MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

16/04/2013

A gota de veneno de Thérèse Desqueyroux no ramerrão da província

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“Outros ficcionistas, como outros leitores, sorrirão desse drama. Se Mauriac não jogasse tanto com a presença (invisível, mas palpitante à distância, em seus livros) de um poder divino, tais livros seriam simplesmente freudianos. Elimine-se esse dado oculto e… surgirão os complexos, os recalques, as transferências, o conteúdo onírico e toda a nomenclatura popularizada nos últimos anos. De acordo. Mas é preciso contar com a personagem secreta de Mauriac, que dela não prescinde. Seria muito bom que os romancistas fossem romancistas e os poetas, puramente poetas, mas a verdade é que eles se comunicam, através de inumeráveis condutos com as correntes morais, políticas e filosóficas que banham o mundo, e que sem essa comunicação não existiria mesmo a matéria que produzem, isto é, a literatura.
     Para compreender e estimar Mauriac, portanto, é preciso aceitá-lo como tal como é, romancista obcecado com o problema da culpa e do resgate. Não o problema da consciência moral, pura e simples, comum ao crente, ao cético e ao ateu, ou o da responsabilidade jurídica, forma civil dessa consciência. Sua fraqueza, como sua força, vêm daí. É pegá-lo ou deixá-lo…”  (Carlos Drummond de Andrade)

“Pensando na noite que se seguiu, Thérèse murmura: Foi horrível, mas corrige-se: Não…não foi tão horrível assim. Sofreu muito durante a viagem aos lagos italianos? Não, não; ela se aplicava a este jogo: não se trair. Um noivo engana-se facilmente; mas um marido! Qualquer pessoa sabe dizer palavras falsas; as mentiras do corpo exigem outra ciência. Imitar o desejo, a alegria, o delicioso cansaço, isso não é dado a todos. Thérèse soube dobrar o corpo a esses fingimentos e tirava disso um amargo prazer. Esse mundo desconhecido de sensações em que um homem a obrigava a penetrar, sua imaginação a ajudava a conceber que talvez houvesse aí, para ela também, uma felicidade possível—mas que felicidade? Como diante de uma paisagem mergulhada na chuva nós nos representamos o que seria ela debaixo do sol, assim Thérèse descobriu a voluptuosidade.” (François Mauriac)

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de abril de 2013)

“… obedecera a uma lei profunda, inexorável; não destruíra aquela família, ela é que seria destruída; tinham razão em considerá-la um monstro, mas também ela os julgava monstruosos.”

Uma esposa que se sente definhando numa morte em vida na província, cercada de gente de mentalidade tacanha e retrógrada, desesperada por constatar que, grávida, é alvo de atenções apenas por ser o receptáculo da “continuação da raça”, um dia percebe casualmente o marido (por quem alimenta desprezo e horror), distraído por uma crise na região, dobrar a dose recomendada de um remédio tomado diariamente. O grão de uma tentação germina e vai se tornando irresistível: envenenar aquele ser embrutecido, aquele estorvo.

Quando começa Thérèse Desqueyroux (1927), cuja mais recente versão cinematográfica  encontra-se em cartaz, a protagonista volta ao seu lar para enfrentar as conseqüências do seu ato perante o marido, após ter sido inocentada da acusação de tentativa de assassinato. Inculpada segundo a justiça oficial, será punida de uma forma exemplar, condenada a um isolamento ainda maior do que antes.

   François Mauriac (1885-1970), portanto, equaciona as tentativas tresloucadas e erráticas de Thérèse com a assustadora eficácia das sanções mesquinhas, calculadas, que não ferem as aparências e o decoro geral, mas que resultam igualmente monstruosas. O ponto alto, e um momento particularmente terrível (totalmente diluído no filme), de Thérèse Desqueyroux é o relato da degradação física e da destruição espiritual da envenenadora (cuja passagem faz com que as mães recolham os filhos, que ninguém responda aos seus cumprimentos, e que ela tenha de se esgueirar pelos caminhos). Sua situação é resumida pela criada que, solidária ao agravado patrão, a serve de forma a lhe deixar o ressaibo de condenada à prisão vigiada por uma carcereira: “Ela não sai mais da cama, deixa a sua conserva e o seu pão. Mas eu te juro que ela esvazia a sua garrafinha. Quanto a gente der a essa puta, tanto ela beberá. E além disso, queima os lençóis com cigarro (…) É ou não uma desgraça? Lençóis que foram feitos para a casa! Vá esperando que eu os mude todos os dias! Resultado do regime: ao ser vista novamente pela família, para uma ocasião “de conveniência”, ela está “exangue, descarnada”, o rosto como que roído, irreversivelmente.

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É por Mauriac, um daqueles formidáveis autores católicos (ao mesmo tempo, muito regionalistas, com livros de ambientação inconfundível) franceses, do naipe de um Georges Bernanos (Sob o sol de Satã) e um Julien Green (Leviatã), os quais exerceram grande influência aqui no Brasil no século passado, compor tão cruelmente essa mistura de páthos e jaulas existenciais intoleráveis, que é quase impensável imaginar que um diretor digamos “recatado”, para não dizer limitado, como Claude Miller, e uma atriz tão fraquinha quanto Audrey Tautou (ainda mais num papel que já foi vivido, em outra versão, pela grande Emanuelle Rivas), possam transpor esses extremos para as telas com algum resultado longinquamente memorável.

Mas não é de saída que o texto impressiona. Nos primeiros capítulos, ele fica no limite de aborrecer o leitor com o minucioso exame de consciência de Thérèse no longo regresso, do tribunal à sua casa, que é filtrado da forma mais intrometida possível pelo narrador. Os mecanismos mentais da personagem nos parecem tão cartesianos, tão concatenadinhos, e vazados em linguagem tão pura e escorreita, que parece que ele está arremedando o teatro clássico francês, um tom à Racine.

É a vida infernal de Thérèse como condenada pela família do marido que faz o romance alçar à condição de obra-prima. Mas, passados 86 anos, a história toda ainda é tão forte que, mesmo quando sentimos que o autor interfere demais nas reminiscências e reflexões da desventurada heroína, de forma até anacrônica, o “drama” apresentado por ele impacta o leitor. Quantos enredos atuais podem se orgulhar disso?

Ajuda muito Thérèse Desqueyroux ter sido traduzido por um inspirado Carlos Drummond de Andrade (nos anos 1940, e lançado originalmente com o título nacional de Uma gota de veneno), de uma forma tão marcante, tão indelével, que às vezes fica difícil imaginar esse grande momento da produção de Mauriac (que teria uma continuação, O fim da noite, em 1935), junto com O deserto do amor (1925) em outra versão em nossa língua.

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29/08/2012

O PACTO FICCIONAL ENTRE AUTOR E LEITOR

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 25 de fevereiro de 2006)

Todos têm seus bordões, e nesse ponto não sou diferente de ninguém, também tenho os meus e um dos que mais gosto de repetir é tirado de um pedaço de frase do admirável A Rainha dos Cárceres da Grécia (1976), última obra de Osman Lins, que agora, 30 anos depois, recebe nova edição: “romance, mundo imerso no mundo”. Em Áporo, de Carlos Drummond de Andrade, lemos: “Um inseto cava / cava sem alarme / perfurando a terra / sem achar escape // Que fazer, exausto, / em país bloqueado / enlace de noite / raiz e minério ? // Eis que o labirinto / (oh razão mistério) / presto se desata: // em verde, sozinha, / antieuclidiana, / uma orquídea forma-se.” Num país bloqueado (estamos nos anos “barra pesada” da ditadura militar), o narrador refugia-se num diário no qual procura analisar o romance inédito A rainha dos cárceres da Grécia, deixado pela sua falecida amante, Julia Enone, a respeito de uma “irmã em destino” da Macabéa de A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, também nordestina e miserável, chamada Maria de França, a qual passa anos da sua vida pleiteando um benefício do antigo INPS, em vão, não conseguindo romper a temível malha burocrática, mesmo porque não tem instrução ou equilíbrio psicológico (passa por períodos de loucura e internação): “Fazem-lhe, ainda na Riachuelo, nova sugestão: recorrer à Assistência Judiciária, antes obtendo atestado de pobreza. Ela ouve o conselho, desce as escadas, as escadas sujas, repetindo-o. Ao chegar embaixo, já se esqueceu de tudo.”

Tanto quanto o jogo metalingüístico fascinante (que faz de Osman Lins um irmão de Nabokov e Paul Auster), A rainha dos cárceres da Grécia impressiona por sua dimensão política, apesar da sombria constatação do seu protagonista: “Assim, coincide melhor com as linhas gerais do romance outra visão –mais chã—do isolamento do escritor, não voltada para ele, e sim para a sociedade, que o recusa.”

     Inseto cavando sem alarme, perfurando a terra, escavando na obra de Julia Enone, sua orquídea antieuclidiana para desatar o labirinto (mito arquitetônico que foi um dos vários legados da civilização grega), o narrador comenta e transcreve notícias de jornal, nunca se referindo diretamente ao regime militar. Nenhuma obra dos anos 70, entretanto, captou tão poderosamente o clima opressivo da época e a degradação da informação enquanto valor na nossa sociedade, pois a maioria dos ficcionistas optou pela simplificação do “romance-reportagem” (Infância dos mortos, O crime antes da festa, Lúcio Flávio, Acusado de homicídio, alguém lembra desses títulos ?), onde, na tentativa de driblar a censura e oferecer um “retrato” da realidade nacional, o supostamente factual e referencial sufocava a narração e acabava-se reconfortando o leitor, mais do que o levando a uma atitude crítica, ao perseguir uma impressão de veracidade absoluta.

