(artigos publicados originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 20 e 27 de julho de 2004)
PRIMEIRA PARTE
Uma das editoras que surgiram nos últimos anos, a Germinal, vem publicando traduções suspeitíssimas. Contatos foram tentados com os responsáveis, mas não há explicações plausíveis para o fato de as traduções de Felipe Padula Borges para Mulheres apaixonadas, de D. H. Lawrence, e Wilson Hilário Borges para Os Sonâmbulos, de Hermann Broch, serem cópias de versões anteriores. Não tiveram nem o cuidado de disfarçar um pouco, o máximo a que se deram ao trabalho foram algumas mudanças insignificantes!
É lamentável, ainda mais porque se perdeu a oportunidade de oferecer, no caso de Broch, a primeira tradução legítima no Brasil (pois o suposto trabalho de Wilson Hilário Borges copia o do português Jorge Camacho para as Edições 70) de uma obra-prima; no caso de Lawrence, apesar de circular em nosso país há muito tempo, numa adaptação de Ruth de Biasi, a versão descaradamente copiada também é um texto lusitano, de Cabral do Nascimento, editada pela Record, pelo Círculo do Livro, pela Abril Cultural e recentemente pela Nova Cultural, herdeira mais pobre (em qualidade).
Nas próximas semanas, poderei fazer justiça, aqui, à qualidade das obras em si. O que é preciso salientar agora é o acintoso desrespeito com o público leitor: capas bregas, preços absurdos (Mulheres apaixonadas, 59 reais; Os sonâmbulos, 77 reais; ainda por cima, na capa deste último, o sobrenome do autor austríaco saiu errado: Hermann Brock!!!!), incríveis erros de copidesque, falta de informações (textos clássicos mereciam no mínimo orelhas decentes e esclarecdoras) e tratamento editorial estapafúrdio: em Mulheres apaixonadas há um bisonho texto na contracapa no qual ridiculamente se compara o grande romance lawrenciano a uma reles telenovela exibida há pouco pela Globo. Tirando o oportunismo deslavado, é o mesmo que comparar o rio Amazonas a uma piscina infantil que se monta em qualquer casa. Temos pérolas do tipo: “… a grande semelhança entre Lawrence e Manoel Carlos encontra-se na exposição do amor como uma força intrínseca da natureza humana. Ambos colocam as paixões como vendavais ou tempestades que arrastam os vulneráveis e frágeis seres humanos”. Ora, ora.
Pobre Lawrence, encontramos trechos irritantes e aflitivos em Mulheres apaixonadas (o que não me impediu de colocá-lo aqui nesta minha coluna de A TRIBUNA entre os 100 maiores romances do século passado) e em outras grandes obras suas, mas ele não merecia isso.
SEGUNDA PARTE
Em artigo anterior, esclareci para os meus leitores que uma suposta nova tradução de Mulheres apaixonadas (1921), de D.H. Lawrence, lançada recentemente pela editora Germinal, é na verdade cópia de uma anterior, a qual circula desde os anos 70.
Picaretagens à parte, é incrível como um livro excessivo e desigual, cheio de idéias regressivas e reacionárias, ideologicamente anti-democrático, e cujas personagens são boa parte do tempo antipáticas e desagradáveis, pode ser tão genial e belo.
Lawrence coloca contra a paisagem demoníaca criada pelas minas de carvão a pedagogia amorosa que envolve dois casais: as irmãs Brangwen, Ursula e Gudrun (bem diferente de duas outras irmãs famosas da literatura eduardiana, as Schlegel de Howards End, de E.M. Forster) envolvem-se com os amigos (uma estranha amizade) Rupert Birkin e Gerald Crich, respectivamente.
