luz acesa.

      A equipe rodeou quietinha. Daí um grito lá dentro: A polícia, turma. Sujou, é a polícia!

     Um deles quis pular a janela e quando viu o cerco, voltou. A casa foi invadida. Tinha ali dois tipos de olho vidrado, três mulheres e uma ou duas crianças. A tevê ligada, um monte de latas de cerveja pelo chão. Até salgadinho e pipoca.

    No canto uma calça jeans –epa! A barra ainda molhada de sangue. Numa gaveta um revólver 38, outro 22, bastante munição.Armas e calça foram apreendidas.  Isso pelas duas e meia da manhã.” (Esse trecho faz parte do relato em primeira pessoa do irmão do assassinado personagem título de “A desgraça de Zeno”; note-se o relato impessoal, em tom de noticiário, que poderia ser feito por qualquer um).

É quase um trabalho de linguagem invisível porque tão parecido com o que se conta e reconta por aí, nas ruas, nos jornais, nos botecos. Dalton Trevisan, o Homero minimalista das pequenas guerras de Tróias compostas por corrupção policial, balas perdidas, dívidas de tráfico e salários curtos.

Aos 50 anos de carreira, o mestre renova sua fórmula.

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27/12/2009

Em relação ao século XX: 100, 75, 50, 25 anos de obras e autores

[Juan Carlos Onetti]

{Eugene Ionesco}

[Norberto Bobbio]

[Selma Lagerlöf]

100 anos- Em 2009, a escritora alemã Herta Müller ganhou o Nobel. Exatamente cem anos atrás, a sueca Selma Lagerlöf (1858-1940) tornava-se a primeira mulher a receber o prêmio. Não conheço muito bem sua obra,  só li algumas histórias de De saga em saga, uma coletânea que aparece numa coleção dos premiados com o Nobel, porém há um ensaio excelente de Marguerite Yourcenar sobre ela em Notas à margem do tempo, e que nos faz vislumbrar um universo fascinante.

    No mesmo ano em que a autora de A saga de Gösta Berlings (seu livro mais conhecido) se tornava a pioneira de uma lista ainda muito pequena, nascia na Romênia natal de Herta Müller um dramaturgo originalíssimo, que faria parte do chamado “teatro do absurdo”: Eugene Ionesco, de A cantora careca, Os rinocerontes; A lição; e, no Uruguai, um dos prosadores que mais mereceriam o Nobel no século XX: Juan Carlos Onetti, com obras do calibre de A vida breve, O estaleiro & Junta-Cadáveres, e que forma, com o argentino Jorge Luis Borges e o mexicano Juan Rulfo a santíssima trindade da ficção hispano-americana.

      Também em 1909, nascia o grande pensador italiano Norberto Bobbio, autor dos ensaios maravilhosos reunidos em Nem com Marx, nem contra Marx. E na Letônia nascia o luminoso Isaiah Berlin (que faria carreira na Inglaterra), o autor de Pensadores russos, um pensador que gostava mais de escrever ensaios do que preparar “livros”.  E naquele ano, Lima Barreto lançava seu libelo anti-racista que também, e principalmente, é um poderoso romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha.

75 anos- De 1934, gostaria de destacar dois romances essenciais: o maior livro de Graciliano Ramos, São Bernardo (ser o melhor livro de um escritor como Graciliano é um fato por si só notável; para mim, aliás, os maiores romances brasileiros do século passado são Grande sertão: veredas; A maçã no escuro; São Bernardo  & Triste fim de Policarpo Quaresma); e o terrível e avassalador Morte a crédito, de Louis-Ferdinand Céline (que talvez seja até maior do que sua obra-prima anterior, Viagem ao fim da noite). Vidas secas e cheias de angústia no Nordeste e na França. A vida lembrada, cá e lá, como memórias do cárcere

[raymond chandler]

50 anos- É difícil escolher o acontecimento literário supremo de 1959, ano em que morria o grande Raymond Chandler, pois nesse ano iniciavam suas carreiras gloriosas nomes como Günter Grass, com O tambor de lata, certamente um dos maiores romances já escritos; os outros não começaram já nesse patamar: Philip Roth (Adeus, Columbus), Vargas Llosa (Os chefes) e Dalton Trevisan (Novelas nada exemplares). O único título comparável em magnitude ao de Grass talvez seja O almoço nu, que revelou o universo muito peculiar de William Burroughs, mas cuja legibilidade maior foi possível graças à notável versão cinematográfica de David Cronemberg (a versão de O tambor nada tem de notável). Mesmo assim, um romance cinquentenário pelo qual tenho um carinho especial é Um cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller Jr, merecidamente um clássico da ficção científica, mas que não se restringe a um “livro de gênero”. Na área de contos, é difícil pensar num título mais importante do que As armas secretas, de Cortázar, não só por causa da sua qualidade literária (o meu favorito é “Cartas da mamãe”, mas o mais considerado é “O perseguidor”, baseado na vida de Charlie Parker), como pela sua influência na literatura dos anos 60 e 70: basta lembrar que “As babas do diabo” foi a inspiração de Antonioni para seu Blow up (1968). Também não se pode esquecer a irreverência, a jovialidade e o trato de linguagem de Zazie no metrô, a obra-prima de Raymond Queneau.

     Em 1959, Jean-Paul Sartre dedicou-se a escrever um roteiro imenso (depois não utilizado, naquela época não existiam as produções para a tv a cabo, não existia a HBO; mesmo assim, Sartre resmungou que as pessoas tinham paciência para ver quatro horas da vida de Ben-Hur e não tinham para ver a vida do criador da psicanálise) sobre a vida de Freud para John Huston. O filme é ótimo, mas o texto de Sartre não fica atrás: Freud, além da alma; o marcante romancista português Vergílio Ferreira lançou sua obra mais famosa, o difícil porém importante Aparição; e há quem ache uma obra-prima (não é o meu caso) Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, ainda assim um livro que se deve levar em conta. Em todo caso, eu prefiro o folhetinesco Asfalto selvagem, as deliciosas desventuras em série de Engraçadinha, uma das grandes criações de Nélson Rodrigues

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion, e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras.

julio cortázar & truman capote]

25 anos- Em 1984, morriam tanto Cortázar quanto outro autor genial, Truman Capote, cujo inacabado romance Súplicas atendidas foi lançado no Brasil este ano pela L&PM, e que prova o incrível trabalho feito pela sua alcoólica mãe (que tinha vergonha da homossexualidade do filho) para lhe incutir culpa e autodesprezo. Numa vertente gay oposta, de eliminação de toda essa automortificação, temos um clássico da nossa ficção recente, Vagas notícias de Melinha Marchiotti, de João Silvério Trevisan, um romance paródico, inventivo e infelizmente pouco conhecido, assim como Democracia, da norte-americana Joan Didion (sempre cito uma de suas frases, “ninguém está isento do movimento geral”, e sua heroína, Inez Christian Victor, é como se fosse uma amiga pessoal), e até mesmo O ano da morte de Ricardo Reis, o menos popular (e o melhor) José Saramago. Muito conhecido, pelo contrário, e igualmente notável é O amante, de Marguerite Duras, a qual justamente em 1959 havia escrito o mais belo dos roteiros em hiroshima, meu amor, dirigido por Alain Resnais.

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