MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

16/06/2015

NEBULOSA E CONSTELAÇÃO: modesta carta celeste dos motivos joyceanos em “Stephen Herói” e “Os Mortos”

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[uma versão do texto abaixo foi publicada no LETRAS IN.VERSO E RE.VERSO em 16 de junho de 2015, VER: http://letrasinversoreverso.blogspot.com.br/2015/06/a-cristalizacao-do-universo-de-joyce.html]

«__ Mas, seguramente, você tem opiniões políticas, homem!

__ Vou pensar a respeito. Eu sou um artista, você não percebe? »

1-NEBULOSA

Durante a primeira década do século XX, quando tinha vinte e poucos anos, James Joyce produziu os contos que, publicados somente em 1914, formam a coletânea Dublinenses; por essa mesma época também se dedicava a um imenso manuscrito, Stephen Herói [Stephen Hero], no qual inovava radicalmente uma das linhas mais fortes da ficção europeia, a do “romance de formação”.

Ao contrário de Goethe (o ciclo Wilhelm Meister) ou Keller (O Imaturo Henrique), não se tratava de um autor já vivido meditando e recapitulando o aprendizado de um jovem (geralmente, um artista), e sim do próprio autor em formação relatando esse processo enquanto o vivia. E não através da mera transposição autobiográfica, como é comum (ainda mais em escritores iniciantes), pois a Joyce pouco interessava o anedótico pessoal (pelo menos, nesse período de composição do romance de estreia), planejando que avultasse o lado “épico” da escolha do destino como poeta (daí o altissonante “herói” do título), «uma inteligência que tanto amava o riso quanto o combate»[1].

A forma linear adotada revelou-se pouco funcional e Joyce reescreveu todo o material de forma a aglutinar diversas experiências, no passado e no presente, de seu protagonista nos cinco densos capítulos que formam Um retrato do artista quando jovem, que, aparecendo em 1916, encerra a fase inicial da prosa joyceana.

O autor de Ulysses morreu em 1941, com a aura de maior e mais ousado escritor de sua época. Três anos depois, publicou-se Stephen Herói. Apesar de alguns poucos acréscimos em razão do aparecimento de outros trechos, até hoje seu status é o de um longo fragmento que sobreviveu aos inúmeros deslocamentos da família Joyce, começando no meio do capítulo 15 (e mesmo assim, logo a seguir faltam duas páginas, e depois é que começa uma leitura mais regular) e terminando após algumas páginas do capítulo 26. Os onze capítulos representam cerca de um terço do material original.

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Aqueles que costumam ler meus textos sabem que tenho horror a “achados de especialistas”, fragmentos póstumos de obras que não foram consideradas dignas de publicação pelo autor quando vivo. E realmente, no estágio em que se encontrava a redação de Stephen Herói, seu criador fez muito bem em deixá-lo de lado e reescrever tudo com outro método (o que resultou numa de suas obras-primas). A narrativa é frouxa; a estrutura, informe (mesmo dentro dos capítulos sequenciais que sobreviveram); o estilo, muitas vezes aborrecido.

Ainda assim, trata-se de um caso defensável de publicação póstuma, pela riqueza bruta ali contida e pelo que apresenta de revelador da verdadeira formação de Joyce, no amplo sentido do termo, e também da cristalização de seu universo.

No capítulo 15 o encontramos no primeiro ano da universidade, sofrendo as agruras da pobreza (sua família foi progressivamente arruinando-se), a tacanhice do seu meio, ainda mais por injunções religiosas (além do catolicismo onipresente, ele estuda numa instituição jesuítica). Ademais, ele rejeita o patriotismo exacerbado, que condena o uso da língua inglesa, e exige o estudo e a prática do gaélico, a “autêntica língua nacional”. Esse ponto era tão nevrálgico para Joyce, que voltará como um dos motivos centrais de Os mortos. Ali, o protagonista, Gabriel Conroy, colaborador de um jornal inglês, é admoestado por uma companheira de geração, miss Ivors, que o xinga de “anglófilo”:

«__Você não precisa praticar o seu próprio idioma, o irlandês?

__ Bom, disse Gabriel, a bem da verdade, o irlandês não é o meu idioma. »[2]

Em Stephen Herói acompanhamos o percurso de perda de fé do protagonista (que rende uma cena pungente com a mãe[3]), sua procura de companheiros intelectuais que fujam das limitações provincianas (isso ainda aparecerá em Ulisses, onde Stephen também é um dos personagens principais), e a concepção de uma teoria sobre arte, a partir da sua admiração por Ibsen, o grande dramaturgo de Um inimigo do povoCasa de Bonecas Peer Gynt, que, a essa altura, para Stephen-James Joyce era o Dante da nossa época, afirmação escandalosa para um ambiente dominado por padres e por interditos morais.

Um dos grandes incidentes do livro é a leitura de um ensaio escrito pelo jovem herói para expor suas ideias estéticas, e que é combatido e ridicularizado quase da mesma forma como foram recebidas as primeiras conferências psicanalíticas de Freud. Entre essas ideias, uma se destaca e subverte o estereótipo do Joyce vanguardista e experimentador linguístico (uma concepção que ainda vige, infelizmente). Ele opta por ser um artista “clássico”: «O classicismo não é o estilo de uma era determinada ou de um país determinado: é um estado constante da mente artística. É um temperamento que mescla segurança, satisfação e paciência».

Tendo em vista a carreira posterior desse gênio da literatura, trata-se de um (auto) diagnóstico para lá de exato.

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2-CONSTELAÇÃO

Fico sempre assombrado com a idade em que certos textos foram escritos. É o caso de Os Mortos (The Dead), último e mais famoso relato de Dublinenses. James Joyce estava lá pelos 25 ou 26 anos ao escrevê-lo, naquela primeira década do século XX (nascera em 1882) em que se dedicava à criação da versão inicial do seu romance de formação, que só seria publicado, depuradíssimo, como Um retrato do artista quando jovem (dois anos antes, ele conseguira publicar, tardiamente, os quinze contos de Dublinenses).

Se Stephen Herói resultava informe, desagregado, frouxo enquanto narrativa, os contos daquela época mostram que Joyce poderia ficar na história como um dos grandes do gênero, independentemente da sua reputação futura, mais calcada na ruptura e na ousadia formal. São textos perfeitos, com um sopro do teatro de Ibsen neles[4], mas perfeitamente alinhados a grandes mestres “atmosféricos” (Maupassant, Turgueniev, Tchekhov) do gênero.