Flora Süssekind radiografou muito bem essa perspectiva naturalista e redutora no seu memorável estudo Tal Brasil, qual romance? Ora, ao eleger a distorção dos fatos, até do espaço narrativo (Julia Enone funde Recife e Olinda como se fossem uma cidade só), o narrador de A rainha dos cárceres da Grécia dinamita essa mentira referencial, do que é “baseado na vida real”, e firma com o leitor um pacto ficcional, em que se finge a dor que deveras se sente. Ao descascar camadas e camadas de artifícios narrativos, ele nos transmite muito mais realidade ( transbordante, simbólica, delirante que seja) do que qualquer medíocre relato de casos da época. É o triunfo do romance, mundo imerso no mundo, e, em última instância, da verdadeira literatura, sobre a reportagem que se disfarça (mal) de ficção.

01/07/2012

ERVAS DANINHAS DA ESCRIVANINHA

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de julho de 1996)

O POETA

Leyla Perrone-Moisés tem um livro chamado Flores da escrivaninha. No caso de Carlos Drummond de Andrade, a maior parte do que ele publicou no final da vida (faleceu em 1987), ou foi publicado postumamente, poderia ser reunida sob o título Ervas daninhas da escrivaninha, pois quase chega a comprometer irremediavelmente a estatura artística do autor mineiro.

Para comprovar o efeito maléfico desses produtos do mofo criativo, aí está mais um livro, FAREWELL. A Editora Record e os herdeiros de Drummond esperam que o leitor fique emocionado com o clima de “adeus definitivo”. Mas como, se colocaram  capa e contracapa ridículas, com nuvens e estrelas a sugerir o Infinito, numa mistura indigesta de Fernão Capelo Gaivota com 2001?

Dos nossos grandes poetas do século (Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Jorge de Lima), Drummond foi o que conseguiu maior repercussão popular. Só que ele se tornou, com isso, o “Poeta”, vítima de uma mitificação banal—mitificação mistificante fácil de observar no medíocre O carteiro e o poeta—,como se “Poeta” (ou, no terreno musical, “Maestro”) fosse uma insígnia que se usasse, uma condecoração, ou como se tivéssemos um bobo da Corte ou uma atração circense. Não importa que ele tenha sido, nos seus grandes poemas, um mestre da ironia e da angústia, ou que tenha criado imagens perturbadoras ou desconcertantes. Era o “Poeta”, a causar a mesma comoção pueril de um ursinho de pelúcia da Lionella.

O LIVRO

Não adianta. Assim como Corpo & Amar se aprende amando, FAREWELL é fruto do embotamento poético de Drummond. Não é ruim, é morno, um rescaldo. O envelhecer, o morrer aos poucos, dão o tom, mas um tom complacente porque requenta imagens que um Drummond mais pujante e cruel já havia lavrado sobre esses temas. Mesmo nos momentos melhorzinhos de FAREWELL, Drummond parece imitar Drummond e temos um desfile de lugares-comuns: “Claro que o corpo não é feito só para sofrer/mas para sofrer e gozar./Na inocência do sofrimento/como na inocência do gozo/ o corpo se realiza, vulnerável/ e solene…// Em ti me sinto dividido, campo de batalha/ sem vitória para nenhum lado/ e sofro e sou feliz/ na medida do que acaso me ofereças…”

   Não falta nem a famosa “simplicidade” drummondiana: “Eis que acode meu coração/ e ofereço, como uma flor/ a doçura desta lição/ dar a meu filho meu amor.// Pois o amor resgata a pobreza/ vence o tédio, ilumina o dia…” e assim por diante.

Nem se vai falar aqui da cascata de clichês babujentos que borbota nas homenagens a artistas (como Fernando Pessoa), já que sempre foi a parte mais fraca e discutível da obra do “Poeta”. Mas e um poema como Desligamento? “Ó minh´alma, irmã deserta, consola-te de me teres habitado…” etc etc. Parece evocar intertextualmente  os versos do Imperador Adriano, citados por Marguerite Yourcenar em seu romance: “Pequena alma terna flutuante/ Hóspede e companheira do meu corpo/Vais descer aos lugares pálidos duros nus/ Onde deverás renunciar aos jogos de outrora” (utilizo a tradução de Martha Calderaro). Há quase dois mil anos, o romano colocava os termos essenciais da vida e da morte. Parece não ter havido nenhum avanço na expressão do problema. E, no caso específico de Drummond, parece ter havido um visível recuo para uma expressão poética mais convencional e chocha.

Quando o leitor se lembra de Sentimento do Mundo, A Rosa do Povo, Claro Enigma ou Lição de Coisas, FAREWELL não parece (nem pode ser) a última palavra a ser dita por Drummond. O lançamento deste livro deve dar muito lucro aos herdeiros e à editora, mas lucramos mais visitando ou revisitando aqueles livros, onde as inquietações de Adriano aparecem com roupagem moderna e eterna: “Tudo é teu, que enuncias. Toda forma/ nasce uma segunda vez e torna/ infinitamente a nascer. O pó das coisas/ ainda é um nascer em que bailam mésons./ E a palavra, um ser/ esquecido de quem o criou; flutua/ reparte-se em signos. Pedro, Minas Gerais, beneditino/ para incluir-se no semblante do mundo…”

31/10/2011

Férias com Drummond

1) Comentários e citações (Alguma Poesia & Brejo das Almas) 05.01.10

“Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou”.

(“Explicação”, em Alguma Poesia)

No início dos anos 90 resolvi ler a obra poética inteira de Drummond e encarei a empreitada que é o volume da Aguilar (embora a minha edição fosse de 1979 e muita água tenha passado pela ponte depois). Antes, havia lido um ou outro livro isoladamente, a Antologia Poética inteira e, é claro, poemas de forma esparsa.

Agora a Bestbolso fez uma Nova Reunião , com 23 livros do genial poeta mineiro, em três volumes, e decidi novamente fazer uma leitura disciplinada e empenhada da obra poética drummondiana, quase vinte anos depois da primeira vez. Se saúde e vida houver, espero chegar ao fim das férias de janeiro com seus poemas na ponta da língua, pelo menos os do primeiro volume.  Até agora já li quatro: Alguma poesia, sua estréia em 1930 (ele nasceu em 1904 e morreu em 1987); Brejo das almas ( 1934); Sentimento do mundo (1940) e José (1942; essa primeira edição incorporava as coletâneas anteriores).

Dos quatro, o meu favorito é ainda Alguma poesia. Mesmo decorridos 80 anos, é possível imaginar o impacto que essa coletânea ocasionou, até pelo seu título pra lá de irônico, meio provocação, meio coisa hipotética (desse material todo alguém poderá retirar ou reter “alguma” poesia, algo ínfimo, muito menor do que a Poesia praticada na época, ou o que era considerado Poesia). Dos 50 poemas que compõem o livro, pelo menos doze são absolutamente paradigmáticos, referências absolutas do nosso modernismo e da nossa mais alta lírica, tão famosos que todo mundo conhece, sem às vezes saber a que livro pertencem: o inaugural, em todos os sentidos, “Poema de sete faces” (“Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não uma solução…”); “Infância” (que termina comos célebres e belos versos seguintes: “E eu não sabia que minha história/era mais bonita que a de Robinson Crusoé”); “Construção” , um daqueles poemas curtos, relampejantes, meio jocosos, que marcaram o nosso Modernismo, assim como “Política literária”,  “Quadrilha”, “anedota búlgara” e “Cota zero”; “Sentimental”; “Coração numeroso” (com o famoso “Meus paralíticos sonhos desgosto de viver”, mas também a presença do Rio, em contraponto ao atavismo itabirano”: “O mar batia em meu peito, já não batia no cais./ A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu/ a cidade sou eu/ sou eu a cidade/ meu amor”); “Poesia” (quem não conhece estes versos: “Gastei uma hora pensando um verso/que a pena não quer escrever./No entanto ele está cá dentro/ inquieto, vivo./Ele está cá dentro/e não quer sair./Mas a poesia deste momento/inunda minha vida inteira”?); e, por fim, dois poemas absolutamente essenciais, básicos, cada um a seu modo:  “No meio do caminho” e “Cidadezinha qualquer” (“Eta vida besta, meu Deus”).

Temos, também, “Cabaré Mineiro”, com a dançarina espanhola de Montes Claros, “…linda,linda, gorda e satisfeita./ Como rebola as nádegas amarelas!/ Cem olhos brasileiros estão seguindo/ o balanço doce e mole de suas tetas…” E a “Balada do amor através das Idades” (que lembra Bandeira), onde após passarmos por Grécia, Tróia,  Roma, Cristandade, a corte de Versailles, a Revolução: “Hoje sou moço moderno,/ remo, pulo, danço, boxo,/tenho dinheiro no banco./ Você é uma loura notável, / boxa, dança, pula, rema./ Seu pai é que não faz gosto./Mas depois de mil peripécias,/ eu, herói da Paramount,/te abraço, beijo e casamos.” Temos a “Lanterna Mágica” do poeta, passando de forma irregular (em termos de resultado poético e envolvimento do leitor) por Belo Horizonte, Sabará, Caeté, Itabira, São João Del-Rei, Rio de Janeiro [“Meus amigos todos estão satisfeitos/com a vida dos outros (…)/ Mas tantos assassinatos, meu Deus./ E tantos adultérios também./ E tantos tantíssimos contos do vigário…./(Este povo quer me passar a perna.) // Meu coração vai molemente dentro do táxi”], terminando,impagavelmente, na Bahia (“É prexiso fazer um poema sobre a Bahia…// Mas eu nunca fui lá”).

Temos o eu lírico, no maravilhoso “Sweet home”, refestelado “nesta poltrona de humorista inglês”, enquanto “O jornal conta histórias, mentiras…/Ora afinal a vida é um bruto romance/ e nós vivemos folhetins sem o saber”.