Gudrun representa os artistas avançados e moderninhos, desligados das suas raízes e incapazes de encontrar um referencial “autêntico”; Gerald é o magnata que se fez pela exploração dos mineiros e no processo, estabelecida uma organização industrial implacável, não há mais lugar para uma liderança viva e orgânica, tornando-o —com todo o seu poder e dinheiro —outra peça da engrenagem. A relação deles sempre mantém uma atmosfera ameaçadora (como os futuros casais de Marguerite Duras, penso em Moderato Cantabile, por exemplo) e é tão exasperante que tem de acontecer algo trágico para que eles possam se libertar um do outro.
Enquanto isso, após relutar muito, Ursula casa-se com Rupert e eles se tornam um casal experimental, testando novos limites, que não sejam apenas os dos egos pessoais e do amor passional, mas não de maneira linear, e sim por avanços e recuos. Eles aventuram-se na vivência de uma Masculinidade e uma Feminilidade fora dos padrões da sociedade burguesa, caminho que Lawrence radicalizará em seus dois projetos finais ambiciosíssimos, A serpente emplumada (1926) e O amante de Lady Chatterley (1928).
O romance, como romance, perde muito com isso. O leitor fica admirado com cenas extraordinárias, como aquela em que a amante de Rupert, Hermione, o agride homicidamente para se livrar da relação sufocante e ele tem de defender sua vida, fugindo para a noite, uma noite de auto-contemplação, uma das mais belas “noites escuras da alma” da ficção; ou aquela em que Rupert e Gerald lutam judô (com a tensão homossexual entre eles a mil), ou ainda o clímax na neve, com o confronto final entre Gudrun e Gerald. Eu as li pela primeira vez aos 18 anos, releio-as agora beirando os 40 e continuam achando-as admiráveis, momentos que nunca saem da cabeça do leitor. Que, depois, aos 18 ou aos 40, tem de aturar preleções intermináveis dos personagens e reflexões odiosas por parte do narrador. E, de repente, uma frase lapidar, um trecho inexcedivelmente lúcido, resgatam tudo.
Escrevi tais resenhas após tentar esclarecimentos da Germinal. Pouco depois, meu saudoso amigo Antonio Barbosa Jr. colocou-se em contato com a redação da Folha e entao eu e o jornalista Luiz Fernando Vianna e trocamos a seguinte correspondência.
Alfredo,
Sou Luiz Fernando Vianna, fiz aquela matéria da Folha sobre o plágio da editora Germinal. Recebi sua mensagem e ficamos interessados em dar matéria na semana que vem. Queria tirar umas pequenas dúvidas com você. Se pudermos nos falar, meu número é (021) xxxxxxxxx. Ou (021) xxxxxxxxx.
Obrigado,
Luiz Fernando
Alfredo,
A tradução de “Mulheres Apaixonadas” que você tem é portuguesa, certo? Pergunto porque a tradução da Record é outra, de Renato Aguiar, e foi feita especialmente pra editora. A cópia, imagino, deve ter sido feita da portuguesa. E você sabe qual é a editora portuguesa?
Muito obrigado,
Luiz Fernando
Luiz,
a tradução de “Mulheres Apaixonadas” que a Record está lançando é nova, e faz parte de uma coleção que apresenta versões caprichadas de clássicos. Por exemplo, eles tinham em seu catálogo uma tradução antiga de Brenno Silveira, para O GRANDE GATSBY, de Fitzgerald, e no ano passado lançaram uma tradução de Roberto Muggiati.
É o mesmo caso de “Mulheres Apaixonadas”. Eu tenho um exemplar que comprei em 1982, que é da Record, mas é uma adaptação brasileira feita por Ruth de Biasi de uma tradução portuguesa de Cabral do Nascimento (creio que lançada por lá pela ed. Ulisséia). Tive a pachorra de procurar em sebos, na época do meu artigo, e descobri que essa tradução/adaptação foi editada muitas vezes por aqui (pelo Círculo do Livro, pela Abril Cultural, pela Ediouro e pela Nova Cultural, além da Record). É ela que foi plagiada por Felipe Padula Borges.
