MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

28/11/2014

Destaque do Blog: O IRMÃO ALEMÃO, de Chico Buarque

buarque

irmão alemão

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de novembro de 2014)

(uma versão da resenha abaixo foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO, em 26 de novembro de 2014, VER http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2014/11/um-inferno-repleto-de-livros-o-irmao.html)

Boa parte do impacto da leitura de O Irmão Alemão reside— a meu ver— menos no aproveitamento ficcional de uma contingência biográfica, a existência do meio-irmão do título (e seus desdobramentos na vida do narrador), e mais na exploração (física e simbólica) do espaço da biblioteca da família Hollander:

“E quando não havia ninguém por perto, eu passava horas a andar de lado rente às estantes, sentia certo prazer em roçar a espinha de livro em livro. Também gostava de esfregar as bochechas nas lombadas de couro de uma coleção que, mais tarde, quando já me batiam no peito, identifiquei como os Sermões do Padre Antônio Vieira (…) Até os nove, dez, onze anos, até o nível da quarta ou quinta prateleira, durante toda a minha infância mantivesse essa ligação sensual com os livros.

       Nessa casa tomada (“Até então, para mim, paredes eram feitas de livros, sem o seu suporto desabariam casas como a minha, que até no banheiro e na cozinha tinha estantes do teto ao chão”), onde o pai — leitor voraz e eminente intelectual — pontifica, quase um minotauro no labirinto, sujeitando a mãe a um papel servil (“no fundo ela sempre soube que meu pai, embora marido extremoso, não a distinguia muito bem da biblioteca”), o acesso do filho apaixonado pelos livros é restrito (tanto que será clandestina sua “descoberta” do irmão alemão, a partir de uma carta metida num volume no qual ele não poderia mexer: “Preciso guardá-lo exatamente em seu lugar, pois se meu pai não admite que eu mexa nos seus livros, que dirá neste”), índice do distanciamento paterno:

…“uma noite em casa, no meio do jantar, sem mais nem menos lancei esta: eu não me envergonharia de ter um filho alemão. Meu pai ficou com o garfo suspenso diante da boca aberta, enquanto meu irmão continuava a folhear a Playboy à esquerda do prato. Só mamãe, depois de um momento atônita, se manifestou: ma quem tem vergonha de um filho tedesco, Ciccio? Sei lá, disse eu, só sei que o Thomas Mann tinha vergonha da mãe brasileira. Era uma afirmação controversa, pelo que havia lido a respeito, mas feita com o propósito de suscitar  uma reação do meu pai.  Ele poderia retrucar que o próprio Mann reconhecia traços da ascendência latina em seu estilo, ou que a mãe lhe inspirara belos personagens para seus romances, poderia dizer em suma que eu estava falando asneira. Mas pronto, estaria estabelecida uma ponte entre nós, talvez daí em diante meu pai me ouvisse de vez em quando, me corrigisse, de algum modo me filiasse…”

A biografia de Francisco de Hollander, conforme seu torto relato, será então imantada por essa biblioteca monstruosa e invasiva: nunca conseguirá exatamente sair dali, e suas experiências serão arremedos, vivências de segunda mão, transando com as mulheres que passaram primeiramente pelo quarto do irmão, grande sedutor, e nada intelectual (nem por isso o pai lhe regateará a estima e o afeto), ou paródias de relacionamentos com estranhos, a partir das fantasias obsessivas em torno de Sergio, o “fratello tedesco”, como diria a mãe (personagem que roça perigosamente o farsesco, tão caricato é o seu modo de expressão).

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Os dois irmãos de Francisco        quase que fraternamente, por assim dizer, terão um destino fantasmático similar, fruto de regimes arbitrários: enquanto os vestígios de um se esfumam nas medidas profiláticas tomadas pela burocracia nazista com relação à raça pura, e depois na divisão da Alemanha na Guerra Fria, o outro, na superfície mais engajado num donjuanismo cafajeste (o próprio Francisco flerta desajeitadamente com o que poderíamos chamar de “delinquência playboy”), desaparece durante a Ditadura pós-64.

No final, com a morte do pai, o labirinto é franqueado. Nem por isso será de muito proveito a quem que levou uma vida postiça e “emprestada”. Francisco e a mãe (tomada pela cegueira), já bastante idosa, continuam, por anos, naquele sacrário esvaziado de sentido e pleno de perdas: “Não tínhamos mais hora, o jantar era servido antes do meio-dia, tirávamos cochilos aqui e ali, nos recolhíamos com o dia claro. Que dia é hoje?, ela me perguntava. Vinte e cinco de janeiro de 1973. Ainda?…Ela estranhava que o tempo ultimamente andasse tão pesado, e de fato, lá em casa, 1973 levou alguns anos para passar. Mesmo quando a situação no país tendia  a se amenizar, fiz bem em mantê-la desatualizada, porque o nome do meu irmão não constava em nenhuma lista de beneficiários da anistia… Logo se restaurou a democracia no Brasil e nos países vizinhos,  até o muro de Berlim veio abaixo,  mas à minha mãe eu pedia um pouco mais de paciência”, veja o leitor que engenhoso registro de passagem de um extenso período de tempo.

Chico Buarque criou o equivalente contemporâneo de Bibliomania (1836), de Flaubert, ou de Auto-de-fé (1935), de Elias Canetti: uma fábula terrível e ácida sobre o culto bibliófilo que se transforma, ao fim e ao cabo, em cegueira e negação solipsista, e mais incisiva ainda com relação ao papel dos intelectuais em momentos de irracionalidade histórica, quando forças retrógradas tomam o poder.

