(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de março de 2000)
Há 15 anos, AS REGRAS DA CASA DE SIDRA [“Cider house rules”, 1985] é a história mais bela da ficção contemporânea. Finalmente, conseguiram transportá-la para o cinema. O resultado pode ser visto, (embora a avassaladora pieguice chegue a ser insalubre) em Regras da vida, que concorre, incrivelmente, ao Oscar de melhor filme!
A obra-prima de John Irving conta, assim como diversos enredos de Dickens (referência essencial no livro) a trajetória de um órfão, Homer Wells (vivido no filme pelo extraordinário Tobey Maguire—não poderia haver escolha mais perfeita). No internato do Maine, o St. Cloud´s, onde foi criado (nunca conseguiu ter uma adoção efetivada, apesar de várias tentativas,relatadas de maneira magistral), ele aprende com o dr. Wilbur Larch a profissão de médico e a ser útil.
Boa parte das 800 páginas do texto alterna a narração dos eventos com os comentários do dr. Larch (que oferece a Michael Caine uma criação surpreendente e genial em Regras da Vida, a qual, com certeza, lhe renderá o Oscar de coadjuvante, se a votação for justa) num livrinho que está escrevendo sobre a história de St. Cloud´s, um lugar onde as pessoas vêm para se livrar dos filhos, no sentido da vida (tornando-os órfãos) ou da morte (o dr. Larch faz abortos). Como escreve o próprio médico, “Aqui recebi a opção de bancar Deus ou deixar tudo entregue ao acaso. Minha experiência é a de que praticamente tudo é deixado ao acaso na maior parte do tempo; homens que acreditam no bem e no mal, e que acreditam que o bem vai ganhar devem estar atentos aos momentos em que é possível bancar Deus; devemos aproveitar esses momentos.Não são muitos. Aqui pode haver mais oportunidades de aproveitá-los do que se encontraria no resto do mundo, mas isso só acontece porque muito do que chega a nossas mãos já fora deixado ao acaso antes”.
É a partir dessa realidade inelutavelmente sórdida e deprimente, os pontos-limite a que chega a loucura humana, crianças abandonadas e abortos, que se constitui o olhar de Homer sobre o mundo, um olhar fixo (que incomoda amiúde as pessoas), mas que opta pela compassividade. Não querendo “bancar Deus”, ele, de certa forma, trai o dr. Larch, resolvendo “cair no mundo”. Vai trabalhar no cultivo de maçãs, e aí terá de se haver com outras regras, as escritas e as tácitas, além de se envolver num triângulo amoroso.
O que torna AS REGRAS DA CASA DE SIDRA, na minha opinião, uma obra verdadeiramente definitiva, é o fato de Irving ter moldado sua história (que mescla lirismo, humor negro e um sentido de grotesco ainda mais forte do que os seus romances anteriores, já sensacionais, como O mundo segundo Garp & Hotel New Hampshire) a partir desses dados definitivos, a orfandade e a necessidade do aborto, dos quais não se pode fugir para nenhuma “moralidade” ou regra tácita (mesmo que haja a lei escrita) e que não podem ser maquiadas por nenhuma “dignidade”. Portanto, iniciada a narrativa, já estamos no extremo da condição humana, algo que dificilmente se encontra na melhor ficção (pelo menos naquela que privilegia o enredo tradicional) dos últimos anos. O único paralelo possível, tanto no sentido de extremo da situação focalizada quanto na beleza do enredo é com A escolha de Sofia, de William Styron, de 1979.
Aliás, Irving quis deixar isso mais claro no roteiro que escreveu para o filme. Enxugando (equivocadamente, acredito) a história dos episódios mais cômicos (pode parecer incrível, entretanto AS REGRAS DA CASA DE SIDRA é um romance engraçadíssimo) e eliminando personagens importantes (como Melony, a órfã cuja trajetória no mundo complementa a de Homer, e que é imbuída da ira e da revolta que faltam a ele), Irving meio que tentou “se concentrar no essencial”, no olhar sobre o mundo a partir da orfandade absoluta, apesar de que, ao longo da trama, o dr. Larch vai se transformando cada vez mais no pai espiritual de Homer.
Talvez seu gigantesco esforço de transposição (e o inspirado trabalho da dupla Maguire-Caine) tenha sido sabotado pela (ou se chocado com a) malfadada opção do diretor Lasse Hallstrom de confeccionar o filme num molde infalível para indicações ao Oscar: fotografia bonita demais, música sentimental, ritmo feito “para a família”, crianças adoráveis (quem não as quereria adotar?) e lágrimas, lágrimas, lágrimas. Hallstrom se destacou, com Minha vida de cachorro, pela habilidade de anular a pieguice ao contar uma história sentimental, só que após filmes cada vez mais banais,anulou qualquer sopro de personalidade que sua presença de diretor poderia imprimir a uma produção. Grosso modo, tanto faria que o filme fosse realizado pelo diretor de Kramer versus Kramaer, ou de Rain Man, ou o de Laços de Ternura (quem são mesmo? Alguém lembra? Mais importante ainda: faz diferença?).
A palavra sentimental é apropriada (mas não a confundam com a pieguice da versão cinematográfica). Não existe meio de evitá-la, e muita gente rejeita o romance por causa disso. É um romance que literalmente faz o leitor chorar (e também rir muito), de tanto pungente e doloroso. De tão emocionante que é. Só um escritor da categoria de John Irving poderia ter feito uma tão um tão impressionante retrato da maldade que existe por trás da moralidade convencional por meio da exploração do sentimentalismo e das lágrimas. Por isso,ele é o Príncipe do Maine, o Rei da Nova Inglaterra entre os escritores norte-americanos. E, por isso, 15 anos depois, com ou sem imagens na tela, com ou sem Oscar, seu enredo continua a ser o mais belo que se pode ler na ficção contemporânea.
Nota de 2010– pouco mais de dez anos depois dessa resenha, e com o livro comemorando seu quarto de século, mantenho a mesma opinião.