Eis um trecho plagiado:
pág. 482 (ed. Record): “Aquele lugar evocava uma panela pouco funda que jazesse entre neve e pedregulhos, num mundo perto das nuvens. Ali adormecera Gerald. Em volta os guias tinham pregado estacas de ferro, de maneira a poderem içar-se com o auxílio de uma comprida corda amarrada a elas; assim atingiriam, para além dos cimos denteados, a área de neve endurecida, que se confundia com o céu e onde se escondia Marienhutte entre penhascos. Em toda a volta havia picos aguçados erguidos para o firmamento, como compridos pregos muito alvos.”
pág. 563 (ed. Germinal): ” Aquele lugar evocava uma panela pouco funda que jazesse entre neve e pedregulhos, num mundo perto das nuvens. Ali adormecera Gerald. Em volta os guias tinham pregado estacas de ferro, de maneira a poderem içar-se como auxílio de uma comprida corda amarrada a elas; assim atingiriam, para além dos cimos denteados, a área de neve endurecida, que se confundia com o céu e onde se escondia Marienhutte, entre penhascos. Em toda a volta havia picos aguçados erguidos para o firmamento, como compridos pregos muito alvos.”
Como você vê, a única contribuição de Felipe Padula Borges para a versão anterior, foi uma vírgula após a palavra Marienhutte.
Vejamos agora o caso de “Os Sonâmbulos”. O livro foi lançado pelas edições 70, de Portugal, em três volumes ( os números 7, 11 e 13 da Coleção Caligrafias). O primeiro volume, “Pasenow ou O Romantismo” (em 1988), traduzido por António Ferreira Marques.
pág. 164 (ediçôes 70): “Acudiu-lhe ao espírito uma frase de Clausewitz: ninguém age senão por pressentimento e instinto da verdade. E, num pressentimento, o coração revelou-lhe que lhes seria concedida, num lar cristão, a ajuda salvadora e protectora da graça, para que eles não tivessem de peregrinar sobre a terra ignorantes, desamparados e sem objectivo, a caminho do nada.”
pág. 160 (Germinal): “Acudiu-lhe ao espírito uma frase de Clausewitz: ninguém age senão por pressentimento e instinto da verdade. E, num pressentimento, o coração revelou-lhe que lhes seria concedida, num lar cristão, a ajuda salvadora e protetora da graça, para que eles não tivessem de peregrinar sobre a terra ignorantes, desamparados e sem objetivos, a caminho do nada.”
O sr. Wilson Hilário Borges teve muito trabalho nesse trecho: tirar o “c” lusitando de protectora e objectivo.
O 2o. volume ((1989), “Esch ou A Anarquia”, foi traduzido (assim como o 3o., do mesmo ano, “Huguenau o O Realismo”) por Jorge Camacho.
pág. 306-7 do 3o. volume (edições 70): “Qualquer deles sabe efectivamente que a vida do homem não é suficiente para levar os passos ao longo dessa estrada que sobe em espiral para plataformas sempre mais elevadas e onde o que foi e o que se afunda ressurge mais alto, sob a forma de fim, para se enterrar a cada passo nas brumas mais distantes; via infinita do círculo fechado e da realização, realidade lúcida em que as coisas se desagregam e se afastam até aos pólos e aos confins do mundo” etc etc.
pág. 697 (Germinal, que publicou os três num volume só):“Qualquer deles sabe efetivamente que a vida do homem não é suficiente para levar oa passos ao longo dessa estrada que sobe em espiral para plataformas sempre mais elevadas e onde o que foi e o que se afunda ressurge mais alta, sob a forma de fim, para se enterrar a cada passo nas brumas mais distantes: via infinita do círculo fechado e da realização, realidade lúcida em que as coisas se desagregam e se afastam até os pólos e aos confins do mundo” etc etc.
O trecho acima deu mais trabalho: além do “c” de efectivamente, ele teve de tirar uma preposição de “aos pólos”.