Alcir Pécora, em resenha para a Folha de S.Paulo, criticou duramente a narrativa de O Irmão Alemão por sucumbir à “borgiária”, à emulação de Borges (o autor mais identificado universalmente com bibliotecas; em contrapartida, na sua autobiografia As Palavras, de 1964, Sartre descreveu a “neurose da literatura” interiorizada nesse trato obsessivo, fetichismo puro, com o objeto-livro, inclusive em edições raras, de colecionador, que transformam a biblioteca num capital). Parece-me que ocorreu justamente o oposto: a hipertrofiação do elemento borgiano e o quase emparedamento no meio de incontáveis volumes escancaram o grotesco da perspectiva “o paraíso deve ser algo parecido como uma biblioteca”[1].

E na figura de Francisco de Hollander, tal como se depreende de sua autoapresentação, o grande poeta da nossa MPB demonstra que andou lendo atentamente a nossa prosa atual: não foram poucas as vezes em que O Irmão Alemão me trouxe à memória o universo de Ricardo Lísias e sua triturante e incômoda reinvenção ficcional de dados biográficos, em textos como O Céu dos Suicidas (2012). Entre os pontos de contato mais óbvios, estão o desamparo no mundo explícito (as cenas em que o narrador aborda transeuntes oferecendo-se para acompanhá-los em seu percurso) e a irrisão raivosa que beira o histérico nas suas tentativas de ação:

“Com certeza riem dos meus sapatos, do meu relógio de segunda mão,  do meu jeans fodido, sujo de giz e de outras melecas, que não tiro do corpo e cujos bolsos me ponho agora a apalpar. Súbito enfio a mão no bolso esquerdo até o fundo, e a cartolina por baixo da caixa de chicletes só pode ser o cartão de visita do afinador de pianos. De fato é, e apesar de curvo e desbotado, tendo sobrevivido a um ou outro mergulho no tanque de lavar roupa, ainda traz legíveis as coordenadas de Lázar Rosenblum. Abandono a algazarra da sala e disparo até o telefone da secretaria, mas na casa do Lázar sua mulher me informa que ele saiu, vai passar a manhã cuidando do piano da TV Record. Ali acontece o famoso festival de música popular,  e dona Dalila me fala de seus cantores prediletos, começa até a cantarolar uma balada romântica quando corto a ligação. Em vinte minutos de caminhada chego ao Teatro Record,  onde encontro uma fila na bilheteria e uma pequena aglomeração junto à porta lateral. É a entrada dos artistas, protegida por seguranças a quem apresento o cartão de visitas do Lázar,  depois de forçar a passagem entre fãs e puxa-sacos. O cartão passa de mão em mão,  e um funcionário suarento vem me avisar que estou barrado, porque já tem um afinador no palco. Pois foi ele quem me chamou, afirmo cheio de moral, me passando pelo pianista do João Gilberto. Mas o João Gilberto não tem pianista nem concorre no festival,  segundo os dedos-duros à minha volta,  então me esgueiro até o bar ao lado e peço um café no copo para tomar com um pé na calçada.  Minhas pálpebras custam a se reerguer cada vez que pisco os olhos,  e estou no quarto copo de café  quando o Lázar sai pela porta dos artistas. Tem um chilique quando o arrasto pelo paletó, já não faz ideia de quem eu seja…”— não estranharia em ver essa passagem em Lísias ou, para citar outro exemplo da prosa relevante dos nossos dias, em Alexandre Dal Farra e seu Manual da Destruição (2013).

Essa “influência”, na falta de termo melhor, fez muito bem a Francisco de Holanda: resultou no seu romance menos “policiado” e mais pessoal. Só não entendi a utilidade das duas notas finais (esclarecendo os vínculos entre ficção e biografia!) e o linguajar da mãe, acordes desnecessariamente dissonantes de uma composição de mestre.

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NOTA

[1] E olhe que a minha formação de leitor seguiu um pouco os passos do narrador de O Irmão Alemão, esse apelo sensorial-sensual dos livros, presente inclusive nos meus dias como leitor já naquela outrora conhecida como “meia-idade”, quando percorro prazerosamente meus milhares de volumes espalhados pela casa inteira (embora sem o componente bibliófilo, da aquisição de livros raros e primeiras edições).

VER aqui no blog:

https://armonte.wordpress.com/2014/06/19/existe-o-romance-buarquiano-sobre-budapeste-e-leite-derramado/

https://armonte.wordpress.com/2013/06/19/a-poesia-da-prosa-de-chico-110409/

https://armonte.wordpress.com/2012/05/13/sob-o-signo-de-bauman-ficcoes-da-modernidade-liquida-vila-matas-chico-buarque/

chico

irmão alemão

19/06/2014

EXISTE O ROMANCE BUARQUIANO?: sobre “Budapeste” e “Leite Derramado”

chico  

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                                                   I

(a resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,em 22 de junho de 2004)

 “…depois de casado, nos dias em que estava seguro de haver escrito um texto de grande inspiração… meu desejo era o de que a Vanda o lesse. Então comprava vários exemplares do jornal e os deixava com meu artigo à mostra no caminho dela, na mesa de jantar, em cima do telefone, no berço do menino, junto ao espelho do banheiro. Ver a Vanda correr os olhos sobre as minhas letras, esboçar um sorriso, apreciar um texto meu sem saber que o era, seria quase como vê-la se despir sem saber que eu a estava olhando. Mas não, ela pegava o jornal e revirava as páginas, olhava umas fotografias, lia as legendas, a Vanda não tinha paciência para grandes leituras. Daí meu estupor ao saber de sua boca que ela lera meu livro, não uma, mas três vezes… tive pena e orgulho de mim, era  como se duas palavras dela reparassem sete anos de descaso”.