Assim como A festa de Babette, uma das “anedotas do destino” de Isak Dinesen, Os Mortos trata das pequenas ironias e truques da fatalidade, do trançamento dos fios do cotidiano. Com seu espantoso senso do detalhe material, Joyce narra o pequeno baile tradicional na casa das tias solteironas do protagonista, Gabriel Conroy, as irmãs Morkan (e sua sobrinha, também solteirona) Mary Jane, na época do Natal. Apesar de se sentir um tanto “estrangeiro” e superior ao ambiente, por ser um intelectual mais “continental” do que arraigadamente irlandês, Gabriel tem muito carinho pelas tias, um sentimento cálido pelo pitoresco dublinense que elas representam, e no discurso obrigatório que é incitado exalta a “hospitalidade” como uma qualidade nativa que quase não encontra eco no resto da Europa.

O próprio Gabriel não se destaca de forma tão evidente na tessitura narrativa que dá conta dos eventos da festa, pois ali são muitos os centros de atração, como um microcosmo da “gente de Dublin”, não numa primeira leitura.

Mas, ao se reler o texto, vemos como Joyce calcula cada momento da festa de uma maneira a preparar o extraordinário clímax, centrado no casal Conroy, em que a materialidade toda aí narrada se torna insubstancial. E aí, durante a releitura, o leitor se dá conta de como o casal praticamente não é visto junto e mal interage durante a festa, tal como nos é narrada. Há um pequeno episódio de hostilidade, em que ele dá uma resposta atravessada à esposa, e há um momento de contemplação: no andar de baixo, a vê encostada na escada, no andar de cima, enlevada com uma canção, da qual ele mal ouve a letra, cena que é reelaborada na mente dele como motivo para um quadro, ou seja, é como se a esposa e o seu momento de enlevo fossem um “motivo” artístico.

Apesar do carinho e respeito das tias e dos demais presentes, Gabriel é alvo de vários “foras” ao longo da narrativa, sempre de forma a frustrar um intento da parte dele, onde ele parece querer mostrar o melhor da sua natureza. Faz uma observação entre jocosa e paternal à jovem serviçal da festa, Lily, e dela recebe uma áspera réplica, dança uma quadrilha com a Srta. Ivors, sua contemporânea de geração, fervorosa patriota («o grande broche que trazia preso à parte da frente de seu colarinho tinha um emblema irlandês e um lema gaélico»[5]), que o espicaça como intelectual e escritor anglófilo, quase um traidor, colaborando com um jornal “inglês” e desconhecedor do idioma da terra natal. É quando ele dá a famosa resposta, de que o “gaélico” (o irlandês) não é a sua língua.

A Srta. Ivors insiste, convidando-o a excursionar pelas Ilhas Aran no verão. Gabriel declina (ele, que se gabara de conhecer “não pouco da Europa” em outro momento da festividade):

«E o senhor não tem que visitar a sua própria terra—continuava a senhorita Ivors—, que o senhor mal conhece, ou o seu próprio povo, e o seu próprio país?

__ Ah, para ser sincero—retorquiu Gabriel subitamente—, eu estou cheio do meu país, cheio!

__ Por quê?—perguntou a Srta. Ivors.

    Gabriel não respondeu, pois estava fervendo depois de sua reação.

__ Por quê?—repetiu a Srta. Ivors. »

    Ao comentar com a esposa a proposta de excursão para as Ilhas Aran e constatar o entusiasmo dela, é que ele dá a resposta atravessada já mencionada. O ponto a se destacar aqui é que o casamento de Gabriel com a bela Gretta não acontecera sem tensões. Para a mãe de Gabriel, ela não passava de uma camponesa sonsa, que havia realizado um casamento além da sua condição social (esse desnível entre casais protagonistas é recorrente em Joyce). E essa lembrança vem à tona na festa justamente por conta dessas provocações.

Findando a festa, após contemplar Gretta ouvindo a canção e compondo uma “figura de quadro”, amortece em Gabriel a tensão entre sua “anglofilia” (que o afasta até da esposa) e sua condição de “dublinense”. E na ida para o hotel, com a magia da neve e das lembranças de momentos “encantados” do casal, desde a lua-de-mel, vai emergindo nele um furor de desejo por Gretta, tanto que ele não vê a hora em que estejam a sós.

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Se podemos aproximar a parte da festa do modo cinematográfico (em que tantos mortos são evocados, de uma forma nostálgica e num misto de respeito e irreverência), é evidente que Joyce teatraliza ao máximo a parte final, ao concentrar-se no casal. Gabriel dispensa até a luz da única vela que o idoso funcionário do hotel trouxe até o quarto, e temos apenas a luz que vem dos lampiões da rua na madrugada de neve intensa. Não quero entrar em mais detalhes, mas é nesse momento em que ele já ruminou vários momentos íntimos do seu casamento, e o desejo está mais forte do que nunca, em que ele calou as provocações e acicates das suas posturas éticas e intelectuais, que Gretta resolve confessar que a canção ouvida na festa fê-la lembrar-se de um rapaz, Michael Furey, antiga paixonite adolescente, que “morrera por ela”. Eis aí um morto para a qual não há solução respeitosa ou irreverente, quase tão insidioso quanto o amante fantasmático da esposa do Fridolin de Breve romance de Sonho, de Arthur Schnitzler. Como vencer um amante morto? Que figura de homem cunhada por Gabriel em sua trajetória de marido e intelectual tem a virtude e o ímpeto de se impor a essa figura do passado? Pois o passado não é apenas o território das perdas, no sentido de mortes pessoais, mas das perdas, no sentido de possibilidades (o casal Bloom tematizará tudo isso com muito mais nuances, mais tarde, o espantoso é Joyce levantar tais questões na idade que tinha, e ele ainda tão autocentrado, apesar de já se valer dos benefícios que Nora trará a ele no sentido de libertá-lo desse emparedamento, tão visível em Stephen Herói, em Um retrato do artista quando jovem, e mesmo na primeira parte de Ulisses).