Perdoe-me pela extensão dessa mensagem. Não encontrei (acho que acabei apagando) o e-mail que mandei para a Vera Lúcia, com exemplos como os que coloquei acima. Mas acho que são úteis para provar o plágio e não deixar nenhuma dúvida.
Um abraço, Alfredo Monte
Alfredo,
muito obrigado pela resposta e os trechos, serão úteis. A Vera Lúcia ficou de falar comigo hoje para dar uma resposta. É possível que a matéria saia quarta. Obrigado por tudo.
Um abraço,
Luiz Fernando
*************************************
O artigo de Luiz Fernando saiu assim:
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
Editora de SP é acusada de plagiar mais duas obras
Traduções de “Mulheres Apaixonadas”, de D.H. Lawrence, e “Os Sonâmbulos”, de Hermann Broch, são copiadas
LUIZ FERNANDO VIANNA – Da Sucursal do Rio
Constatada pela Folha em 11/12, a cópia da tradução de Francisco Inácio Peixoto para o romance Oblomov, de Ivan Alexandrovitch Gontcharov, não é o único caso de plágio da editora Germinal. O crítico Alfredo Monte, de A Tribuna, de Santos, revelou em julho deste ano que outros dois livros do selo paulista são cópias de traduções já existentes.
Um dos livros é Mulheres Apaixonadas, do autor inglês D. H. Lawrence (1885-1930). A Germinal lançou em 2002 uma tradução assinada por Felipe Padula Borges, sobrinho do então proprietário da editora, o advogado e jornalista Wilson Hilário Borges, morto em março de 2002 aos 62 anos.
O texto é praticamente idêntico ao de uma tradução feita pelo português Cabral do Nascimento e que, adaptada por Ruth de Biasi, foi lançada no Brasil nos anos 80 pela Record. Em 2004, a mesma Record lançou uma nova tradução, de Renato Aguiar.
“Segundo Felipe, o livro foi traduzido pelo Wilson, que lhe pediu para acertar algumas palavras e dar a forma final no texto. É o que eu sei”, diz a jornalista Vera Lúcia Rodrigues, 49, que viveu 22 anos com Borges e hoje responde pela Germinal. De acordo com ela, a editora era um projeto exclusivo de Borges, sobre o qual a família pouco sabia.
O outro romance plagiado é Os Sonâmbulos, do austríaco Hermann Broch (1886-1951). A Germinal publicou em um só livro os três volumes das Edições 70, de Portugal, lançados em 1988. O primeiro foi traduzido por Antônio Ferreira Marques e os outros dois, por Jorge Camacho.
No livro da Germinal, o nome do autor aparece grafado errado na capa: Hermann Brock. E a tradução está assinada pelo próprio Wilson Hilário Borges. “Eu só sei o que está no livro: ele assinou a tradução”, diz Vera Lúcia.
Em julho, quando procurada por e-mail por Alfredo Monte, ela defendeu a “idoneidade” dos tradutores e considerou um sinal de qualidade o fato de as traduções serem tão parecidas com versões portuguesas. Hoje, ela diz que, na época, ainda desconhecia a possibilidade de plágio e que não recebeu muitas informações para poder investigar a história.
“Para mim, é muito difícil pensar que ele [Borges] possa ter feito isso”, diz Vera Lúcia. Quando ouvida sobre Oblomov, ela afirmou estar disposta a corrigir os eventuais erros. “Não é meu objetivo lesar ninguém. Se alguém foi lesado, vamos buscar reparar.”
No caso de Oblomov, Borges pôs o nome de sua filha Juliana como tradutora. O texto é plágio do feito pelo poeta mineiro Francisco Inácio Peixoto (1909-1986) para a Edições O Cruzeiro em 1966. Juliana também aparece como tradutora nas edições de Chegada e Partida e Ladrões na Noite, ambos do húngaro Arthur Koestler (1905-1983).