No trecho acima, José Costa, narrador e protagonista do festejado Budapeste, de Chico Buarque, esclarece, caso alguém ainda tivesse dúvidas, as suas prioridades. Acima de tudo, a palavra escrita, obsessivamente praticada por ele, como escritor fantasma, orgulhando-se –nesta época patética onde ser uma celebridade por 15 minutos conta tanto— do seu anonimato.

Escritor fantasma, Costa vai se apaixonar por uma cidade fantasma, a do título, por causa de uns fiapos de linguagem, de algumas palavras ouvidas numa escala forçada de viagem: “Tratava-se de um pão de abóbora, conforme o maître informou em inglês, mas eu não queria a receita da broa, queria saborear seu som em húngaro”.

Chega a participar de congressos de escritores anônimos, em várias partes do mundo, nestes tempos de globalização nos quais uma cidade equivale à outra, de tal forma que percorrer um mapa, trancado num quarto de hotel, pode substituir a experiência real, o que combina com um estilo de vida fundamentalmente fantasmático: Não me aborrecia caminhar assim num mapa, talvez porque sempre tive a vaga sensação de ser eu também o mapa de uma pessoa”.

Por isso, se pode entender que para José Costa é uma traição ao seu código de vida revelar à mulher que é o verdadeiro autor de um livro, num acesso de ciúme; também não causará espécie saber que ele abandona o outro polo amoroso (húngaro) da narrativa, Kriska, por não ver apreciada a obra assinada por outro, e principalmente por ela não perceber como seu antigo aluno passou a dominar o seu idioma natal. É um amor tão grande pela (s) língua (s) e seu uso, que, num outro momento de ruptura, ao perceber que ela está prestes a xingá-lo com uma palavrão desconhecido, lemos: “A palavra estava ali nos seus lábios vacilantes, devia ser uma palavra que ela nunca se atrevera a pronunciar. Devia ser uma palavra arcaica, uma palavra caída em desuso de tão atroz. Devia ser a única palavra que eu não conhecia em todo o vocabulário magiar, devia ser uma palavra estupenda. Então não me contive e supliquei: fala”.

Também se pode entender, por isso, que a grande ironia da história será quando publicarem um livro cujo autor é José Costa (ou mais precisamente, Zsose Kósta), mas que ele não escreveu, um livro que o torna uma celebridade…

     Budapeste é um romance danado de engenhoso. Tem um nível de elaboração de linguagem (o qual se reflete inclusive na sua paradoxal limpidez) quase desconhecido hoje em dia na ficção brasileira, a não ser em raríssimas obras. Como Chico Buarque escreve bem!,podemos exclamar admirados. Além disso, ele se livra de vez da aura fantasmática, da aura do “quase”, de obra-potencial, nebulosa e anticlimática, que marcou seu primeiro romance, Estorvo, cuja bruma já havia sido um pouco (mas só um pouco) dissipada com o romance seguinte, Benjamim.

Por que então sua leitura não satisfaz? Talvez porque, quando o livro se encaminha para uma maior densidade, uma verticalização do universo fantasmagórico do pós-moderno, o qual ele delineou tão lindamente, com suas cidades intercambiáveis, com seus hotéis impessoais, com um cosmopolitismo que se traduz em uniformização, em que todos os tipos de relação se deterioram (como na cena em que José Costa reencontra o filho crescido, que fica a um passo de agredi-lo gratuitamente, sem aparentemente reconhecê-lo: “…talvez soubesse desde o início que eu era seu pai, e por isso me olhava daquele jeito, por isso me encurralava no muro. E fechou o punho, armou o golpe, acho que ia me acertar o fígado…”), enfim, tudo que vai contra a complexidade da língua enquanto parte viva do nosso ser, Chico recua visivelmente e nos proporciona soluções decerto prazerosas de ler, porém aquém do rigor e do vigor de um João Gilberto Noll ou de um Bernardo Carvalho, entre os expoentes brasileiros da perplexidade, da inquietude e da insubstancialidade no cenário literário atual, para não falar do grande Paul Auster, que, aliás, leu trechos de Budapeste no congresso de escritores nada anônimos que é a FLIP, em 2004.

Outra sensação desagradável é que parece termos lido tudo isso, com maior contundência, outras vezes. A diluição é agradável, porém, ainda assim, diluição, placebo, simulacro…

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II

“Ouça um bom conselho

Que eu lhe dou de graça

Inútil dormir

Que a dor não passa”  (Chico Buarque)

(a resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de abril de 2009)

 

Maior poeta da MPB (junto com Caetano Veloso), pelo menos para a minha geração, Chico Buarque, aos 65 anos, está em plena forma para reivindicar o posto de maior prosador brasileiro contemporâneo. Não que ele o seja, mas cada um dos seus romances representou um grande avanço com relação ao anterior e no quarto,Leite Derramado, praticamente chega à maestria absoluta.

      Leite Derramado é narrado por um centenário (“a memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório. Ou como a filha que pretende dispor minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto”), cuja existência foi uma interminável sobrevida com relação à riqueza e prestígio de sua família no Império e na Primeira República, antes da queda das fortunas do café em 1929.