Não é à toa que uma das pedras-de-toque para Os Mortos fosse uma das Irish Melodies de Thomas Moore (“O ye dead”):

«É verdade, é verdade, somos sombras frias e pálidas

E os belos e bravos a quem amamos na terra se foram;

       Mas mesmo assim na morte,

       Tão doce o hálito vivo

Dos campos e flores sobre os quais caminhamos na nossa juventude,

        Que embora aqui condenados vamos

        Congelar nas neves de Hecla,

Saborearíamos isso por um momento, pensando que vivemos outra vez! »

  É bom não perder de vista que esse amor da juventude de Gretta é justamente de uma região próxima àquela que despertara nela o entusiasmo em revisitar (para irritação de Gabriel) e que ela viu pela última vez Michael Furey na neve. Ou seja, todos os elementos e leitmotivs de Os Mortos se ligam e se entretecem nos mínimos detalhes da trama, um tipo de composição (embora em ponto pequeno) que nortearia toda a futura produção joyceana.

Sobre essas reverberações, Richard Ellmann em sua magnífica biografia comenta: «Os Mortos começa com uma festa e acaba com um cadáver, assim misturando funferal, como na vigília de Finnegan». E num trecho posterior: «Na sua lírica, melancólica aceitação de tudo o que a vida e a morte oferecem, é uma chave na obra de Joyce. Existe aquela situação básica de adultério, real ou imaginário, que existe em toda ela. Há a comparação joyceana especial de detalhe específico elevado a uma intensidade rítmica. O objetivo final da história, a dependência mútua entre vivos e mortos, é algo sobre o que ele meditou bastante desde sua juventude».

E há a célebre e considerada enigmática frase do último parágrafo: «Era chegada a hora de ele partir em sua jornada rumo oeste». Esse “rumo oeste” seria a indicação da curva que a vida tinha dado, em direção à morte, ou à consciência da mortalidade, pelo menos, no seu sentido mais pungente? Ou da aceitação de sua pátria, da qual deveria forjar a consciência incriada? Seu retorno à Ítaca para recuperar, enfim, a mulher?[6]

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NOTAS

[1] Utilizo a tradução de José Roberto O´Shea, publicada pela Hedra.

[2] Em Stephen Herói, lemos: « O grito de alerta era Fé e Pátria, palavras sagradas naquele mundo de entusiasmos engenhosamente inflamáveis».

Madden, camarada do protagonista, procura justificar para ele essa proximidade entre nacionalismo e religião: «Se a menor infidelidade fosse elevada as pessoas se afastariam e por isso os mentores desejavam tanto quanto possível, trabalhar de braços dados com os sacerdotes. Stephen expressou a objeção de que esse trabalho de braços dados com os sacerdotes tinha diversos vezes arruinado as chances de revoluções. Madden concordava: mas ao menos agora os sacerdotes estavam do lado do povo.

__ Você percebe—disse Stephen—que eles incentivam o estudo de irlandês para que os rebanhos possam ser protegidos dos lobos da descrença; eles acham que isso propicia uma oportunidade para isolar o povo num passado de fé literal, implícita?

__ Mas na realidade o nosso camponês não tem o que ganhar com a Literatura Inglesa.

__ Asneira!

__ Ao menos, a moderna. Você mesmo está sempre se queixando…

__ O inglês é o veículo para o Continente.

__ Nós queremos uma Irlanda irlandesa.

__ Acho que você não se importa que um sujeito expresse banalidades desde que o faça em irlandês.

__ Eu não concordo muito com as suas ideias modernas. Nós nada queremos dessa civilização inglesa.

__ Mas a civilização de que você fala não é inglesa… é ariana. As ideias modernas não são inglesas; apontam o caminho de uma civilização ariana.

__ Você quer que os nossos camponeses imitem o materialismo grosseiro do camponês de Yorkshire?

__Parece até que o país é habitado por querubins. Que diabo! Eu é que não vejo grandes diferenças entre camponeses: para mim, todos se parecem, como um grão de ervilha se parece com outro grão de ervilha. Talvez o camponês de Yorkshire seja mais bem nutrido. »

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[3] «__ Nunca pensei—disse a mãe—que a coisa chegaria a este ponto… que um filho meu perderia a fé.

__Mas a senhora já sabe disso há algum tempo.

__ Como eu poderia saber?

__ A senhora sabia.

__ Eu desconfiei que algo estivesse errado mas nunca pensei…

__ E mesmo assim a senhora queria que eu recebesse a Santa Comunhão!

__ É claro que agora você não pode comungar. Mas eu achei que você fosse cumprir o seu dever de Páscoa, como tem feito todos os anos até agora. Não sei o que o desviou, a menos que tenham sido aqueles livros que você lê (…) Você foi educado por jesuítas, num lar católico…

__ Lar muito católico!

__ Nenhum dos seus antepassados, seja do lado do seu pai, seja do lado do meu, tem nas veias uma gota de sangue que não seja católica.

__Bem, eu serei o primeiro da família.

__ Isso é resultado de excesso de liberdade. Você faz o que quer e acredita no que quer. »

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[4] «É preciso que se diga direta e imediatamente que àquela época Stephen sofreu a influência que mais lhe marcou a vida. O espetáculo do mundo conforme apresentado por sua inteligência com todos os detalhes sórdidos e enganosos alinhado ao espetáculo do mundo apresentado pelo monstro que o habitava, agora guindado a um estágio razoavelmente heroico, também costumava levá-lo a um desespero tão súbito que só podia ser aplacado por meio da composição de versos melancólicos. Estava prestes a considerar os dois mundos alheios entre si—por mais dissimulados que fossem ou por mais que expressassem o mais completo pessimismo—, quando encontrou, valendo-se de traduções pouco procuradas, o espírito de Henrik Ibsen. Compreendeu tal espírito instantaneamente (…) as mentes do velho poeta nórdico e do jovem celta inquieto se encontravam num momento de radiante simultaneidade. Stephen foi cativado primeiramente pela nítida excelência da arte: não demorou muito para ele afirmar, mesmo com escasso conhecimento do tratado, obviamente, que Ibsen era o melhor dramaturgo do mundo (…) Ali e não em Shakespeare ou Goethe estava o sucessor do primeiro poeta dos europeus, ali, somente como em Dante, uma personalidade humana se unira a um estilo artístico que em si mesmo constituía quase um fenômeno natural: e o espírito da época promovia uma união mais imediata com o norueguês que com o florentino».