Em comum com Oblomov, as edições de Mulheres Apaixonadas e Os Sonâmbulos têm muitos erros de revisão. Dentre as poucas mudanças feitas nas traduções estão a troca das grafias de palavras, como “protectora” e “objectivo”, escritas assim nas versões portuguesas.
Trechos complexos servem como exemplos do plágio, pois dificilmente seriam escritos por dois tradutores diferentes É o caso do que está na página 563 da edição da Germinal de Mulheres Apaixonadas: “Aquele lugar evocava uma panela pouco funda que jazesse entre neve e pedregulhos, num mundo perto das nuvens. Ali adormecera Gerald. Em volta os guias tinham pregado estacas de ferro, de maneira a poderem içar-se com o auxílio de uma comprida corda amarrada a elas; assim atingiriam, para além dos cimos denteados, a área de neve endurecida, que se confundia com o céu e onde se escondia Marienhutte, entre penhascos”.
Um trecho da página 160 de Os Sonâmbulos é um outro exemplo deste tipo: “Acudiu-lhe ao espírito uma frase de Clausewitz: ninguém age senão por pressentimento e instinto da verdade. E, num pressentimento, o coração revelou-lhe que lhes seria concedida, num lar cristão, a ajuda salvadora e protetora da graça, para que eles não tivessem de peregrinar sobre a terra ignorantes, desamparados e sem objetivos, a caminho do nada”.
para os interessados (e preocupados) com os plágios e picaretagens de traduções, o guia imprescindível (embora apresente uma riqueza de informações que vai além da questão) é o blog da tradutora Denise Bottman, www.naogostodeplagio.blogspot.com. Lá se conhecerá melhor o caso Germinal.
04/02/2011
Memorial do Caso Germinal
25/01/2011
O amante de Lady Chatterley: o infernal e a promessa do paradisíaco
Um presente inesperado para os leitores brasileiros na nova tradução de O amante de Lady Chatterley (co-edição da Penguin e da Companhia das Letras, e realizada por Sérgio Flaksman) é o soberbo ensaio introdutório de Doris Lessing (para mim, o maior autor vivo), que eu lera há alguns anos quando foi reproduzido no Estadão, se não me falha amemória, e que mostra como a presença da guerra marca definitivamente a atmosfera do livro. Abaixo um trecho para servir como epígrafe de uma resenha mais antiga sobre o livro:
“nunca um romance mais persuasivo de propaganda tinha sido escrito em favor do casamento, da fidelidade profunda que vem não da moral pública, ou do que chamamos de resoluções tomadas por fulano ou sicrano, ou da religião, mas da unidade entre um homem e uma mulher que torna totalmente impossível o sexo casual ou qualquer tipo de infidelidade”.
( 0 texto a seguir foi publicado originalmente em A TRIBUNA de 02 de dezembro de 2003)
Entre as comemorações literárias de 2003, talvez a mais ilustre seja a dos 75 anos de publicação de O amante de Lady Chatterley (e olhe que em 1928 foram lançados Contraponto, de Aldous Huxley, e Orlando, de Virginia Woolf), cuja mais recente tradução, salvo engano, é a de Glória Regina Loreto Sampaio, lançada pela Graal (ligada à Paz & Terra).
Como se sabe, a trajetória editorial de O amante de Lady Chatterley foi acidentada (complicada, ademais, pela morte de D.H. Lawrence em 1930). Há várias versões do romance, que foi considerado pornográfico e circulou em cópias piratas ou mutiladas.
“,,,poderíamos permitir-nos ouvir a respeito dos assuntos mais íntimos do próximo se houvesse respeito pela alma humana que se debate e luta, se fôssemos tomados por um espírito de fina solidariedade (…) é aí que se coloca a imensa importância do romance, se bem utilizado. Ele pode informar o fluxo de nossa consciência solidária, levando-a a lugares novos, fazendo nossa solidariedade refluir, afastando-a de coisas que já morreram… se corretamente manipulado pode revelar os lugares mais recônditos da existência, pois é naqueles espaços secretos e passionais da vida que a maré de percepção sensível precisa fluir e refluir, limpando e refrescando”.