´”Também já fui brasileiro” mereceria ser tão famoso como aqueles doze que citei e é um dos pontos altos de Alguma poesia, mantendo aquela toada da afinidade da lírica de Drummond com a de Manuel Bandeira, apesar das muitas diferenças: “Eu também já tive meu ritmo./ Fazia isto, dizia aquilo./ E meus amigos me queriam,/ meus inimigos me odiavam./ Eu irônico deslizava/ satisfeito de ter meu ritmo./ Mas acabei confundindo tudo./ Hoje não deslizo mais não,/ não sou irônico mais não,/ não tenho ritmo mais não”.

Discretamente, o proletariado e o socialismo, inclusive com a experiência soviética ainda muito atraente para os intelectuais da época  já deixam seu rastro (depois seriam mais fortes e explícitos na poesia drummondiana). Em “Europa, França e Bahia”, com seus “olhos brasileiros sonhando exotismos”, o poeta enjoa da Europa: “Mas a Rússia tem as cores da vida./ A Rússia é vermelha e branca./ Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme/ bolchevista e no túmulo de Lenin em Moscou parece que um /coração enorme está batendo, batendo/ mas não bate igual ao da gente…”

 E a mistura Itabira-Rio-paralíticos sonhos-desgosto de viver-vida besta-gauche na vida-vasto mundo é bem sintetizada no delicioso  “Casamento do Céu e do Inferno”:

No azul do céu de metileno

a lua irônica

diurética

é uma gravura de sala de jantar.

 

Anjos da guarda em expedição noturna

velam sonos púberes

espantando mosquitos

de cortinados e grinaldas.

 

Pela escada em espiral

diz-que tem virgens tresmalhadas (…)

 

Por uma frincha

o diabo espreita com o olho torto (…)

 

São Pedro dorme

e o relógiodo céu ronca mecânico.

Diabo espreita por uma frincha.

Lá embaixo

suspiram as bocas machucadas.

Suspiram rezas? Suspiram manso,

de amor (…)

Que a vontade de Deus se cumpra!

Tirante Laura e talvez Beatriz,

o resto vai para o inferno.”

Brejo das Almas (o título vem do nome de um lugarejo, e foi um achado genial) não tem o impacto de Alguma Poesia, claro, é nem um número igual de poemas paradigmáticos, daqueles que todo mundo conhece um verso, ou já ouviu falar, mas é um livro muito belo, e na minha opinião páreo até mesmo ao tão estimado Sentimento do Mundo,  que veio a seguir. Os seus poemas mais célebres são estes seis: “Soneto da perdida esperança” (“Perdi o bonde e a esperança./ Volto pálido para casa./ A rua é inútil e nenhum auto/ passaria sobre meu corpo“, terminando com: “Entretanto há muito tempo/ nós gritamos sim! ao eterno“);  “O amor bate na aorta” (“O amor bate na porta,/ o amor bate na aorta,/ fui abrir e me constipei“), que prolonga a molecagem modernista drummondiana, com sua modulação única: “Poema patético” (no qual todas as estrofes repetem o primeiro verso: “Que barulho é esse na escada?”; na duas últimas: “É a torneira pingando água,/ é o lamento imperceptível / de alguém que perdeu no jogo/ enquanto a banda de música/ vai baixando, baixando de tom (…)// É a virgem com um trombone,/ a criança com um tambor,/ o bispo com uma campainha/ e alguém abafando o rumor/ que salta de meu coração“),  “Em face dos últimos acontecimentos” [cujo título é bem menos famoso que os versos: “Oh! sejamos pornográficos/ (docemente pornográficos)./ Por que seremos mais castos/ que o nosso avô português“]; “Segredo” (“A poesia é incomunicável/ Fique torto no seu canto“) e o meu favorito  total, “Necrológio dos desiludidos de amor”…

2) Comentários e citações (Brejo das Almas & Sentimento do Mundo) 06.01.10:

“Tudo é possível, só eu impossível” (de “Segredo”, Brejo das Almas)

Comecei ontem anotações e citações da minha leitura de férias de  Nova Reunião- 23 livros de Poesia, e estava comentando os poemas mais famosos de Brejo das Almas. Como já afirmei, deles todos o meu favorito, não por ser o melhor, mas pelo espírito moleque, entranhadamente modernista, jocoso e pândego, é “Necrológio dos desiludidos do amor”:

“Os desiludidos do amor

estão desfechando tiros no peito.

Do meu quarto ouço a fuzilaria.

As amadas torcem-se de gozo.

Oh, quanta matéria para os jornais.

 

Desiludidos mas fotografados,

escreveram cartas explicativas,

tomaram todas as providências

para o remorso das amadas.

Pum pum pum adeus, enjoada.

Eu vou, tu ficas, mas nos veremos

seja no claro céu ou turvo inferno.

 

Os médicos estão fazendo a autópsia

dos desiludidos que se mataram.

Que grandes corações eles possuíam.

Vísceras imensas, tripas sentimentais

e um estômago cheio de poesia…

 

Agora vamos para o cemitério

levar os corpos dos desiludidos

encaixotados competentemente (…)

Única fortuna, os seus dentes de ouro

não servirão de lastro financeiro

e cobertos de terra perderão o brilho

enquanto as amadas dançarão um samba

bravo, violento, sobre a tumba deles.”

Esse lado brejeiro fica bastante atenuado, embora persista, no “sério”, no ambicioso Sentimento do mundo (1940), que é considerado um dos pontos de inflexão da obra drummondiana, com a temática mais próxima do social, do politizado, com seu namoro (enjoado, creio eu) com o socialismo. O livro tem pontos altos, é claro, mas no conjunto perde para os dois anteriores, em qualidade, coesão e força. São mais poemas fortes do que um livro forte, a despeito do apelo irresistível do título, que ficou quase proverbial para definir um certo Drummon, aquele mais participante, dentro da sua reserva.  Só que eu acho que há uma tendência, nessa fase,e que também atrapalha A rosa do povo, de ser discursivo. Malgrado haja, num dos poemas do livro de 1945 (A rosa do povo) , um verso brilhante, “que tristes as ooisas quando consideradas  sem ênfase” ou algo muito próximo disso, há muita ênfase nos dois livos,  o que às vezes, a meu ver, enfraquece alguns poemas que o tempo tornou melodramáticos e até discutíveis do ponto de vista propriamente poético, nao importa o humanismo exalado por eles .

 No conjunto de quase 30 poemas de Sentimento do Mundo há dez muito famosos, paradigmáticos, começando, é claro, de cara com o poema-título (“Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo”… “Os camaradas não disseram/ que havia uma guerra/ e era necessário/ trazer fogo e alimento”… “esse amanhecer/ mais noite que a noite”); mas, para mim, talvez fosse mais impactante começar com o melhor poema do livro, que é o segundo, uma das obras-primas do autor:

“Confidência de Itabirano”:

“Alguns anos vivi em Itabira.

Principalmene nasci em Itabira.

Por isso sou triste, orgulhoso, de ferro.

Noventa por cento de ferro nas calçadas.

Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação (…)

 

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,

é doce herança itabirana (…)

 

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionário público.

Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!”

O terceiro poema muito célebre é “Poema da necessidade”, que tem aquele formato repetitivo, usado tão amiúde e tão bem pelo mestre itabirano (“É preciso casar João,/ é preciso suportar Antônio,/ é preciso odiar Melquíades,/ é preciso substituir nós todos…”); o quarto é “Congresso Internacional do Medo” (que antecipa “O medo”, poema de A rosa do povo, o qual  abre com uma citação de Antônio Cândido, para que o leitor de hoje veja como já era o prestígio em 1945 do nosso maior crítico literário, então ainda muito jovem), o qual se encerra deste modo: “depois morreremos de medo/ e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”;  tem “Os mortos de sobrecasaca” (“Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferente/ e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos./ Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava/ que rebentava daquelas páginas”), que revela uma certa filiação machadiana de drummond, ainda que de forma muito menos deletéria e corrosiva; famoso também é “Os ombros suportam o mundo” ( (“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus./ Tempo de absoluta depuração”…”Chegou um tempo em que não adianta morrer./ Chegou um tempo em que a vida é uma ordem./ A vida apenas, sem mistificação”, outro belíssimo fecho);  tem “Mãos dadas” com o famoso “Não serei o poeta de um mundo caduco” e o igualmente famoso “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,/ a vida presente”; tem “A noite dissolve os homens”, que começa com desesperança e termina com um toque fraternal: “Aurora,/ entretanto  eu te diviso, ainda tímida/ inexperiente das luzes que vais acender/ e dos bens que repartirás com todos os homens./ Sob o únido véu de raivas, queixas e humilhações,/ adivinha-se que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna./  O triste mundo fascista se decompõe ao contato de seus dedos,/ teus dedos frios, que ainda se não modelaram,/ mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório”; e, por fim, nessa linha, “Elegia 1938” (“Trabalhas sem alegria para um mundo caduco…”). Porém, depois de “Confidência de Itabirano”, o poema clássico de que mais gosto no livro é “Dentaduras duplas”:

“(…) Resovin! Hecolite!

Nomes de pessoas?

Fantasmas femininos?

Nunca: dentaduras,

engenhos modernos,

práticos, higiênicos,

a vida habitável,

a boca mordendo,

os delirantes lábios

apenas entreabertos

num sorriso técnico,

e a língua especiosa

através dos dentes

buscando outra língua

afinal sossegada (…)

 

Dentaduras duplas:

dai-me enfim a calma

que Bilac não teve

para envelhecer.

Desfibrarei convosco

doces alimentos,

serei casto, sóbrio,

não vos aplicando

na deleitação convulsa

de uma carne triste

em que tantas vezes

me eu perdi…”

Esssa é uma das facetas mais genais de Drummond, essa mordacidade, esse pequeno toque de patético teatral, com esses versos que “às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota” (lemos em “Explicação”, de Alguma Poesia. Como nos versos de “Noturno à janela do apartamento”, outro poema de Sentimento do Mundo, ainda que não tão famoso como os já referidos: “A soma da vida é nula./ Mas a vida tem tal poder:/ na escuridão absoluta,/ como líquido, circula”.