[5] Utilizo a tradução de Caetano W. Galindo (Penguin/Companhia das Letras). Recentemente, a Grua lançou uma nova versão, dentro da coleção “A Arte da Novela”, realizada por Eduardo Marks de Marques.

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[6]   Essa belíssima anedota do destino que marca e constela definitivamente a primeira fase da obra de Joyce tem outra coisa em comum com o já citado A festa de Babette: ambos tiveram adaptações cinematográficas bem-sucedidas. A de Os Mortos marcou um último grande momento da carreira de John Huston; ao contrário dos seus filmes imediatamente anteriores (Fuga para a vitória, Annie, À sombra do vulcão, mesmo o delicioso A honra do poderoso Prizzi),não se trata de um filme menor, mas de um trabalho que pode se alinhar ao que de melhor Huston fez (O tesouro de Sierra Madre, O segredo das joias, Uma aventura na África, Freud, Cidade das Ilusões, O homem que queria ser rei)  e a única grande aproximação entre Joyce e o cinema, pelo menos aquele de apelo comercial. E o título brasileiro realçou a verdade poética da fábula: Os Vivos e os Mortos. Nada mais exato.

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16/06/2014

A SUPERVALORIZAÇÃO DE TRECHINHOS E O DESCASO PELAS GRANDES OBRAS: EM LOUVOR DO CENTENÁRIO DE “DUBLINENSES” NO BLOOMSAY 2014

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Não é que eu esteja desprezando o lançamento de  Finn´s Hotel, mas essa fissura de tradutores, especialistas e aficionados por fragmentinhos joyceanos é muito cansativa. Volta e meia, uau!, acham um (e nem vou falar das táticas escusas dos familiares de Joyce para esticar o prazo dos direitos autorais, como publicar um “novo” texto de Ulysses ), e vamos lá com os giacomos joyces da vida, com os trocadilhos, os trocadalhos, o “erotismo” (nossa, o erotismo!), que fazem as delícias nérdicas de “iniciados”.

Aí, a recepção da obra de Joyce, já que ficam endeusando esses fragmentinhos, acaba lembrando as inaugurações de “trechos” (geralmente, pouquíssimos quilômetros) de metrô, de VLT (inauguraram um em frente à minha casa, só que todo o restante está longe, longe, longe de ficar pronto—nem por isso deixou de ter fanfarra e reportagem) ou quejandos.

Por que não dar destaque, já que estamos na altura do Bloomsday (16 de junho), às obras que realmente contam do genial irlandês? Por exemplo, Finn´s Hotel ganha em 2014 espaço na imprensa, mas não o centenário de uma obra do quilate de Dublinenses.

E Dublinenses não é um fragmentinho, e menos ainda uma obra menor, um mero passo para as obras “maiores”, ou de maior fôlego como Ulysses. Não, senhor, essa coletânea de 15 contos é um dos pontos mais altos do gênero em toda a literatura, e garantia uma altíssima reputação de Joyce se ele tivesse ficado nos contos.

Com um ou outro momento mais fraco (não tenho particular interesse nem por Após a corrida[1] nem Dia de hera na lapela[2], ainda que entenda o apelo romântico da figura de Parnell no segundo), é inacreditavelmente coeso em seu crescendo de todos os temas, tanto que o mais famoso (merecidamente), Os Mortos, é uma verdadeiro síntese: a ciranda de gerações, os mais jovens esbarrando nos mais velhos, com muita frustração de permeio, os vivos nos mortos, a necessidade de liberdade e o medo da estreiteza com o medo da liberdade e a necessidade da estreiteza, afora os vinténs coados e contados, a violência esgueirando-se pelas paredes ou bem explícita—veja-se o final terrível de Cópias (na tradução de José Roberto O´Shea) ou Contrapartida (na de Hamilton Trevisan), com o espancamento do menino pelo pai.

Já comentei extensamente “Os mortos” (cf. https://armonte.wordpress.com/2013/06/16/os-mortos-the-dead-um-texto-chave-na-obra-de-james-joyce/).

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E os outros destaques de Dublinenses?

Por ordem de preferência pessoal:

Uma pequena nuvem, o encontro após 8 anos daquele que ficou com aquele que partiu (e os ressentimentos, inveja, as pequenas alfinetadas) e depois a vida doméstica, descrita de forma indelével;

Arábia[3], um milagre de elementos concentrados na paixonite do menino pela irmã do amigo e sua promessa de trazer uma lembrança da feira que dá título ao conto;

Mãe, uma pequena joia de comédia humana focalizando um meio que Joyce conheceu muito bem e que será o mundo de Molly Bloom (o das salas de concertos);

Cópias ou Contrapartida– funcionário maduro e frustrado, com um pé no alcoolismo, no trabalho e no lar.

A pensão– delicioso conto em que uma teia de aranha matrimonial é tecida em torno de um pensionista. O sexo como armadilha, tema tão caro ao realismo-naturalismo, e ainda rendendo muito no universo joyceano.

Além desses, Eveline (tentativa de fuga da prisão doméstica e da pobreza), Um encontro (aproximação furtiva de homossexual em escapada de adolescentes), Um caso doloroso[4] (relação frustrada pelo egoísmo do homem, tal como nos textos de H. James), Graça (uma visão dos rumos fracassados de uma geração), As irmãs (o primeiro, que já aborda os temas centrais- a presença da morte, a opressão, a frustração), Dois galantes[5](sobre os jovens vagabundos e estroinas de Dublin, já se despedindo da juventude) Argila (os pequenos detalhes desse conto, o galanteador cavalheiresco que na verdade é um pilantra, que furta o bolo), todos equilibradamente do mesmo (e alto) nível, mostrando que Joyce aprendeu muito com Flaubert/Maupassant e também com Ibsen. São pequenas joias narrativas e ao mesmo tempo pequenas joias dramáticas.

Por favor, nesse Bloomsday vamos esquecer os trechos inacabados e inoperantes de metrô ou VLT, e vamos admirar as grandes e verdadeiras construções joyceanas.

(junho 2014)

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NOTAS

[1] Em O´Shea, Depois da corrida.

A tradução de Hamilton Trevisan vem sendo publicada há décadas pela Civilização Brasileira (seria interessante fazer um levantamento das capas), e agora editada pelo selo Bestbolso; a de José Roberto O´Shea teve uma edição em 1993 pela Siciliano, e em 2012 foi revista e reeditada pela Hedra. Há também uma tradução de Guilherme da Silva Braga para a L&PM (2012).