O hipnótico encanto da narração reside na dosagem exata de registros: ao mesmo tempo em que é garganta, jactancioso, que exagera seus foros de nobreza (está num hospital e não pára de falar), Eulálio d`Assumpção nos revela seu desamparo ao cabo de uma trajetória que vai do empobrecimento paulatino até a pauperização completa ao lado da filha, esta última uma mala sem alça que só se mete com desclassificados e dançados de ambos os sexos, os dois morando num puxadinho ligado a uma igreja evangélica situada nuns ermos onde antigamente ficava a fazenda de propriedade da família: “Porque talvez tivesse a intuição de que em breve os tempos seriam outros, e meu pai jamais se prestaria a permanecer num tempo que não era o seu. Sua fortuna no estrangeiro estava para evaporar, e não consigo imaginá-lo sem suas viagens anuais à Europa, seus hotéis, restaurantes e mulheres de primeira classe”.

Um pouco Dom Casmurro (com a obsessão pela fugidia esposa, Matilde, e pelo desejo de atar as pontas da vida, que também movia Bentinho, além da desfaçatez de quem já foi da elite), um pouco O Coronel e o Lobisomem (com o relato de como uma fortuna é atacada por todos os lados enquanto seu possuidor se auto-mistifica), um pouco Malone Morre (com a tradicional saga familiar de decadência e conflito de gerações transformando-se numa espécie de pesadelo de moribundo e narração enovelada, na qual a vocação épica e totalizante da arte de contar histórias se despedaça), no entanto Chico se desprende de quaisquer vinculações com essas obras marcantes de Machado, José Cândido de Carvalho ou Samuel Beckett, ou outra que nos ocorra, devido às suas peculiares soluções criativas e, sobretudo, à sua inacreditável “leveza”.

O resultado é crudelíssimo, mas incrivelmente gostoso de ler, um estilo que só três ou quatro escritores da atualidade podem igualar: “A verdade é que sem sua mãe, o chalé outrora tão solar foi se deteriorando… Na época, eu frequentemente amanhecia inquieto, ia acordá-la para verificar o que restava de Matilde no seu rosto. Não era loucura minha, a Balbina também notava que cada dia você perdia mais um traço da mãe, e nesse passo já perdera todo o desenho original da boca, fora o negro dos olhos e a tez acastanhada. Era como se, na calada da noite, Matilde passe para buscar suas coisas no rosto da filha, em vez dos vestidos no armário ou dos brincos na gaveta”.

Além disso, dois poderosos panos de fundo avultam na narrativa de Eulálio: o Rio, que passa diante de nós, célere, em cem anos de transformações urbanas e sociais, ainda que identifiquemos o conservadorismo sempre latente por aqui; e o racismo onipresente na nossa sociedade, que a narrativa de Leite Derramado desmascara impiedosamente (basta ver a alegria da mãe de Eulálio com a perda dos traços inferiores e o embranquecimento da neta, e depois o progressivo e constrangedor escurecimento dos descendentes, que cada vez mais se identificam com a nossa população em geral).
Emocionante, crítico, de uma precisão assassina na linguagem, só se pode fazer um elogio que faça justiça a Leite Derramado: é tão bom quanto as melhores canções de Chico. E não é necessário dizer mais nada.

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19/06/2013

A poesia da prosa de Chico Buarque: LEITE DERRAMADO

“Ouça um bom conselho, que eu lhe dou de graça: inútil
dormir que a dor não passa” (Chico Buarque)

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Maior poeta da MPB (junto com Caetano Veloso), pelo menos para a minha geração, Chico Buarque, aos 65 anos, está em plena forma para reivindicar o posto de maior prosador brasileiro contemporâneo. Cada um dos seus romances representou um grande avanço com relação ao anterior e no quarto, Leite Derramado, praticamente chega à maestria absoluta.

Leite Derramado é narrado por um centenário (“a memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório. Ou como a filha que pretende dispor minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto”), cuja existência foi uma interminável sobrevida com relação à riqueza e prestígio de sua família no Império e na Primeira República, antes da queda das fortunas do café em 1929.

O hipnótico encanto da narração reside na dosagem exata de registros: ao mesmo tempo em que é garganta, jactancioso, que exagera seus foros de nobreza (está num hospital e não pára de falar), Eulálio d`Assumpção nos revela seu desamparo ao cabo de uma trajetória que vai do empobrecimento paulatino até a pauperização completa ao lado da filha, esta última uma mala sem alça que só se mete com desclassificados e dançados de ambos os sexos, os dois morando num puxadinho ligado a uma igreja evangélica situada nuns ermos onde antigamente ficava a fazenda de propriedade da família: “Porque talvez tivesse a intuição de que em breve os tempos seriam outros, e meu pai jamais se prestaria a permanecer num tempo que não era o seu. Sua fortuna no estrangeiro estava para evaporar, e não consigo imaginá-lo sem suas viagens anuais à Europa, seus hotéis, restaurantes e mulheres de primeira classe”.