3) Comentários e citações (José)– O7-01-10

“Aprendo a cada sopro de vento que a vida vale o que dela não se cumpre”;

“Não sou trágica, prefiro rir do absurdo e renovar a existência como nolens volens noles volens noles volens. Não querer querer” (Marcia Tiburi, Magnólia)

Continuando as anotações sobre minha leitura de NOVA REUNIÃO- 23 livros de poemas, chego agora a um título, José, que não foi publicado originalmente de forma independente. Marcou a prmeira publicação de Drummond na José Olympio, a editora que congregava os medalhões da nossa literatura à época,  em 1942, e como a ele foram agregados  os  anteriores, abaixo comentados (Alguma Poesia, Brejo das Almas, Sentimento do Mundo) tinha-se a sensação de uma espécie de “Obra Completa”. Foi o primeiro dos muitos rearranjos e reuniões feitas pelo próprio autor dos seus livros. E, num sentido muito objetivo (o do mercado) essa edição da José Olympio pode ser considerada quase que o primeiro livro de Drummond para o público, já que as edições das coletâneas anteriores foram pagas pelo próprio autor e com um número irrisório de exemplares: até que 500 era um número expressivo para uma edição auto-financiada, como a do livro de estreia, Alguma Poesia (será que o selo “Edições Pindorama” lanço mais alguma coisa?), em 1930; já a cooperativa  “Os amigos do livro” só custeou 200 exemplares de Brejo das almas, em 1932; e pela Pongetti, foram 150 os exemplares de Sentimento do Mundo, em 1940. Então, além do prestígio e do rumor causado por “No meio do caminho”, quantos leitores brasileiros conheciam Drummond quando foi lançado o volume José ?

Sob essa perspectiva, poder-se-ia considerar que José como obra em si se enfraquece um pouco, já que parece apenas um apêndice (são poucos os poemas desse conjunto, apenas doze) a livros mais ambiciosos, “tempos fortes”. Ledo engano, esse título se demonstra o “tempo forte” de Drummond pós-Alguma Poesia (e até esse passo na sua vida e carreira), mostrando-se depurado, coeso e muito denso, superior –a meu ver, é claro– ao anterior, Sentimento do Mundo, que é demasiado irregular, e fornecendo uma síntese poderosa da poética drummondiana de então. Tomo como evidência dessa minha afirmação o número de poemas, nesse conjunto tão pequeno, que se tornaram paradigmáticos: nada menos que quatro. E que poemas! A começar pelo poema-título, um dos mais célebres e citados, a ponto de ter se transformado numa expressão proverbial de impasse, “E agora, José?”:

“(…) Se você gritasse,

se você gemesse,

se você tocasse

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse..

Mas você não morre,

você é duro, José!”

Tem o pateticamente lindo “A Bruxa”,onde o itabirano em quem foi inoculado o “alheamento do que na vida é porosidade e comunicação” nos diz de forma tão comovente:

“Nessa cidade do Rio,

de dois mihões de habitantes,

estou sozinho no quarto

estou sozinho na América (…)

 

De dois milhões de habitantes!

E nem precisava tanto…

Precisava de um amigo,

desses calados, distantes,

que leem verso de Horácio

mas secretamente influem

na vida, no amor, na carne (…)

 

E nem precisava tanto.

Precisava de mulher

que entrasse nesse minuto,

recebesse esse carinho,

salvasse do aniquilamento

um minuto e um carinho loucos

que tenho para oferecer (…)

 

Companheiros, escutai-me!

Essa presença agitada

querendo romper a noite

não é simplesmente a bruxa.

É antes a confidência

exalando-se de um homem.”

Esse é um dos grandes momentos de Drummond. Quando li Sobre heróis e tumbas, de Ernesto Sabato, pensei muito nesses versos ao me deparar com a solidão, a bruxa visceral rondando e assombrando macbethianamente os dois “heróis” do livro, o maduro Bruno e o jovem Martín numa Buenos Aires de milhões de habitantes.

Tem o magistral “O lutador”, o qual já se inicia com versos que todo mundo conhece:

“Lutar com palavras

é a luta mais vã.

Entanto lutamos

mal rompe a manhã.

São muitas, eu pouco.

Algumas, tão fortes

como o javali.

Não me julgo louco.

Se o fosse, teria

poder de encantá-las.

Mas lúcido e frio,

apareço e tento

apanhar algumas

para meu sustento

num dia de vida…”

E, para fecha a citação dos paradigmáticos (no sentido, de conhecidos e super-citados, até quando não se sabe o poema ao qual os versos pertencem) , “A mão suja” (não é à toa que me referi a Macbeth, mais atrás; curiosamente, poucos anos depois Sartre escreveria uma peça admirável chamada As mãos sujas, talvez sua maior realização no teatro):

“Minha mão está suja.

Preciso cortá-la.

Não adianta lavar.

A água está podre.

Nem ensaboar.

O sabão é ruim.

A mão está suja,

suja há muitos anos (…)

 

E era um sujo vil,

não sujo de terra,

sujo de carvão,

casca de ferida,

suor na camisa

de quem trabalhou.

Era um triste sujo

feito de donça

e de mortal desgosto

na pele enfarada.

Não era sujo preto

–o preto tão puro

numa coisa branca.

Era sujo pardo

pardo, tardo, cardo.

 

Inútil  reter

a ignóbil mão suja

posta sobre a mesa.

Depressa. cortá-la,

fazê-la em pedaços

e jogá-la ao mar!

Com o tempo,  a esperança

e seus maquinismos,

outra mão virá

para –transparente–

colar-se a meu braço.”

 Aqui a questão não é tanto o remorso que atormentava Lady Macbeth,mas uma variedade burguesa, de gente pacífica, que é simplesmente o “remordimento do imo-senso” ou a má-consciência que Sartre denunciou como a má fé do indivíduo burguês consigo mesmo, a inautenticidade. Afora isso, como em outros exemplos que apareceram aqui, nunca é demais falar da maestria ritmica de Drummond no uso das redondilhas maiores e menores. Parece fácil, porém…

No mais, temos  o “Edifício Esplendor”, que forneceu a epígrafe para Seminário dos Ratos, de Lygia Fagundes Telles (“Que século, meu Deus! Diziam os ratos,/E começavam a roer o edifício”), tem um momento que poderia ser uma fala de Riobaldo, em “Tristeza no Céu” (“…o momento entre tudo e nada,/ ou seja, a tristeza de Deus”), temos a “Rua do Olhar” (“Que funda esperança/ perfura o desgosto,/ abre um longo túnel/ e sorri na boca”).

Temos o extraordinário “Viagem na Família”, um dos pontos altos de José:

“(…) No deserto de Itabira

as coisas voltam a existir,

irrespiráveis e súbitas.

O mercado dos desejos

expõe seus tristes tesouros:

meu anseio de fugir,

mulheres nuas, remorsos…”

E por fim, esse belo e longo verso (pois Drummond não está só para redondilhas) livre de “Os rostos imóveis”: “Contemplo minha vida fugindo a passo de lobo, quero detê-la, serei mordido?”

 

4) A rosa do povo (1945) é um tour-de-force, poderosa reunião de 55 poemas, um livro um tanto irregular, com muitos poemas extraordinários e alguns bem discutíveis, além daquele “excesso de ênfase” e do toque melodramático que torna irregulares até poemas com trechos lindos. Mas havia um contexto muito forte (o Estado Novo, a Segunda Grande Guerra), havia o enlace passageiro de Drummond com o comunismo (e seu enlace permanente com o socialismo) e a poesia “proletária”. E ao mesmo tempo há a constelação itabirana, a presença poderosa da família, do atavismo mineiro. Atavismo e ativismo, duas faces de uma lírica que está em um dos seus momentos mais retorcidos, mais dilacerados. Percebe-se o diagnóstico do “mundo caduco”, mas também um lirismo voltado para a nostalgia, mesmo para aquilo que é “alheamento do que na vida é porosidade e comunicação”, que ficam evidente nos belíssimos poemas sobre o pai.

O título, que dá um tom muito mais “participante”, no sentido político, do que o conjunto da coletânea sugere no seu impacto total, se justifica  no poema “Mário de Andrade desce aos infernos”, um dos dezesseis textos paradigmáticos (é o penúltimo) do livro, escrito sob o impacto da morte de um homem que Drummond considerava seu mentor, um mestre de gerações:

“O meu amigo era tão

de tal modo extraordinário,

cabia numa só carta,

esperava-me na esquina,

e já um poste depois

ia descendo o Amazonas (…)

e para além dos brasis,

nas regiões inventadas,

países a que aspiramos,

fantásticos,

mas certos, inelutáveis,

terra de João invencível,

a rosa do povo aberta…

 

A rosa do povo despetala-se,

ou ainda conserva o pudor da alva?

É um anúncio, um chamado, uma esperança embora frágil, pranto infantil no berço?

Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe.

Mas há um ouvido mais fino que escuta, um peito de artista que incha,

e uma rosa se abre, um segredo comunica-se, o poeta anunciou,

o poeta, nas trevas, anunciou…”

Se a divisão entre o lamento por Mário e o anúncio da Rosa penultimiza a coletânea, o ainda mais longo poema “Canto ao homem do povo Charles Chaplin”, já pelo seu título indica as intenções populizantes e humanistas da poética drummondiana. Alguns podem considerar piegas, e mesmo a idéia de Chaplin, “homem do povo”, um tanto sentimental demais, porém me parece que o Chaplin que emerge desses versos é o tal “homem de todos os homens”, de que falava Sartre em As palavras, mais do que um herói positivo e redentor:

“Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,

andar aos mil num corpo só, franzino,

e ter braços enormes sobre as casas,

ter um pé em Guerrero e o outro no Texas,

falar assim a chinês, a maranhense,

a russo, a negro: ser um só, de todos,

sem palavra, sem filtro,

sem opala:

há uma cidade em ti, que não sabemos.”