[2] Em O´Shea, Dia de hera na sede do comitê

[3] Em O´Shea, Araby.

[4] Em O´Shea, Um caso trágico (já pensei numa resenha comparativa com O altar dos mortos)

[5] Em O´Shea, Dois galãs

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16/06/2013

OS MORTOS (The Dead), um texto-chave na obra de James Joyce

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Fico sempre assombrado com a idade em que certos textos foram escritos. É o caso de Os mortos (The dead), o último e mais famoso conto de Dublinenses. James Joyce tinha  25 ou 26 anos ao escrevê-lo, naquela primeira década do século XX (nascera em 1882) em que se dedicava à criação da versão inicial do seu romance de formação, que só seria publicado, depuradíssimo em 1916, como Um retrato do artista quando jovem (dois anos antes, ele conseguira publicar, tardiamente, os quinze contos de Dublinenses, entre eles Os mortos, que fecha a coletânea).

Se Stephen Herói resultava informe, desagregado, frouxo enquanto narrativa, os contos daquela época mostram que Joyce poderia ficar na história como um dos grandes do gênero, independentemente da sua reputação futura, mais calcada na ruptura e na ousadia formal. São textos praticamente perfeitos, com um sopro do teatro de Ibsen neles[1], mas perfeitamente alinhados a grandes mestres “atmosféricos” (Maupassant, Turguêniev, Tchekhov) do gênero.

Caetano W. Galindo, que no ano passado causou sensação com sua tradução para Ulysses, agora traduziu para a Penguin/Companhia das Letras, dois dos contos de Dublinenses, o já referido Os mortos e “Arábias”. Com o acréscimo do monólogo de Molly Bloom, isso perfaz o pequeno volume joyceano para a coleção “Grandes Amores”.

Assim como A festa de Babette, de Isak Dinesen, Os mortos trata das pequenas ironias e truques do destino, do trançamento dos fios do cotidiano. Com seu espantoso senso do detalhe material, Joyce narra o pequeno baile tradicional na casa das tias solteironas do protagonista, Gabriel Conroy, as irmãs Morkan (e sua sobrinha, também solteirona) Mary Jane, na época do Natal. Apesar de se sentir um tanto “estrangeiro” e superior ao ambiente, por ser um intelectual mais “continental” do que arraigadamente irlandês, Gabriel tem muito carinho pelas tias, um sentimento cálido pelo pitoresco dublinense que elas representam, e no discurso obrigatório que é incitado exalta a “hospitalidade” como uma qualidade nativa que quase não encontra eco no resto da Europa.

O próprio Gabriel não se destaca de forma tão evidente na tessitura narrativa que dá conta dos eventos da festa, pois ali são muitos os centros de atração, como um microcosmo da “gente de Dublin”, não numa primeira leitura.

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Mas, ao se reler o texto, vemos como Joyce calcula cada momento da festa de uma maneira a preparar o extraordinário clímax, centrado no casal Conroy, em que a materialidade toda aí narrada se torna insubstancial. E aí, durante a releitura, o leitor se dá conta de como o casal praticamente não é visto junto e mal interage durante a festa, tal como nos é narrada. Há um pequeno episódio de hostilidade (em que ele dá uma resposta atravessada à esposa) e há um momento de contemplação (em que ele, no andar de baixo, a vê encostada na escada, no andar de cima, enlevada com uma canção, da qual ele mal ouve a letra, cena que é reelaborada na mente dele como motivo para um quadro, ou seja, é como se a esposa e o seu momento de enlevo fossem um “motivo” artístico).

Apesar do carinho e respeito das tias e dos demais presentes, Gabriel é alvo de vários “foras” ao longo da narrativa, sempre de forma a frustrar um intento da parte dele, onde ele parece querer mostrar o melhor da sua natureza. Faz uma observação entre jocosa e paternal à jovem serviçal da festa, Lily, e dela recebe uma áspera réplica, dança uma quadrilha com a Srta. Ivors, sua contemporânea de geração, fervorosa patriota (“o grande broche que trazia preso à parte da frente de seu colarinho tinha um emblema irlandês e um lema gaélico”), que o espicaça como intelectual e escritor anglófilo, quase um traidor, colaborando com um jornal “inglês” e desconhecedor do idioma da terra natal.

Vale a pena transcrever uma parte do diálogo:

“__ E o senhor não tem de manter contato com o seu próprio idioma, o gaélico?—perguntou  a Srta. Ivors.

__ Bom, disse Gabriel, a bem da verdade, sabe, o gaélico não é a minha língua.”

A Srta. Ivors insiste, convidando-o a excursionar pelas Ilhas Aran no verão. Gabriel declina (ele, que se gabara de conhecer “não pouco da Europa” em outro momento da festividade):

“E o senhor não tem que visitar a sua própria terra—continuava a senhorita Ivors—, que o senhor mal conhece, ou o seu próprio povo, e o seu próprio país?

__ Ah, para ser sincero—retorquiu Gabriel subitamente—, eu estou cheio do meu país, cheio!

__ Por quê ?—perguntou a Srta. Ivors.

    Gabriel não respondeu, pois estava fervendo depois de sua reação.

__ Por quê?—repetiu a Srta. Ivors.”

    Ao comentar com a esposa a proposta de excursão para as Ilhas Aran e constatar o entusiasmo dela, é que ele dá a resposta atravessada que já mencionei. O ponto a se destacar aqui é que o casamento de Gabriel com a bela Gretta não acontecera sem tensões. Para a mãe de Gabriel, ela não passava de uma camponesa sonsa, que havia realizado um casamento além da sua condição social (esse desnível entre casais protagonistas é recorrente em Joyce). E essa lembrança vem à tona na festa justamente por conta dessas provocações.

Findando a festa, após contemplar Gretta ouvindo a canção e compondo uma “figura de quadro”, amortece em Gabriel a tensão entre sua “anglofilia” (que o afasta até da esposa) e sua condição de “dublinense”. E na ida para o hotel, com a magia da neve e das lembranças de momentos “encantados” do casal, desde a lua-de-mel, vai emergindo nele um furor de desejo por Gretta, tanto que ele não vê a hora em que estejam a sós.