Um pouco Dom Casmurro (com a obsessão pela fugidia esposa, Matilde, e pelo desejo de atar as pontas da vida, que também movia Bentinho, além da desfaçatez de quem já foi da elite), um pouco O Coronel e o Lobisomem (com o relato de como uma fortuna é atacada por todos os lados enquanto seu possuidor se auto-mistifica), um pouco Malone Morre (com a tradicional saga familiar de decadência e conflito de gerações transformando-se numa espécie de pesadelo de moribundo e narração enovelada, na qual a vocação épica e totalizante da arte de contar histórias se despedaça), no entanto Chico se desprende de quaisquer vinculações com essas obras marcantes de Machado, José Cândido de Carvalho ou Samuel Beckett, ou outra que nos ocorra, devido às suas peculiares soluções criativas e, sobretudo, à sua inacreditável “leveza”. O resultado é crudelíssimo, mas incrivelmente gostoso de ler, um estilo que só três ou quatro escritores da atualidade podem igualar: “A verdade é que sem sua mãe, o chalé outrora tão solar foi se deteriorando… Na época, eu frequentemente amanhecia inquieto, ia acordá-la para verificar o que restava de Matilde no seu rosto. Não era loucura minha, a Balbina também notava que cada dia você perdia mais um traço da mãe, e nesse passo já perdera todo o desenho original da boca, fora o negro dos olhos e a tez acastanhada. Era como se, na calada da noite, Matilde passe para buscar suas coisas no rosto da filha, em vez dos vestidos no armário ou dos brincos na gaveta”.

Além disso, dois poderosos panos de fundo avultam na narrativa de Eulálio: o Rio, que passa diante de nós, célere, em cem anos de transformações urbanas e sociais, ainda que identifiquemos o conservadorismo sempre latente por aqui; e o racismo onipresente na nossa sociedade, que a narrativa de Leite Derramado desmascara impiedosamente (basta ver a alegria da mãe de Eulálio com a perda dos traços inferiores e o embranquecimento da neta, e depois o progressivo e constrangedor escurecimento dos descendentes, que cada vez mais se identificam com a nossa população em geral).
Emocionante, crítico, de uma precisão assassina na linguagem, só se pode fazer um elogio que faça justiça a Leite Derramado: é tão bom quanto as melhores canções de Chico. E não é necessário dizer mais nada.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de abril de 2009)

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13/05/2012

DEZ DESTAQUES DE 2009

Pessoalmente, sempre acho meio ridículo fazer lista de melhores. O mercado editorial é um oceano e uma pessoa só consegue, no máximo, indicar gotas desse oceano (a metáfora não é muito rica, porém é bem exata). De tudo o que li em 2009, proponho dez destaques, levando em conta o ineditismo dos livros, apesar de 2009 ter sido um ano pródigo em novas traduções: por exemplo, surgiram versões novas de Cem anos de solidão, O  inominável,  Fundação, Zazie no metrô, O turista acidental , Alice no país das maravilhas, e um vasto etc.

Outro destaque à parte foram os livros relacionados ao Evolucionismo  e certamente, nesse quesito, além do seu brilhantismo próprio, Richard Dawkins foi o campeão, com A grande história da evolução & O maior espetáculo da terra (este último, nem comprei ainda…).

Após esse preâmbulo, passo à minha lista de destaques (outros livros vêm à minha mente, mas quero me ater a esse número   redondo):

10)  Após o anoitecer, de Haruki Murakami (Alfaguara)- belo romance japonês que nos mergulha nas cambiâncias da “modernidade líquida” (como Zygmunt Bauman caracterizou nossa época) que não pouparam nem o mundo oriental.

9) Suicídios exemplares, de Enrique Vila-Matas (CosacNaify)- deliciosa e provocante coletânea de histórias cuja temática já e indicada pelo título., grande momento do autor espanhol. Espere mais ironia que drama, leitor..

8) Buscas curiosas, de Margaret Atwood (Rocco)- A grande escritora canadense reuniu textos onde comenta outros escritores, a feitura de alguns de seus livros e circunstâncias biográficas. O resultado é tão apaixonante quante sua própria ficção.

7) Leite derramado, de Chico Buarque (Companhia das Letras)- O melhor, mais inspirado, romance de Chico até agora, e simplesmente um texto primoroso, de primeira. Um século transcorre diante dos nossos olhos com uma insustentável leveza de estilo, e uma mirada poderosa no racismo latente em nossa sociedade. Maior poeta da nossa MPB, Chico agora também é um dos nossos grandes prosadores.

6) Dois grandes momentos da ficção uruguaia,: o primeiro livro de Juan Carlos Onetti (cujo centenário foi comemorado em 2009), O poço (1939), reunido a Para uma tumba sem nome (1959), numa edição da Planeta; e Primavera num espelho partido, de Mario Benedetti (Alfaguara), belíssimo romance político, utilizando a forma polifônica (muitas vozes) e comprovando a maestria de uma das grandes perdas do ano passado.

5) Súplicas atendidas, de Truman Capote (L&PM)- Apesar de inacabado e um pouco desagradável, é fascinante esse painel moralista do jet set americano e europeu entre os anos 40 e  70, que apresenta alguns momentos geniais, em meio a fofocas e revanches. Também vale destacar o atraso com que foi traduzido e o descaso com que foi traduzido.

4) Modernismo, de Peter Gay (Companhia das letras)- Foi bastante atacado esse esforço enciclopédico do grande historiador e biógrafo de Freud. Mas eu o acho admirável e necessário. Numa época de fragmentação, é preciso haver esses exercícios de totalização, e o Modernismo é ainda o nosso último horizonte “estável”.  O mundo seria muito mais sem graça se não existissem Peter Gay e Richard Dawkins.