Como é difícil fazer justiça a uma obra desse quilate, é preciso ressaltar o ângulo que mais interesse tenha 75 anos depois e que permita verificar melhor as qualidades e defeitos do texto, pois como todos os grandes trabalhos de Lawrence (por exemplo, Mulheres apaixonadas e A serpente emplumada) a história de Constance Chatterley é desigual e desequilibrada, é genial, as prolixa demais e o protagonista masculina, Mellors, o guarda-caça (ou couteiro) que se envolve com a esposa do patrão revela-se um chato de galocha com suas preleções e diagnósticos civilizatórios.
Isso acontece porque O amante de Lady Chatterley é um romance de idéias, que aciona imagens poderosas para dar vida e substância a essas idéias, mas que muitas vezes derrapa no discursivo.
Por um lado há um estado demoníaco da civilização: finda a Primeira Guerra, os homens estão mutilados, metafórica e literalmente (como Clifford, o marido de Constance), a natureza e o caráter das pessoas estão sendo devorados pela Revolução Industrial, cujo símbolo são as infernais minas de carvão que desfiguram as aldeias e a paisagem da região onde se passa o romance.
Em contrapartida, há o bucólico e o idílico: o bosque de Wragby (propriedade de Clifford, mas alienada dele, que é uma ausência ali), no qual Mellors descobrirá a mulher-fêmea que habita Lady Chatterley, longe da falsidade (e fatalidade) do progresso e da civilização industrial. Nesse sentido, é emblemática a cena em que o casal, nu, se cobre de flores. Nem por isso, Mellors deixa de ter consciência da corda bamba em que vive. Constance lhe pergunta o sentido da sua existência. Ele diz: “Não creio no mundo, nem no dinheiro,nem no progresso, nem no futuro de nossa civilização. Se houver um futuro para a humanidade, terá de ser algo muito diferente do que temos hoje”.
Parece simplista e regressivo, e de certa forma é mesmo. Mas Lawrence era um grande poeta (foi o sucessor legítimo de Thomas Hardy, autor de Tess, em capturar a Inglaterra agrária que sobreviveu à Revolução Industrial) e consegue momentos belíssimos nessa contraposição do infernal e do paradisíaco (ou da promessa do paradisíaco, sempre ameaçado e frágil).
O livro só perde sua intensidade quando quer se explicitar demais. Lawrence, aliás, escreveu um pós-escrito (encontrável em outra tradução, a de Fernando Ximenes, pela Ediouro; há ainda uma tradução mais conhecida e reeditada, a de Rodrigo Richter) em que formula claramente suas idéias, e de um modo mais belo e contundente do que o exposto na pedagogia fálica entre Mellors e Constance, que revolta tanto—e com razão—as feministas. Para ele, as pessoas desvitalizaram-se por esquecer das suas necessidades verdadeiras, que estão ligadas ao ritmo de nascimento, morte e regeneração do cosmo e das estações.
O ensaio permite entender melhor por que ele inicia o romance com as famosas palavras, “Nossa época é essencialmente trágica; assim sendo, recusamo-nos a vivê-la como tal. O cataclismo aconteceu, estamos entre as ruínas”. O curioso é que, considerado imoral e desmoralizador dos costumes, o grande escritor inglês defende o casamento e a igreja católica por estarem sintonizados com as profundas necessidades interiores do ser humano: “Eu entendo que o matrimônio, ou algo parecido com ele, é essencial, e que a igreja antiga conhecia bem as necessidades persistentes do homem, além das necessidades espasmódicas de hoje e de ontem”.
Setenta e cinco anos depois, todas as questões de O amante de Lady Chatterley ainda estão presentes.
E a mais trivial e deliciosa é: Lawrence seria mais Mellors ou Lady Chatterley?
(uma versão mais condensada da resenha acima foi publicada em A TRIBUNA de 25 de janeiro de 2011)