Se podemos aproximar a parte da festa do modo cinematográfico (em que tantos mortos são evocados, de uma forma nostálgica e num misto de respeito e irreverência), é evidente que Joyce teatraliza ao máximo a parte final, ao concentrar-se no casal. Gabriel dispensa até a luz da única vela que o idoso funcionário do hotel trouxe até o quarto, e temos apenas a luz que vem dos lampiões da rua na madrugada de neve intensa. Não quero entrar em mais detalhes, mas é nesse momento em que ele já ruminou vários momentos íntimos do seu casamento, e o desejo está mais forte do que nunca, em que ele calou as provocações e acicatamentos das suas posturas éticas e intelectuais, que Gretta resolve confessar que a canção ouvida na festa a fez lembrar-se de um rapaz, Michael Furey, antigo paixonite adolescente, que “morrera por ela”. Eis aí um morto para a qual não há solução respeitosa ou irreverente, quase tão insidioso quanto o amante fantasmático da esposa do Fridolin de Breve romance de Sonho, de Arthur Schnitzler. Como vencer um amante morto? Que figura de homem cunhada por Gabriel em sua trajetória de marido e intelectual tem a virtude e o ímpeto de se impor a essa figura do passado? Pois o passado não é apenas o território das perdas, no sentido de mortes pessoais, mas das perdas, no sentido de possibilidades (o casal Bloom tematizará tudo isso com muito mais nuances, mais tarde, o espantoso é Joyce levantar tais questões na idade que tinha, e ele ainda tão autocentrado, apesar de já se valer dos benefícios que Nora trará a ele no sentido de libertá-lo desse emparedamento, tão visível em Stephen Herói, em Um retrato do artista quando jovem e mesmo na primeira parte de Ulisses).

Não é à toa que uma das pedras-de-toque para Os mortos fosse uma das “Irish Melodies” de Thomas Moore (“O ye dead”):

“É verdade, é verdade, somos sombras frias e pálidas

E os belos e bravos a quem amamos na terra se foram;

       Mas mesmo assim na morte,

       Tão doce o hálito vivo

Dos campos e flores sobre os quais caminhamos na nossa juventude,

        Que embora aqui condenados vamos

        Congelar nas neves de Hecla,

Saborearíamos isso por um momento, pensando que vivemos outra vez!”

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    É bom não perder de vista que esse amor da juventude de Gretta é justamente de uma região próxima àquela que despertara nela o entusiasmo em revisitar (para irritação de Gabriel)  e que ela viu pela última vez Michael Furey na neve. Ou seja, todos os elementos e leitmotivs de Os mortos se ligam e se entretecem nos mínimos detalhes da trama, um tipo de composição (embora em ponto pequeno) que nortearia toda a futura produção joyceana. Sobre essas reverberações, Richard Ellmann em sua magnífica biografia comenta: “Os Mortos começa com uma festa e acaba com um cadáver, assim misturando funferal, como na vigília de Finnegan.”  E num trecho posterior: “Na sua lírica, melancólica aceitação de tudo o que a vida e a morte oferecem, é uma chave na obra de Joyce. Existe aquela situação básica de adultério, real ou imaginário, que existe em toda ela. Há a comparação joyceana especial de detalhe específico elevado a uma intensidade rítmica. O objetivo final da história, a dependência mútua entre vivos e mortos, é algo sobre o que ele meditou bastante desde sua juventude.”

E há a célebre e considerada enigmática frase do último parágrafo: “Era chegada a hora de ele partir em sua jornada rumo oeste”. Esse “rumo oeste” seria a indicação da curva que a vida tinha dado, em direção à morte, ou à consciência da mortalidade, pelo menos, no seu sentido mais pungente? Ou da aceitação de sua pátria, da qual deveria forjar a consciência incriada? Seu retorno à Ítaca para recuperar, enfim, a mulher?

Essa belíssima anedota do destino que marca definitivamente a primeira fase da obra de Joyce tem outra coisa em comum com A festa de Babette: ambos tiveram adaptações cinematográficas bem-sucedidas. A de Os mortos marcou um último grande momento da carreira de John Huston; ao contrário dos seus filmes imediatamente anteriores (Fuga para a vitória, Annie, À sombra do vulcão, mesmo o delicioso A honra do poderoso Prizzi),não se trata de um filme menor, mas de um trabalho que pode se alinhar ao que de melhor Huston fez (O tesouro de Sierra Madre, O segredo das joias, Uma aventura na África, Freud, Cidade das Ilusões, O homem que queria ser rei)  e a única grande aproximação entre Joyce e o cinema, pelo menos aquele de apelo comercial. E o título brasileiro realçou a verdade poética da fábula: Os vivos e os mortos. Nada mais exato.

(escrito especialmente para o blog, em 16 de junho de 2013)

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TRECHO SELECIONADO

Na tradução de Caetano W. Galindo:

__ Ele era o quê?—perguntou Gabriel, ainda ironicamente.

__ Trabalhava na usina de gás—ela disse.

    Gabriel se sentia humilhado pelo fracasso de sua ironia e pela evocação dessa figura de entre os mortos, um menino da usina de gás. Enquanto ele estava tomado de memórias de sua vida conjunta secreta, tomado de ternura e de alegria, ela o estava comparando mentalmente a um outro. Uma consciência vergonhosa de sua própria pessoa o tomou de assalto. Ele se viu como uma figura ridícula, fazendo de garoto de recados para as tias, um sentimentalista nervoso e bem-intencionado, perorando para o vulgo e idealizando suas próprias luxúrias afobadas, o sujeito fátuo e reles que entrevira no espelho. Instintivamente virou as costas mais para a luz para que ela não pudesse ver a vergonha que lhe ardia na testa.

   Ele tentou manter seu tom de fria interrogação, mas sua voz, quando falou, era humilde e indiferente.