3) Amuleto & Estrela distante, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras)- Embora nenhum dos dois tenha a amplitude suprema de Detetives selvagens, talvez o maior livro dos últimos anos, mostram como Bolaño, junto com W.G. Sebald (aliás,  o grande livro de Sebald, Os emigrantes, foi reeditado este ano, também pela Companhia. das Letras, havendo uma edição anterior pela Record), é o morto mais vivo da ficção contemporânea (ele morreu, pateticamente, aos 50 anos, esperando por um transplante de fígado foi publicada e conhecida quase toda postumamente).

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2) Um anarquista e outros contos, de Joseph Conrad (Hedra)- É até engraçado colocar o genial Conrad num segundo lugar, uma vez que ele é um dos autor-referência, mesmo nas suas histórias curtas, escritas no início do século passado, e que abordam temas ainda atualíssimos (terrorismo e publicidade, por exemplo).Também é outro caso de atraso lamentável em matéria de tradução. É preciso também destacar o papel importante da editora em colocar títulos surpreendentes no mercado, na mesma série à qual pertence o livro do genial escritor polonês.

1) As aventuras de Augie March, de Saul Bellow (Companhia das Letras)- Outro caso estrondoso de descaso e atraso  Esse livro de 1953 estbeleceu definitivamente a reputação de Saul Bellow, um dos maiores escritores norte-americanos, e muitos ainda o consideram sua obra-prima. Talvez não seja (eu prefiro por exemplo, O planeta do sr. Sammler, publicado dez anos depois, e há ainda Herzog  & o esplêndido O legado de Humboldt), mas é um dos seus melhores livros. É bom lembrar que outra grande obra de Bellow, Henderson, o rei da chuva, tornou-se cinquentenária agora em 2009, e assim aproveito para corrigir uma omissão que cometi no meu post a respeito das comemorações literárias deste ano. Agora: se o romance de Bellow é o grande destaque do ano, a capa escolhida é uma das piores, simplesmente horrorosa.

SOB O SIGNO DE BAUMAN: ficções da Modernidade Líquida: Vila-Matas, Chico Buarque…

 

paris não tem fim

A PELE LARGADA DE VILA-MATAS

 

Num dos belos livros do moçambicano Mia Couto, A Varanda do frangipani, um dos personagens, Salufo Tuco tem o hábito de se vestir com retalhos de tecidos, remendos mal costurados: Se apresentava assim para renovar memórias de sua inicial juventude. Recordava os primeiros pagamentos que recebeu como ajudante de alfaiate. O patrão era um indiano e lhe pagava o salário não em dinheiro mas em sobras de panos. Vestindo-se de remendos, Salufo se transferia para os perdidos paraísos da infância? Não sei. Uma vez lhe perguntei, ele negou. Retorquiu assim: a cobra pode reinstalar-se na pele que largou?”

Esse dilema (reinstalar-se numa pele que se largou) é o mote de Paris não tem fim do espanhol Enrique Vila-Matas (diga-se de passagemm um escritor antípoda ao autor de A varanda do frangipani), narrativa-conferência sobre a ironia, segundo o autor. E a ironia incide justamente sobre a época (meados dos anos 70) da juventude do então candidato a escritor, o qual fora morar em Paris mobilizado pelo charme da conjunção vida literária & boêmia que ressaltava das páginas de Paris é uma festa, de Ernest Hemingway, o livro clássico na descrição mitológica da chamada “geração perdida” nos anos 20 (Hemingway, o casal Fitzgerald, Gertrude Stein…).

Paris não tem fim nos relata como, ao escrever o seu primeiro livro (A assassina ilustrada), Vila-Matas se transformou num escritor antípoda a Hemingway: enquanto este utilizava os dados vitais, as experiências biográficas, as quais foram minguando, o que levou o escritor norte-americano mais famoso do século XX ao desespero e ao suicídio, nosso ofídico e viperino autor que procura a pele perdida preferiu fazer o que se pode chamar de ficção borgiana por excelência, na qual a literatura é o ponto de partida e não o de chegada.

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Para dar graça à situação, o gancho utilizado por Vila-Matas é a sua insistência ao longo dos anos de uma semelhança física que haveria entre ele e Hemingway, ao ponto de participar de um concurso de sósias. A teimosia é absurda e se torna emblemática das ilusões do jovem escritor que foi inquilino de Marguerite Duras, a quem presta uma homenagem ambivalente. É na casa dela que ele começa a intuir o que de fato representa o poder das palavras escritas como meio de adquirir certa distância do que chamavam realidade…essa necessidade que tinha das palavras…que elas pudessem ser úteis para me distanciar do mundo real. Seguramente comecei a me tornar de fato um escritor naquelas escadarias. Mas, como ainda não tivera acesso à ironia, as palavras pouco podiam fazer por mim naquele dia…”

Para se apreciar (quando não se conhece as demais obras do autor) Paris não tem fim é preciso ter um pouco essa predisposição para a literatura enquanto afastamento deliberado do real e exercício da ironia, embora no plano anedótico o relato memorialístico não seja desprovido daqueles dados vitais e daquelas experiências biográficas que tanto fizeram falta a Hemingway na solidão frente à velhice e ao esgotamento criativo em Ketchum, Idaho. Como  não sou  de todo afeito a essa dieta de palavras, ainda não me dei por satisfeito na minha chegada ao mundo de Vila-Matas. Porém, como Paris não tem fim…

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de abril de 2008)

 

A POESIA POTENCIAL DA VIDA DERRAPANDO NA PISTA DA PROSA


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NA VIDA FANTASMA, A VERDADE DE UM ESCRITOR…

 “…depois de casado, nos dias em que estava seguro de haver escrito um texto de grande inspiração… meu desejo era o de que a Vanda o lesse. Então comprava vários exemplares do jornal e os deixava com meu artigo à mostra no caminho dela, na mesa de jantar, em cima do telefone, no berço do menino, junto ao espelho do banheiro. Ver a Vanda correr os olhos sobre as minhas letras, esboçar um sorriso, apreciar um texto meu sem saber que o era, seria quase como vê-la se despir sem saber que eu a estava olhando. Mas não, ela pegava o jornal e revirava as páginas, olhava umas fotografias, lia as legendas, a Vanda não tinha paciência para grandes leituras. Daí meu estupor ao saber de sua boca que ela lera meu livro, não uma, mas três vezes… tive pena e orgulho de mim, era  como se duas palavras dela reparassem sete anos de descaso”.