Ou então:

“Colo teus pedaços. Unidade

estranha a tua, em mundo assim pulverizado.

E nós, que a cada passo nos cobrimos

e nos despimos e nos mascaramos,

mal retemos em ti o mesmo homem

aprendiz

bombeiro

caixeiro

doceiro

emigrante

forçado

maquinista

noivo

patinador

soldado

músico

peregrino

artista de circo

marquês

marinheiro

carregador de piano

apenas sempre entretanto tu mesmo,

o que não está de acordo e é meigo,

o incapaz de propriedade, o pé

errante, a estrada

fugindo, o amigo

que desejaríamos reter

na chuva, no espelho, na memória

e todavia perdemos.”

Se A rosa do povo termina dessa forma, “participante” (que aprofundam uma direção indicada por uma poema muito estranho, até mal resolvido, de Sentimento do Mundo, chamado “O operário no mar”, que exercita um certo messianismo em torno da figura do proletário: “Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre?”; o poema termina assim: “…quem sabe se um dia o compreenderei?”), o início aponta (ou simular apontar) noutra direção, com dois poemas metalíngüísticos excepcionais,e sempre muito citados, “Consideração do poema” e “Procura da poesia”.

No primeiro deles, o poeta começa afirmando: “Não rimarei a palavra sono/ com a incorrespondente palavra outono./ Rimarei com a palavra carne/ ou qualquer outra, que todas me convêm…”. Para terminar com um instigante: “… Tal como uma lâmina,/ o povo, meu poema, te atravessa.” E no meio um dos trechos mais bonitos de toda a obra drummondiana:

“Poeta do finito e da matéria,

cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,

boca tão seca, mas ardor tão casto.”

E  “Procura da Poesia” é sumamente irônico na sua auto-negação. Por que um poeta tomado pela “lição das coisas”, como Drummond, poderia afirmar de fato algo como:

“Não faças  versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina (…)

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.”

E, no entanto, é tudo verdade. É isso, há essa farpa de gelo no coração da poesia, há mesmo esse sol de indiferença porque ela incorpora a gota de bile, a careta de gozo ou de dor no escuro, e o shakesperiano “esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica”, mas os incorpora transformando-os em outra coisa, uma coisa inquietante, quase  alheia e aterradora:

“ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo”.

 É nesse poema que aparecem os seguintes versos, sempre muito citados:

“Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero (…)

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam (…)

Nao  force o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.

 

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?”

5) Ainda A Rosa do Povo (09.01.10)

“Eis meu pobre elefante

pronto para sair

à procura de amigos

num mundo enfastiado

que já não crê nos bichos

e duvida das coisas.” (“O elefante”, de A Rosa do Povo)

 Quem conferir os comentários anteriores , perceberá que de cada um dos livros que compõem o primeiro dos três volumes da NOVA REUNIÃO da poesia de Drummond pela Bestbolso eu destaquei um conjunto de “poemas paradigmáticos”, cujos versãos são famosos e amiúde citados, quase proverbiais (evidentemente,uns mais, outros menos. Em A Rosa do Povo (1945),  eu já destaquei quatro dos dezesseis “paradigmáticos”, justamente os dois primeiros da coletânea (“Consideração do Poema” e “Procura da Poesia”) e os dois últimos (“Mário de Andrade desce aos infernos” e “Carta ao homem do povo Charlie Chaplin”).

Célebre, também, é “A flor e a náusea”, que talvez sofra daquele “excesso de ênfase” que é muito da época em que os poemas dessa fase foram escritos, e que fazem com que o peso do tempo seja muito forte sobre eles, tornando-os datados em parte, embora sejam um documento importantíssimo sobre certa mentalidade que percorreu os meados do século XX, onde o “homem existencialista” se debatia entre as “situações”, os compromissos da contingência, além da polarização política:

“Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”

Mais problemático ainda é o irregular “Nosso tempo” (“Este é tempo de partido./ tempo de homens partidos”). É muito discursivo, porém tem ainda um apelo inegável:

“Calo-me, espero, decifro.

As coisas talvez melhorem.

São tão fortes as coisas!

 

Mas eu não sou as coisas e me revolto.

Tenho palavras em mim buscando canal,

são roucas e duras,

irritadas, enérgicas,

comprimidas há tanto tempo,

perderam o sentido, apenas querem explodir” (…)

 

(…) dentro do pranto minha face trocista,

meu olho que ri e despreza,

minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado

que polui a essência mesma dos diamantes.”

Acho extremamente discutível o final do poema:

“O poeta

declina de toda responsabilidade

na marcha do mundo capitalista

e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas

promete ajudar

a destruí-lo

como uma pedreira, uma floresta,

um verme.”

Implico com os dois últimos versos, gosto dos restantes, combativos. Está certo que há uma coerência nas três imagens, cada uma evocativa de um reino da natureza (o mineral, no caso da pedreira; o vegetal, no caso da floresta; o animal e biológico, no caso do verme). Comparar o mundo capitalista com uma pedreira, que se vai corroendo e escavando por dentro, até aí tudo bem, embora mesmo aí perpasse a sombra de uma depredação ecológica; mas uma floresta???, acho o símile particularmente infeliz; e mesmo o verme, apesar da conotação moral que damos à palavra, me parece algo muito insignificante para uma luta grandiosa, como a que Marx descreveu e prescreveu. É o caso de dizer que o poeta deixou-se levar para a facilidade, pelo menos neste caso.

Em compensação, uma das obras-primas supremas é o próprio epítome da exatidão e do uso preciso das imagens para chegar à máxima expressão, sem banalidades ou soluções fáceis e preguiçosas. Estou falando de “Áporo”, um poema-fetiche para os estudiosos de Drummond, um soneto fascinante, ilustrando o título com sua situação paradoxal:

“Um inseto cava

cava sem alarem

perfurando a terra

sem achar escape.

 

Que fazer, exausto,

em país bloqueado

enlace de noite

raiz e minério?

 

Eis que o labirinto

(oh razão, mistério)

presto se desata:

 

em verde, sozinha,

antieuclidiana,

uma orquídea forma-se.”

Ainda dentro da imagística que justifica o título do poema, temos “Anúncio da Rosa”, a Rosa da qual uma só pétala “resume auroras e pontilhismos”:

“Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?

Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido

quem em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem,

pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio (…)

 

(…) Já não vejo amadores de rosa.

O fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.

 

Aproveitem. A última

rosa desfolha-se.”

Temos também um dos poemas essenciais de Drummond, “Resíduo” (percebam as modulações do mantra repetitivo):

“De tudo ficou um pouco.

Do meu medo. Do teu asco.

Dos gritos gagos. Da rosa

ficou um pouco.

 

Ficou um pouco de luz

captada no chapéu.

Nos olhos do rufião

de ternura ficou um pouco

(muito pouco).

 

Pouco ficou deste pó

de que teu branco sapato

se cobriu. Ficaram poucas

roupas, poucos véus rotos

pouco, pouco, muito pouco.

 

Mas de tudo ficou um pouco (…)

 

Pois de tudo fica um pouco.

Fica um pouco de teu queixo

no queixo de tua filha.

Do teu áspero silêncio

um pouco ficou, um pouco (…)

 

E de tudo fica um pouco.

Oh abre os vidros de loção

e abafa

o insuportável mau cheiro da memória.

 

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,

e sob as ondas ritmadas

e sob as nuvens e os ventos

e sob as pontes e os túneis

e sob as labaradas e sob o sarcasmo

e sob a gosma e sob o vômito

e sob o soluço, o cárcere, o esquecido

e sob o espetáculo e sob a morte de escarlate

e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes

e sob ti mesmo e sob teus pés já duros

e sob os gonzos da família e da classe,

fica sempre um pouco de tudo.

Às vezes um botão. Às vezes um rato.”

Uma modalidade em que Drummond é um mestre é o poema narrativo e talvez sua obra-prima (que ganhou uma versão cinematográfica) seja “Caso do Vestido”, uma espécie de parábola de traição, aviltamento e perdão sob a ótica patriarcal, duma expressividade e de um dinamismo ritmico (são estrofes de dois versos) que, leitura após leitura, sempre impressionam (não dá para citar nada do poema, porque teria de transcrevê-lo todo, e é longo). Em contrapartida, ele também não faz feio no poema alegórico, basta dizer que o poema que vem depois do “Caso do Vestido” é o meu favorito em A rosa do povo: “O elefante”, que eu considero mais comovente, emocionante e humanista (e muito melhor realizado artisticamente) do que “Carta ao homem do povo Charlie Chaplin”:

“E já tarde da noite

volta meu elefante,

mas volta fatigado,

as patas vacilantes

se  desmancham no pó.

Ele não encontrou

o de que carecia,

o de que carecemos,

eu e meu elefante,

em que amo disfarçar-me.”

 Um exemplo forte do “visgo de Itabira” é “Retrato de família”:

“Esses estranhos assentados,

meus parentes? Não acredito (…)

Ficaram traços da família

perdidos no jeito dos corpos.

Bastante para sugerir

que um corpo é cheio de surpresas.

A moldura deste retrato

em vão prende suas personagens.

Estã ali voluntariamente,

saberiam –se preciso– voar.

Poderiam sutilizar-se

no claro-escuro do salão,

ir morar no fundo dos móveis

ou no bolso de velhos coletes.

A casa tem muitas gavetas

e papéis, escadas compridas.