__ Acho que você foi apaixonada por esse Michael Furey, Gretta—ele disse.

__ A gente se dava muito bem naquela época—ela disse.

  A voz dela era velada e era triste. Gabriel, sentindo agora quanto seria vão tentar levá-la aonde planejara, afagou-lhe uma das mãos e disse, triste também:

__E de que foi que ele morreu assim tão novo, Gretta? Foi de tuberculose?

__ Acho que ele morreu por mim—ela respondeu.

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    Na tradução de Hamilton Trevisan (Civilização Brasileira, 11ª. edição, 2006):

__Que fazia ele?—perguntou Gabriel, ainda com sarcasmo.

__ Trabalhava na companhia de gás.

   Gabriel sentiu-se humilhado pelo fracasso de sua ironia e pela evocação da figura do morto, um garoto da companhia de gás. Enquanto vibrava com íntimas recordações, repleto de ternura, alegria e desejo, ela o comparava com outro. Uma humilhante consciência de si mesmo o assaltou. Viu-se como uma figura ridícula, fazendo de menino travesso para as tias, um sentimentalista tímido e bem-intencionado discursando para pessoas vulgares e idealizando seus cômicos desejos: o lamentável pretensioso que vira de relance no espelho. Instintivamente, voltou-se contra a luz, para a esposa não ver o rubor que se alastrava em seu rosto.

   Procurou manter o tom de frio interrogatório, mas sua voz soou humilde e indiferente.

__ Suponho que esteve apaixonada por esse Michael Furey, Gretta.

__Queríamo-nos muito bem nesse tempo—respondeu ela.

   Sua voz era velada e triste. Percebendo como seria tolo tentar arrastá-la ao que pretendia, Gabriel começou a acariciar-lhe a mão e disse, também com tristeza:

__ E por que ele morreu tão jovem, Gretta? Tuberculose, foi?

__ Creio que morreu por minha causa.

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    Em 1993, José Roberto O´Shea traduziu assim (editora Siciliano):

__ O que ele fazia na vida?—perguntou Gabriel, ainda com ironia.

__ Trabalhava no gasômetro—ela disse.

   Gabriel sentiu-se diminuído pelo fracasso de sua ironia e pela evocação da figura do morto, um garoto que trabalhava no gasômetro. Enquanto ele revivia as lembranças da vida íntima do casal, cheio de carinho e felicidade e desejo, ela o comparava a um outro homem. Um grande sentimento de humilhação assaltou-o. Viu-se como uma figura ridícula, como um menino fazendo gracinhas para as tias, como um sentimental nervoso e ingênuo discursando para plebeus e idealizando seus próprios desejos ridículos: era de fato o sujeito presunçoso que vira refletido no espelho. Instintivamente, deu as costas para a luz, com receio de que Gretta percebesse a vergonha que lhe queimava o rosto.

  Procurou manter o tom frio de interrogatório, mas quando voltou a falar a voz saiu com um tom humilde e inócuo.

__Imagino que você esteve apaixonado por esse Michael Furey, Gretta—ele disse.

__Fui feliz ao lado dele, naquela época—ela disse.

   Tinha a voz velada e triste. Gabriel, dando-se conta de que seria inútil tentar levá-la na direção em que pretendera, acariciou a mão da mulher e disse, igualmente triste:

__ E ele morreu de quê, Gretta, tão jovem? Foi tuberculose?

__Acho que ele morreu por mim—ela respondeu.

   O´Shea fez pequenas modificações na sua versão de 2012 (editora Hedra):

__ O que ele fazia na vida?—perguntou Gabriel, ainda com ironia.

__ Trabalhava no gasômetro—ela disse.

   Gabriel sentiu-se diminuído pelo fracasso de sua ironia e pela evocação da figura do morto, um garoto que trabalhava no gasômetro. Enquanto ele revivia as lembranças da vida íntima do casal, cheio de ternura e alegria e desejo, ela o comparava mentalmente com um outro homem. Uma grande sensação de insegurança o assaltou. Via-se como uma figura ridícula, um menino fazendo gracinhas para as tias, um sentimental nervoso e ingênuo, discursando para plebeus e idealizando seus próprios desejos ridículos, o sujeito presunçoso que vira refletido no espelho. Instintivamente deu as costas para a luz com receio de que ela visse a vergonha que lhe queimava a fronte.

    Procurou manter o tom frio de interrogatório mas quando voltou a falar a voz soou humilde e inócua.

__ Imagino que você esteve apaixonada por esse Michael Furey, Gretta—ele disse.

__ Fui feliz ao lado dele naquela época—ela disse.

   Tinha a voz velada e triste. Gabriel, dando-se conta de que seria inútil tentar levá-la na direção em que pretendera, acariciou a mão dela e disse, igualmente triste:

__ E ele morreu de quê, Gretta, tão jovem? Foi tuberculose?

__Acho que morreu por mim—ela respondeu.

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Na versão de Guilherme da Silva Braga (L&PM, 2012):

__ O que ele fazia na vida?, perguntou Gabriel, ainda de maneira irônica.

__ Trabalhava no gasômetro, ela respondeu.

    Gabriel sentiu-se humilhado pelo fracasso da ironia e pela evocação dessa imagem dos mortos—um garoto no gasômetro. Enquanto sentia-se repleto de memórias da vida secreta do casal, cheio de ternura e alegria e desejo, ela o comparava com outro. Sentiu-se invadido por uma consciência vergonhosa em relação a si próprio. Viu-se como uma figura ridícula, como o estafeta das tias, como um sentimentalista nervoso e bem-intencionado que discursava para o vulgo e idealizava as próprias luxúrias farsescas, como o pobre sujeito patético que tinha vislumbrado no espelho. Instintivamente virou as costas em direção à luz para que ela não percebesse a vergonha que lhe abrasava o rosto.

   Tentou manter o tom frio de interrogação, mas quando falava a voz saía humilde e indiferente.

__ Parece que você era apaixonada por esse Michael Furey, Gretta, disse.

__ Nós éramos muito próximos naquela época, respondeu ela.

    A voz parecia velada e triste. Gabriel, percebendo que seria inútil tentar levá-la até onde pretendia, acariciou-lhe uma das mãos e disse, também com tristeza na voz:

__ E do que ele morreu tão jovem, Gretta? De tísica?

__Acho que morreu por minha causa.

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  No original, lemos:

–What was he? asked Gabriel, still ironically.

–He was in the gasworks, she said.

Gabriel felt humiliated by the failure of his irony and by the evocation of this figure from the dead, a boy in the gasworks. While he had been full of memories of their secret life together, full of tenderness and joy and desire, she had been comparing him in her mind with another. A shameful consciousness of his own person assailed him. He saw himself as a ludicrous figure, acting as a penny-boy for his aunts, a nervous, well-meaning sentimentalist, orating to vulgarians and idealizing his own clownish lusts, the pitiable fatuous fellow he had caught a glimpse of in the mirror. Instinctively he turned his back more to the light lest she might see the shame that burned upon his forehead.