No trecho acima, José Costa, narrador e protagonista do festejado Budapeste, de Chico Buarque, esclarece, caso alguém ainda tivesse dúvidas, as suas prioridades. Acima de tudo, a palavra escrita, obsessivamente praticada por ele, como escritor fantasma, orgulhando-se  –-nesta época patética onde ser uma celebridade por 15 minutos conta tanto— do seu anonimato.

Escritor fantasma, Costa apaixonar-se-á por uma cidade fantasma, a do título, por causa de uns fiapos de linguagem, de algumas palavras ouvidas numa escala forçada de viagem: “Tratava-se de um pão de abóbora, conforme o maître informou em inglês, mas eu não queria a receita da broa, queria saborear seu som em húngaro”. Chega a participar de congressos de escritores anônimos, em várias partes do mundo, nestes tempos de globalização nos quais uma cidade equivale à outra, de tal forma que percorrer um mapa, trancado num quarto de hotel, pode substituir a experiência real, o que combina com um estilo de vida fundamentalmente fantasmático: Não me aborrecia caminhar assim num mapa, talvez porque sempre tive a vaga sensação de ser eu também o mapa de uma pessoa”.

Por isso, se pode entender que para José Costa é uma traição ao seu código de vida revelar à mulher que é o verdadeiro autor de um livro, num acesso de ciúme; também não causará espécie saber que ele abandona o outro pólo amoroso (húngaro) da narrativa, Kriska, por não ver apreciada a obra assinada por outro, e principalmente por ela não perceber como seu antigo aluno passou a dominar o seu idioma natal. É um amor tão grande pela (s) língua (s) e seu uso, que, num outro momento de ruptura, ao perceber que ela está prestes a xingá-lo com uma palavrão desconhecido, lemos: “A palavra estava ali nos seus lábios vacilantes, devia ser uma palavra que ela nunca se atrevera a pronunciar. Devia ser uma palavra arcaica, uma palavra caída em desuso de tão atroz. Devia ser a única palavra que eu não conhecia em todo o vocabulário magiar, devia ser uma palavra estupenda. Então não me contive e supliquei: fala”.

Também se pode entender, por isso, que a grande ironia da história será quando publicarem um livro cujo autor é José Costa (ou mais precisamente, Zsose Kósta), mas que ele não escreveu, um livro que o torna uma celebridade…

Budapeste é um romance danado de engenhoso. Tem um nível de elaboração de linguagem (o qual se reflete inclusive na sua paradoxal limpidez) quase desconhecido hoje em dia na ficção brasileira, a não ser em raríssimas obras. Como Chico Buarque escreve bem! Além disso, ele se livra de vez da aura fantasmática, da aura do “quase”, de obra-potencial, nebulosa e anticlimática, que marcou seu primeiro romance, Estorvo, cuja bruma já havia sido um pouco (mas só um pouco) dissipada com o romance seguinte, Benjamim.

Por que então sua leitura não satisfaz plenamente? Talvez porque, quando o livro se encaminha para uma maior densidade, uma verticalização do universo fantasmagórico do pós-moderno, o qual ele delineou tão lindamente, com suas cidades intercambiáveis, com seus hotéis impessoais, com um cosmopolitismo que se traduz em uniformização, em que todos os tipos de relação se deterioram (como na cena em que José Costa reencontra o filho crescido, que fica a um passo de agredi-lo gratuitamente, sem aparentemente reconhecê-lo: “…talvez soubesse desde o início que eu era seu pai, e por isso me olhava daquele jeito, por isso me encurralava no muro. E fechou o punho, armou o golpe, acho que ia me acertar o fígado…”), enfim, tudo que vai contra a complexidade da língua enquanto parte viva do nosso ser, Chico recua visivelmente e nos proporciona soluções decerto prazerosas de ler, porém aquém do rigor e do vigor de um João Gilberto Noll ou de um Bernardo Carvalho, entre os expoentes brasileiros da perplexidade, da inquietude e da insubstancialidade no cenário literário atual, para não falar do grande Paul Auster, que, aliás, leu trechos de Budapeste no congresso de escritores nada anônimos que é a FLIP, em 2004. Outra sensação desagradável é que parece termos lido tudo isso, com maior contundência, outras vezes. A diluição é agradável, porém, ainda assim, diluição, placebo, simulacro…

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos,em 22 de junho de 2004, e aqui reproduzida com ligeiras modificações)

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17/03/2011

NAS ÁGUAS FEMININAS DO RIO CHICO

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 20 de junho de 2000)

No final da década de 70, Adélia Bezerra de Menezes inovou os estudos acadêmicos no Brasil ao estudar pioneiramente a obra de Chico Buarque na tese que resultou no belo e premiado Desenho Mágico.