Quem sabe a malícia das coisas,

quando a matéria se aborrece? (…)

Já não distingo os que se foram

dos que restaram Percebo apenas

a estranha idéia de família

viajando através da carne”. Serei rebarbativo, e chamarei a atenção para o óbvio: como são lindos estes dois últimos versos!

Enquanto a família viaja na carne (o corpo, cheio de surpresas, como é), “As lições da infância/ desaprendidas na idade madura”, noutro célebre poema de A rosa do povo: “Idade Madura” (quando publicou o livro, Drummond estava com 43 anos):

“Antes de mim outros poetas,

depois de mim outros e outros

estão cantando a morte e a prisão.

Moças fatigadas se entregam, soldados se matam

no centro da cidade vencida (…)

 

Ninguém me fará calar, gritarei sempre

que se abafe um praze (…)

transmitirei recados que não se ousa dar nem receber,

serei, no circo, o palhaço,

serei médico, faca de pão, remédio, toalha,

serei bonde, barco, loja de calçados, igrejas , enxovia,

serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais,

tudo depende da hora

e de uma certa inclinação feérica,

viva em mil qual um inseto.

 

Idade Madura em olhos, receitas e pés, ela me invade

com sua maré de ciências afinal superadas…”

A inclinação feérica que vive no poeta, qual um inseto, não impede que na abertura de “Versos à boca da noite”, ele afirme: “Sinto que o tempo sobre mim abate/ sua mão pesada. Rugas, dentes, calva…/ Uma aceitação maior de tudo,/ e o medo de novas descobertas”, uma experiência “comprada em sal, em rugas e cabelos”:

“Há muito suspeitei o velho em mim.

Ainda criança, já me atormentava.

Hoje estou só. Nenhum menino salta

de minha vida, para restaurá-la.”

 Possivelmente, o poema participante e solidário (ainda que solitário, naquela equação camusiana) mais famoso do livro seja “Carta a Stalingrado”,a elegia à resistência russa à invasão nazista:

“A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.

Os telegramas de Moscou repetem Homero.

Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo

que nós, na escuridão, ignorávamos.

Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,

na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,

no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,

na tura fria vontade de resistir.”

E, para encerrar o elenco dos poemas paradigmáticos, “Os últimos dias”,  que impressiona pela sua mistura muito bem dosada de ritmo, começando com estrofes e versos curtos e se espraiando para o verso livre, numa respiração meio Walt Whitman, que aparece em outros exemplos do livro, mas que aqui foi muito bem realizada:

“Que a terra há de comer.

Mas não coma já (…)

 

E cada instante é diferente, e cada

homem é diferente, e somos todos iguais.

No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra

o silêncio global, mas não seja logo (…)

 

E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,

submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor

rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,

mas não a quero negando as outras horas nem as palavras

ditas antes com voz firme,os pensamentos

maduramente pensados, os atos

que atrás de si deixaram situações.

Que o riso sem boca não a aterrorize,

e a sombra da cama calcária não a encha e súplicas,

dedos torcidos, lívido

suor de remorso.

E a matéria se veja acabar: adeus, composição

que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.

Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,

meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,

sinal meu no rsto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, ideia de justiça, revolta e sono, adeus,

vida aos outros legada.”


6) Após uma pequena pausa, mais A Rosa do Povo (15.01.10)

“Hora de delicadeza,

gasalho, sombra, silêncio.

Haverá disso no mundo?” (“Anoitecer”)

 Fiz uma pequena pausa, para ler outras coisas, após A Rosa do Povo, mas estou de volta a Drummond. No entanto, me dou conta de que A Rosa… é um livro tão rico e multifacetado que não posso me limitar apenas aos poemas paradigmáticos. Peço, portanto, a paciência dos meus leitores, para comentar mais alguns poemas. É o caso, por exemplo, de  “Carrego Comigo”:

“Ai, fardo sutil

que antes me carregas

do que és carregado,

para onde me levas?

Por que não me dizes

a palavra dura

oculta em teu seio,

carga intolerável? (…)

Se agora te abrisses

e te revelasses

mesmo em forma de erro,

que alívio seria (…)

Perder-te seria

perder-me a mim próprio.

Sou um homem livre

mas levo uma coisa…”

 Esse fardo pode ser a própria poesia, ou mesmo a liberdade, no sentido sartreano. E a visão quase fisiológica e, por isso mesmo, quase nauseante, da existência, em “Passagem do Ano”:

“Recebe com simplicidade este presente do acaso.

Mereceste viver mais um ano.

Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos (…)

A boca está comendo vida.

A boca está entupida de vida.

A vida escorre da boca,

lambuza as mãos, a calçada.

A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.”

 Gosto muito de “Uma hora e mais outra”:

“Há uma hora triste

que tu não conheces.

Não é a da tarde

quando se diria

baixar meio grama

na dura balança;

não é a da noite

em que já sem luz

a cabeça cobres

com o frio lençol

antecipando outro

mais gelado pano;

e também não é a

do nascer do sol

enquanto enfastiado

assistes ao dia

perseverar no câncer (…)

nem a pobre hora

da evacuação:

um pouco de ti

desce pelos canos.

Oh! adulterado,

assim decomposto,

tanto te repugna,

recusas olhá-lo:

é pior de ti?”

 Não tem como não citar pelo menos uma passagem, uma estrofe, de vários, vários poemas. É o caso desta,de “Nos áureos tempos”: “(…)ei-nos interditos/ enquanto prosperam/ os jardins da gripe,/ os bondes do tédio,/ as lojas do pranto”; ou de “Rola Mundo”: “Vi o coração de moça/ esquecido numa jaula./ Excrementos de leão,/ apenas. E o circo distante.” Ou esse famoso trecho de “Equívoco”: “Sou apenas um peixe, mas que fuma e que ri,/ e que ri e detesta.” Todos mostrando um  “Ritmo de poeta mais forte” se “inoculando” “nesta mão” (como lemos em “Edifício São Borba”):

“Até hoje perplexo

ante o que murchou

e não eram pétalas (…)

Tudo foi breve

e definitivo.

Eis está gravado

não no ar, em mim,

que por minha vez

escrevo, dissipo.” (“Ontem”)

Em “Episódio” aparece um boi que ainda não incorporou o tempo no significante, mas que já o prenuncia no significado:

“Manhã cedo passa

à minha porta um boi.

De onde vem ele

se não há fazendas?

Vem cheirando o tempo

entre noite e rosa.

Para à minha porta

sua lenta máquina.

Alheio à polícia

anterior ao tráfego

ó boi, me conquistas

para outro, teu reino.

Seguro teus chifres:

eis-me transportado

sonho e compromisso

ao País profundo.”

Poema narrativo, e admirável, é “Morte do leiteiro”. O leiteiro assassinado por um proprietário muito zeloso dos seus bens, “estatelado, ao relento,/ perdeu a pressa que tinha”:

“Da garrafa estilhaçada,

no ladrilho já sereno

escorre uma coisa espessa

que é leite, sangue… não sei.

Por entre objetos confusos,

mal redimidos da noite,

duas cores se procuram,

suavemente se tocam,

amorosamente se enlaçam,

formando um terceiro tom

a que chamamos aurora.”

Acho “Caso do Vestido” e “Morte do Leiteiro” mais bem solucionados do que o apólogo “Noite na Repartição”, o qual, entretanto, deve ter seus fãs, assim como o (para mim) indefensável e piegas “Consolo na Praia”, uma espécie de José escrito com o tom daqueles poetas do início do século que ainda guardavam resquícios do romantismo e de um singelo “tom popular” (Afonso Schmidt, Vicente de Carvalho, etc). Em  compensação, “O mito”, principalmente ao construir uma Musa burguesa, uma Fulana (“essa de burguês sorriso/ e tão burro esplendor”), e o irônico “Morte no avião” trazem a marca da drummondiana molecagem de Alguma Poesia, acrescida do rictus sardônico na boca da maturidade:

“a morte engana,

como um jogador de futebol a morte engana,

como os caixeiros escolhe

meticulosa, entre doenças e desastres.”

 Caso também de “Notícias”:

“a casa é pequena

para um homem e tantas notícias (…)

De ti para mim, apelos,

de mim para ti, silêncio (…)

Todo homem sozinho devia fazer uma canoa

e remar para onde os telegramas estão chamando”.

A onipresença itabirana, tantas vezes ressaltada:

“Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração (…)

Uma rua começa em Itabira, que vai dar

[ em qualquer ponto da terra (…)

Sou apenas uma rua

na cidadezinha de Minas…”

 Extremamente bonito é “América”. Afinal, de Whitman a Neruda, era um tema que os poetas tinham de enfrentar, cada um com sua modulação:

“Portanto, é possível distribuir minha solidão,

[torná-la meio de conhecimento.

Portanto, solidão é palavra de amor.

Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.

Ela fixa no tempo a memória

Que o pressentimento ou a ânsia

De outros homens que a pé, a cavalo,

[de avião ou barco, percorreram

[teus caminhos, América.”

 O “namoro” infeliz de Drummond com o comunismo subjacente em versos como os seguintes, de “Mas viveremos”:

“Já não distinguirei na voz da tarde

(trabalhadores, uni-vos) a menagem

que ensinava a esperar, a combater,

a calar, desprezar e ter amor (…)

Hoje quedamos sós. Em toda parte,

somos muitos e sós. Eu, como os outros.

Já não sei vossos nomes nem nos olho

na boca, onde as palavras se calam.”

 O motivo comparece em “Com o russo em Berlim”, ao falar da protéica cidade do fascismo e da opressão “oculta em mil cidades”:

“Essa cidade oculta em mil cidades,

trabalhadores do mundo, reuni-vos

para esmagá-la, vós que penetrais

[ com o russo em Berlim.”

 Outro poema marcante e belo é aquele do piano velho a obsedar e oprimir com o peso da sua presença toda uma família (“Onde há pouco falávamos”). Já tem esse verso que parece fugido do mundo de Clarice Lispector: “Nossa vontade é amor, o piano cabe em nosso amor”:

“(…) a matéria sarcástica, irredutível (…)

Uma família, como explicar? Pessoas, animais,

objetos, modos de dobrar o linho, gosto

de usar este raio de sol e não aquele, certo copo e não outro,

a coleção de retratos, também alguns livros,

certos costumes, jeito de olhar, feitio de cabeça,

antipatias e inclinações infalíveis: uma família,

bem sei, mas e esse piano?”

 E possivelmente o poema mais belo dessa minha pequena seleção de hoje é “Indicações”, grande momento drummondiano:

“Talvez certo olhar, mais sério,  não ardente,

que pousas nas coisas, e elas compreendem (…)

(…) Minas que espreita,

e espera, longamente espera tua volta sem som (…)

A família é pois uma arrumação de móveis, soma

de linhas, volumes, superfícies. E são portas,

chaves, pratos, camas, embrulhos esquecidos.

Também um corredor, e o espaço

entre o armário e a parede

onde se deposita certa porção de silêncio, traças e poeira

que de longe em longe se remove… e insiste (…)

Como saber? A princípio parece deserto,

como se nada ficasse, e um rio corresse

por tua casa, tudo absorvendo (…)

As coisas caem, caem, caem,

e o chão está limpo, é liso.”

 Noutra vertente, o poema-diálogo (provocação?) da obra drummondiana com a obra do seu maior rival (João Cabral de Melo Neto, a quem ele é dedicado), “Campo, chinês e sono” (mais difícil seria imagina um poema drummondiano de João Cabral):

“O chinês deitado

no campo. O campo é azul,

roxo também. O campo,

o mundo e todas as coisas

têm ar de um chinês

deitado e que dorme.

Como saber se está sonhando?

O sono é perfeito. Formigas

crescem. estrelas latejam,

peixes são fluidos (…)

Há um chinês

dormindo no campo. Há um campo

cheio de sono e antigas confidências (…)

O campo está dormindo e forma um chinês

de suave rosto inclinado

no vão do tempo.”

 Para encerrar, senão ficarei citando A Rosa do Povo indefinidamente, estes quatro versos de “Visão 1944” (que complementam outros quatro de “O medo”: “Assim nos criam burgueses./ Nosso caminho: traçado./ Por que morrer em conjunto?/ E se todos nós vivêssemos?”)

“Meus olhos são pequenos para ver

tudo que uma hora tem, quando madura,

tudo que cabe em ti, na tua palma,

ó povo! que no mundo te dispersas.”



 


De volta das férias ainda com Drummond

“O mais é barro, sem esperança de escultura”

(“Composição”, de Novos Poemas)

Não cumpri à risca, nas férias de janeiro, o plano de ler os 23 livros de poemas de Carlos Drummond de Andrade reunidos pela Best Bolso; sequer terminei o primeiro volume. Nem por isso desisti da empreitada, ainda que ela exija mais do que um mês. Vamos lá, então: durante janeiro, fui de Alguma Poesia à A rosa do povo. Do primeiro volume restavam, ainda, Novos Poemas; Claro Enigma & Fazendeiro do Ar.

      Novos Poemas (1948) é um pouco como José (embora bem menos expressivo). Era uma pequena reunião de inéditos, que introduzia a reedição de livros anteriores. Dos doze poemas, o mais famoso acabou sendo aquele que eu considero mais fraquinho (há outros bem fracos, como “Notícias  de Espanha”, o piegas “A Federico García Lorca”), mais representante de um certo Drummond “para incautos”, isto é, uma visão minúscula do poeta, a qual, se o tornou o mais popular dos nossos maiores modernistas, também o banalizou bastante (e deu origem a vários títulos discutíveis da sua produção): falo de “Canção amiga”:

“Eu preparo uma canção

em que minha mãe se reconheça”

mas como se a  mãe itabirana é de um universo onde predomina o “alheamento do que na vida é porosidade e comunicação”?; mesmo assim, nessa toada, ele continua:

“todas as mães se reconheçam,

e que fale como dois olhos” (…)

 

“Eu preparo uma canção

que faça acordar os homens

e adormecer as crianças.”

    Talvez  a justificativa desse poema-intróito esteja em “O arco”:

“Que quer a canção? erguer-se

em arco sobre os abismos.

Que quer o homem? salvar-se,

ao prêmio de uma canção”.

Mais interessante, inclusive pela sua fusão de poema-crônica-narrativa, é o seguinte, “Desaparecimento de Luísa Porto”:

“Somem tantas pessoas anualmente

numa cidade como o Rio de Janeiro

que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada.

Uma vez, em 1898

ou 9,

sumiu o próprio chefe de polícia

que saíra à tarde para uma volta no Largo do Rocio

e até hoje.”

Gosto também do último poema, “O enigma”, no qual uma “forma obscura” barra as pedras “caminhantes” (rolling stones & Drummond, uma combinação pertinente); as pedras conhecem “o perigo de cada objeto em circulação na terra”,mas a nada podem relacionar aquela forma e, por isso, elas “detêm-se. No esforço de compreender, chegam a imobilizar-se de todo. E na contenção desse instante, fixam-se as pedras — para sempre– no chão, compondo montanhas colossais, ou simples e estupefatos e pobres seixos desgarrados”. A máquina do mundo que movimentava as pedras sofre um represamento, elas se lastimam, mas “a Coisa interceptante não se resolve.Barra o caminho e medita, obscura”. Esse poema é o elo perdido entre “No meio do caminho” e “A máquina do mundo”. Este último pertence, e é o maior poema, da coletânea mais complexa e ambiciosa de Drummond, Claro Enigma (1951), dividida em 6 partes: “Entre lobo e cão” , Notícias amorosas”;”O menino e os homens”; “Selo de Minas”; “Os lábios cerrados” e “A  máquina do mundo”.  Apresentando temas similares, é um livro que parece querer se opor clara(enigmaticamente) ao clima do igualmente portentoso A rosa do povo e os livros à sua órbita, como Sentimento do Mundo e José: mais calcado no formal explícito, mais duro e mais “clássico”.

17/04/2011

POEMAS: Rilke, Borges, Vicente de Carvalho, Bilac, Seferis, Jorge de Lima, Drummond, Carlos Nejar, Hilda Hilst…

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RAINER MARIA RILKE
Fragmentos  das ELEGIAS DE DUÍNO
O sentir em nós, ai, é o dissipar-se.
Exalamos nosso ser; e de uma a outra ardência
Nos desvanecemos. Alguma vez nos dizem:
Circulas no meu sangue, este quarto, a primavera
Estão cheios de ti. Inutilmente procuram nos reter
Evolamos. E aqueles que são belos, oh, quem os
Deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto
E se dissipa. Tal o orvalho da manhã
E o calor do alimento, o que é nosso
Flutua e desaparece. Ó sorrisos, para onde?
E tu, olhar erguido, fugitiva onda ardente e nova
Do coração? Ai de nós, assim somos.
Estará o mundo impregnado de nós, pois que
Nele nos perdemos? E os Anjos
Retomarão apenas o que deles emanou?
Talvez um pouco de humano se encontre às vezes
Em seus traços, como o vago no rosto das mulheres
grávidas? Eles porém nada percebem
No turbilhão da volta a si mesmos.”

“E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem anjos nem homens.
E o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgasta-nos a face—a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que se amam?
Ai, apena ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos –talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.”
borges
O outro tigre (Jorge Luis Borges, El Hacedor)

Penso num tigre. A penumbra exalta
A vasta biblioteca laboriosa
E parece afastar suas estantes;
Forte, inocente, ensangüentado e novo,
Ele irá por sua selva e sua manhã
E deixará seu rastro na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Não há em seu mundo nomes nem passado,
E nem porvir, só um instante determinado)
E vencerá as bárbaras distâncias,
Farejará no enleado labirinto
De todos os odores o da aurora
E o olor deleitável do cervo;
Em meio às riscas do bambu decifro
Suas riscas e pressinto a ossatura
Sob a pele esplêndida que vibra.
Debalde interpõem-se os convexos
Mares e desertos do planeta;
E desta morada de um remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre das beiras do Ganges.
Corre a  tarde em minha alma e conjecturo
Que o tigre vocativo do meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários tropos- lugares comuns
E de reminiscências da enciclopédia,
Não o tigre fata, a aziaga jóia
Que sob o sol ou a cambiante lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala
Sua rotina de ócio, amor e morte.
A esse tigre dos símbolos opus
O verdadeiro, o de sangue quente,
O que dizima a manada de búfalos
E a três de agosto de 59 (Hoje),
Estende sobre o prado uma pausada
Sombra, mas só o fato de nomeá-lo
E de conjecturar-lhe a circunstância
Da arte o faz ficção e não a criatura
Vivente, dessas que andam pela Terra.
Procuraremos um terceiro tigre.
Este, como os demais, será uma forma
De meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além dessas mitologias,
Percorre a Terra. Bem o sei, mas algo
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Pelo tempo da tarde na procura
Do outro tigre, o que não está no verso.