Ao longo do tempo, Adélia (que pertence a uma grande geração de ensaístas e críticos literários cujo mestre é Antônio Cândido) foi publicando artigos e ensaios sobre vários aspectos da poesia do nosso mais prestigiado compositor-letrista até que resolveu dar a eles uma unidade, privilegiando a temática do feminino. Como se sabe, em inúmeras letras Chico assume o ponto de vista da mulher. Mas essa mulher não é uma, ela é várias, tem muitos prismas. É o que tenta mostrar Figuras do feminino na canção de Chico Buarque.

O livro propõe não haver “uma evolução linear da personagem feminina ao longo da obra de Chico. Poderíamos, quando muito, falar em evolução em espiral, em que há uma expansão, e uma retomada de temas fulcrais”. Mas alerta sempre: “Não dá para falar da mulher sem falar do homem, e vice-versa. Pois a mulher sempre aparece nas canções de Chico e na vida em geral, em situações densas de afeto, libidinalmente carregadas de confronto com o masculino”.

Quem conviveu com a imensa popularidade (não a popularidade instantânea e industrializada dos hits de hoje) das canções de Chico nos anos 70 e início dos 80 (bem menos agora) não terá dificuldades de acompanhar o percurso da autora por letras tão famosas quanto as de Terezinha; O meu amor; Sem fantasia; Com açúcar, com afeto; Cotidiano; O que será; Pedaço de mim; Olhos nos olhos; Trocando em miúdos; Folhetim; Mar e lua; Beatriz; As vitrines. Há, ainda, letras menos conhecidas do “grande época” buarquiana, como as belíssimas Sobre todas as coisas & Moto contínuo, por exemplo. E há as recentes, bem menos paradigmáticas, como Iracema voou para a América ou Você, você.

Algumas pessoas—e muitas vezes eu me incluí entre elas, em momentos de fastio e saturação—vêem em muitas das letras do autor de Ópera do malandro uma visão anacrônica da mulher, por conta de situações revoltantes como a apresentada em Atrás da porta, que mostra uma tipa rastejante e masoquista, que se agarra aos pés do amado, implorando, “pra provar que inda sou tua”! O cúmulo maior com relação a essa canção é o fato de que infalivelmente ela é interpretada como se fosse algo ultra-romântico e passional (é o caso da melodramática performance de Elis Regina), o que a torna um insulto às mulheres em geral.

É de se notar, também, que o feminino no cancioneiro de Chico Buarque não registrou muito a mudança e a subversão do papel feminino nas últimas décadas. Parece que ainda estamos na época em que a mulher se dividia em santa do lar e puta, em submissa ou vadia, na mulher de malandro ou que faz de cada homem “página virada do meu folhetim”. Será que as mulheres de hoje ainda podem se identificar com eu lírico feminino nas canções do autor de Atrás da porta?

Para Adélia Bezerra de Menezes, sim. Pois, com seu texto altamente persuasivo e envolvente, ela não nos mostra uma visão da mulher anacrônica, mas uma visão arquetípica. Valendo-se do instrumental da psicanálise, tanto na sua vertente individual (Freud) quanto na sua vertente ideológica e politizante (Marcuse), ela remonta aos mitos gregos para nos dar algumas categorias de mulheres: temos as mulheres órficas, dionisíacas, que estabelecem a ordem da festa, subvertendo e transgredindo a ordem repressiva do cotidiano (por exemplo, em Ela desatinou, a mulher que insiste em continuar sambando, mesmo depois da quarta-feira de cinzas); a mulher prometéica, que, ao inverso, procura instaurar a ordem repressiva (a mulher de Cotidiano, que “todo dia faz tudo sempre igual”); para além dessas mulheres, temos aquelas portadoras da ordem do trágico, como a da canção Angélica (feita em homenagem a Zuzu Angel, que tentou esclarecer o assassinato do filho durante a ditadura e acabou ela mesma sendo morta).

O liame que se estabelece entre a tão arquetípica ordem do trágico e um fato político da atmosfera pós-1964 mostra uma das preocupações centrais de Figuras do feminino na canção de Chico Buarque: a de sempre enredar o individual no coletivo e vice-versa. Opondo-se veementemente contra a despolitização assustadora a que assistimos (e que antigamente chamava-se alienação, pura e simplesmente), o livro desenvolve-se numa espiral que sempre leva o mundo de Eros (pretensamente íntimo e pessoal) ao mundo da polis, estabelecendo um diálogo entre eles, assim como estabelece um diálogo entre o feminino e o masculino, entre a leitura e o ouvido (pois não deixamos de “ouvir” mentalmente as canções de Chico quando lemos, o que mobiliza uma intensa memória afetiva), entre a palavra e a imagem (a extremamente caprichada co-edição entre a Ateliê Editorial e a Boitempo traz reproduções—coloridas—de quadros de Ismael Nery, Alfredo Volpi, Di Cavalcanti, Portinari, Vicente do Rego Monteiro, Milton da Costa, Flávio de Carvalho, Jan van der Straet), e entre análise acurada e emoção visível.

E, sobretudo, estabelece um diálogo entre o alto ensaísmo e o leitor comum. Pois, Adélia Bezerra de Menezes, que, não por acaso, já escreveu deliciosos ensaios sobre Scherazade (na sua coletânea Do poder da palavra) acredita no prazer da leitura e em ser lida com prazer. Para ela, o leitor comum nunca é página descartada do seu folhetim.

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