NOITE DE SÃO JOÃO (de Fervor de Buenos Aires)
O poente implacável em esplendores
quebrou a fio de espada as distâncias.
Suave como um salgueiral está a noite.
Vermelhos faíscam
os redemoinhos das grandes fogueiras;
lenha sacrificada
que se dessangra em altas labaredas,
bandeira viva e cega travessura.
A sombra é aprazível como uma lonjura;
hoje as ruas lembram
que foram campo um dia.
Toda a santa noite a solidão rezando
seu rosário de estrelas esparramadas.
(trad. Glauco Mattoso)
180px-Vicente_Carvalho
UMA IMPRESSÃO DE DON JUAN
(Vicente de Carvalho)
Gastei no amor vinte anos –os melhores,
Da minha vida pródiga: esbanjei-os
Sem remorso nem pena, nem galanteios,
Colhendo beijos, desfolhando flores.
Quentes olhares de olhos tentadores,
Suspiros de paixão, arfar de seios,
Conheci-os, buscaram-me, gozei-os…
Li, folha a folha, o livro dos amores.
Quanta lembrança de mulher amada!
Quanta ternura de alma carinhosa!
Sim, tanto amor que me passou na vida!
E nada sei do amor… Não, não sei nada,
E cada rosto de mulher formosa
Dá-me a impressão de folha inda não lida.
OlavoBilac
A VIA LÁCTEA (sétimo soneto)
Olavo Bilac
Não têm faltado bocas de serpentes
(Dessas que amam falar de todo o mundo
E a todo o mundo ferem, maldizentes)
Que digam: Mata o teu amor profundo!
Abafa-o, que teus passos imprudentes
Te vão levando a um pélago sem fundo…
Vais te perder! -E arreganhando os dentes
Movem para o teu lado o olhar imundo:
-Se ela é tão pobre, se não tem beleza
Irás deixar a glória desprezada
E os prazeres perdidos por tão pouco?
Pensa mais no futuro e na riqueza!
-E eu penso que afinal… Não penso nada:
Penso apenas que te amo como um louco!
ANTÍGONA
A terra treme. Rola o trovão. Brilha o espaço.
Chega Édipo a Colono, em andrajos, imundo,
Sombra ansiosa a fugir do próprio horror profundo,
Ruína humana a cair de miséria e cansaço.
Mas, quando o ancião vacila, órfão da luz do mundo,
Antígona lhe estende o coração e o braço,
E, filha e irmã, recolhe ao maternal regaço
O rei sem trono, o pai sem honra, moribundo.
É o ninho (a terra treme…) amparando o carvalho,
A flor sustendo o tronco! Édipo (o espaço brilha…)
Sorri, como um combusto areal bebendo o orvalho.
É o fim (rola o trovão…) da miseranda sorte:
O cego vê, fitando o céu do olhar da filha,
Na cegueira o esplendor, e a redenção na morte.
SEFERIS
Uma palavra sobre o verão
(Giorgios Seferis,  poeta grego, Nobel 1963)
Eis que voltou o outono. O verão
Como um caderno em que cansamos de escrever, lá fica
Cheio de riscos e garatujas,
De pontos de interrogação nas margens. Eis que voltou
A estação dos olhos que miram
Nos espelhos, sob as lâmpadas,
Lábios cerrados, homens estrangeiros
Nos quartos, nas ruas, sob as pimenteiras,
Enquanto os faróis dos carros matam
Milhares de máscaras macilentas.
Eis-nos de volta. Partimos para cada vez voltar
Na solidão, um punhado de terra em nossas mãos vazias.
E não obstante, amei outrora o bulevar Syngros,
A dupla curvatura da grande avenida
Que milagrosamente nos leva para o mar
Eterno a fim de que nos lavemos dos pecados.
Amei homens desconhecidos
Encontrados bruscamente ao cair do dia
Que falavam consigo mesmos como capitães de uma frota afundada,
Sinais de que o mundo é vasto.
E não obstante, amei as ruas daqui e estas colunas
Ainda que nascido na outra margem, junto
Das canas e dos juncos, das ilhas
Cuja areia guarda água para a sede
Do remador: ainda que nascido
Junto do mar que desenrolo e enrolo entre meus dedos,
Quando estou fatigado– não sei mais onde nasci.
Resta ainda a essência amarela, o verão
E tuas mãos roçando medusas na água,
Teus olhos abertos de repente, os primeiros
Olhos do mundo, e as grutas marinhas,
Pés desnudos no solo vermelho.
Resta ainda o efebo louro de pedra,o verão,
Um pouco de sal seco no oco de um rochedo,
Algumas agulhas de pinheiro após a chuva
Ruivas e dispersas como um filete em fiapos.
Não compreendo esses rostos, não os compreendo;
Imitam às vezes a morte e depois iluminam-se de novo
Com uma vida rasteira de vermes luzentes,
Com um esforço repuxado, sem esperança,
Como apertado entre duas rugas
Entre duas mesas de café gordurosas…
(…) Resta ainda o deserto amarelo, o verão,
Vagas de areia em fuga até o último círculo
Um ritmo de tambor lancinante, interminável
Olhos inflamados afundando no sol,
Mãos com ímpetos de pássaros riscando o céu
Saudando filas de mortos em duelos,
Perdidas num ponto que me ultrapassa e me governa,
Tuas mãos que tocam a onda livre.
(trad. Darcy Damasceno)
caricatura de jorge de lima
Anunciação & Encontro de Mira-Celi (quadragésimo poema)
(Jorge de Lima)
Quando sentires tua carne incendiar-se
e a labareda divina altear-se no ar,
desfralda tua bandeira neste tope*,
que logo virão dos quatro pontos cardeais
os conspiradores que precisas;
pois tua língua não pode continuar a que herdaste
nem os teus homens são os que hoje te cercam.
Antes que os tambores ensurdeçam teus ouvidos
e teu passo se cadencie num galope constante,
vê que a dor do mundo deseja redimir-se em teu canto.
É certo que te esmagarão como se esmaga uma asa.
Mas as penas que espalhares no chão
podem voar ao vento
e baixar com sua sombra mínima
sobre qualquer ovo perdido dentro dos ninhos abandonados.
Entre a noite e o mar visitarás de novo
os litorais desertos, e semearás teu pólen.
Hão de cair sobre ele as chuvas que lavam as tempestades,
e se os homens não quiserem ouvir-te,
ressurgirás para as abelhas ou para as solidões
em que Deus ouvirá as palavras do Início.
drummondclaro enigma
Relógio do Rosário (de Claro Enigma)
(Carlos Drummond de Andrade)
Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva
pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,
que se entrelaça no meu próprio choro,
e compomos os dois um vasto coro.
Oh dor individual, afrodisíaco
selo gravado em plano dionisíaco,
a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,
dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,
convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,
prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,
dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,
dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa
tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,
dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,
dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!
Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?
Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?
O amor elide a face… Ele murmura
algo que foge, e é brisa, e fala  impura.
O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta
que não macule ou perca sua essência
ao contato furioso da existência.
Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,
a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.
Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário
já cinza se concentra, pós de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.
carlosnejaro chapeu das estações
“o barulho de existir:
um cão dentro
de mim

atravesso
como a um pátio:
o barulho de existir

A CHUVA DO VELHO TESTAMENTO (trechos)
(Carlos Nejar, O chapéu das estações)
“Quis possuir a alma,
possuí-la um instante,
numa respiração
que a conjugasse
em suas potências
e fosse alma
em corpo atravessada.
Quis possuir a alma,
mas de súbito
é uma conspiração
de antigos súditos
que a obriga sucumbir.
E é luz varando luz
de inerte vinco.
Quis possuir a alma,
a rebelião mais pura
de ser Deus
no Deus que me conjura.
Quis possuir a alma
como se um arado empurrasse
na soga deste instante
o corpo amado
para o corpo amante.
Quis possuir a alma
e a vislumbrei inteira
e alheia corpo adentro
como se alguma barca
fosse somente vento”
“Fui condenado ao corpo.
Como isolar a alma,
se está morto?
Como isolar a alma
se ela é corpo
e sabe conluiar os elementos
de sua retração, seu desespero?
Mas o corpo transgride
onde fora trancado.
E é vivo o condenado,
mesmo se a alma já morreu
nos arredores.
Se o corpo não é seu,
a alma estende
a renitência a outras,
entre as formas do céu
e dos planetas.
Eu tive a rebelião
de ser um corpo.
Fui condenado a Deus,
a seu estado mais feroz,
aquele que, de amor,
as coisas tremem
e as vozes não conseguem separar.
Fui elevado ao corpo”
********************
Trecho de A árvore do mundo (do mesmo autor)
“O humano é custo,
empresa que se apresta
no deter
e detendo, cobra,.
E sobrando,
se gasta.
Mais preciso:
a parede do tempo
de estar vivo.
A parede sem nível
do possível.
Salvar? Mas estou salvo,
sou matéria.
Nenhum impedimento de subir,
exceto a condição de ser humano.
Mas esta é de romper.
Um osso, um plasma, uma epiderme,
o susto.
Quanto nos apanha, nos encerra
a popa de uma nau
que é apenas alma.”
hilda furacão hilst
HILDA HILST: Cantares de perda e predileção
“Vida da minha alma:
Recaminhei casas e paisagens
Buscando-me a mim, minha tua cara.
Recaminhei os escombros da tarde
Folhas enegrecidas, gomos, cascas
Papéis de terra e tinta sob as árvores
Nichos onde nos confessamos, praças
Revi os cães. Não os mesmos. Outros
De igual destino, loucos, tristes,
Nós dois, meu ódio-amor, atravessando
Cinzas e paredões, o percurso da vida.
Busquei a luz e o amor. Humana, atenta
Como quem busca a boca nos confins da sede.
Recaminhei as nossas construções, tijos
Pás, a areia dos dias
E tudo que encontrei te digo agora:
Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.
O arquiteto dessas armadilhas.”
Hilda_Hilst_01
HILDA HILST: ODES MÍNIMAS
“Perderás de mim
Todas as horas
Porque só me tomarás
A uma determinada hora
E talvez venhas
Num instante de vazio
E insipidez
Imagina-te o que perderás
Eu que vivi no vermelho
Porque poeta, e caminhei
A chama dos caminhos
Atravessei o sol
Toquei o muro de dentro
Dos amigos
A boca nos sentimentos
E fui tomada, ferisa
De malassombros, de gozo
Morte, imagina-te.”
 
 
 

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