He tried to keep up his tone of cold interrogation, but his voice when he spoke was humble and indifferent.

–I suppose you were in love with this Michael Furey, Gretta, he said.

–I was great with him at that time, she said.

Her voice was veiled and sad. Gabriel, feeling now how vain it would be to try to lead her whither he had purposed, caressed one of her hands and said, also sadly:

–And what did he die of so young, Gretta? Consumption, was it?

–I think he died for me, she answered.

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ANEXO

já o primeiro parágrafo de Os mortos mostra como a tradução de Joyce sempre é cercada de contradições e complicações. Lily, a jovem serviçal que recebe os convidados da tradicional festa das irmãs Kate e Julia (e sua sobrinha Mary Jane) Morkan, é filha de quem?

Galindo traduz assim a primeira frase do conto: “Lily, a filha do zelador, estava literalmente perdendo a cabeça”.

Também assim o entendia o primeiro tradutor de DUBLINENSES no Brasil, Hamilton Trevisan:  “Lily, a filha do zelador, estava literalmente esgotada”.

Em 1993, na sua versão de DUBLINENSES, José Roberto O´Shea, no entanto, verteu assim o início do conto mais famoso do livro: “Lily, a filha da empregada, não conseguia ficar sentada um minuto sequer”.

No ano passado, O´Shea publicou nova versão da sua tradução. E o trecho de abertura aparece ali da seguinte forma: “Lily, a filha do zelador, estava literalmente exausta”.

Então poderíamos crer que, enfim, estava assentado que Lily é mesmo a filha do zelador. Mas no mesmo ano  apareceu a versão de Guilherme da Silva Braga, onde lemos: “Lily, a filha da zeladora, não tinha literalmente um segundo de sossego”.

No original: “Lily, the caretaker’s daughter, was literally run off her feet.”

Mais adiante, ainda no primeiro parágrafo, não creio que Galindo foi muito feliz ao caracterizar o arranjo que as solteironas fizeram para as senhoras na festa:

“…tinham transformado o banheiro do primeiro andar num CAMARIM para as senhoras

Na versão de Trevisan: “…tinham pensado nisso e convertido em VESTIÁRIO o banheiro de cima”.

Na primeira versão de O´Shea: “… tinham convertido o banheiro do segundo andar numa espécie de TOALETE feminina”; na segunda versão:  “…tinham pensado nisso e convertido o banheiro do segundo andar num TOALETE feminino”.

Na versão de Braga: “…tinham pensado nisso e convertido o banheiro no andar de cima em um VESTIÁRIO feminino.”

No original: “But Miss Kate and Miss Julia had thought of that and had converted the bathroom upstairs into a ladies’ dressing-room.”

Outro detalhe da tradução. O problema do nome de um dos personagens, o sr. Browne, aludido jocosamente por ele. Galindo traduz da seguinte forma: “Bom, senhora Morkan, tomara que eu esteja bem ´marrom´ na sua opinião porque, sabe como é, eu me chamo ´brown´, não é mesmo?”—o que, convenhamos, é uma solução fraquinha, fraquinha.

Trevisan solucionou (ou não solucionou, melhor dizendo) assim a blague: “Ora,senhorita Morkan, espero  que eu pelo menos seja bem dourado para senhora, pois, como sabe, sou todo Brown.”

Em 1993, O´Shea (que, aliás, chama a atenção para o trecho em nota de rodapé), solucionou assim: “Espero, Miss Morkan, que a senhora ache que eu esteja bem dourado, pois sou ´Browne´ da cabeça aos pés”.  Em 2012: “Espero, Miss Morkan, que a senhora ache que eu esteja bem dourado, pois sou ´bronzeado´ da cabeça aos pés.”

Na versão de Braga: “Bem, sra. Morkan, espero que pelo menos eu esteja moreno o suficiente, pois como a senhora sabe eu sou moreno até no nome!”

No original: “-Well, I hope, Miss Morkan, said Mr Browne, that I’m brown enough for you because, you know, I’m all Brown…”

CONSULTAR

http://english-learners.com/wp-content/uploads/THE-DEAD.pdf

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[1] “É preciso que se diga direta e imediatamente que àquela época Stephen sofreu a influência que mais lhe marcou a vida. O espetáculo do mundo conforme apresentado por sua inteligência com todos os detalhes sórdidos e enganosos alinhado ao espetáculo do mundo apresentado pelo monstro que o habitava, agora guindado a um estágio razoavelmente heróico, também costumava levá-lo a um desespero tão súbito que só podia ser aplacado por meio da composição de versos melancólicos. Estava prestes a considerar os dois mundos alheios entre si—por mais dissimulados que fossem ou por mais que expressassem o mais completo pessimismo—, quando encontrou, valendo-se de traduções pouco procuradas, o espírito de Henrik Ibsen. Compreendeu tal espírito instantaneamente (…) as mentes do velho poeta nórdico e do jovem celta inquieto se encontravam num momento de radiante simultaneidade. Stephen foi cativado primeiramente pela nítida excelência da arte: não demorou muito para ele afirmar, mesmo com escasso conhecimento do tratado, obviamente, que Ibsen era o melhor dramaturgo do mundo (…) Ali e não em Shakespeare ou Goethe estava o sucessor do primeiro poeta dos europeus, ali, somente como em Dante, uma personalidade humana se unira a um estilo artístico que em si mesmo constituía quase um fenômeno natural: e o espírito da época promovia uma união mais imediata com o norueguês que com o florentino.” (trecho de Stephen Herói, tradução de José Roberto O´Shea, editora Hedra)

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11/12/2012

A terceira margem do riverrun joyceano: uma nova tradução de “Ulysses”

“Há o terrível risco da solenidade, que transforma tanto leitores quanto escritores em grandes carrancudos. Joyce escreveu Ulysses para entreter, para realçar a vida, para dar júbilo. É fácil demais destruir a vida alada, não tanto prendendo-a quanto ruminando-a.”(Anthony Burgess, Homem Comum Enfim)

I

Não pensei que viveria para ver uma terceira tradução de Ulysses e pouquíssimos anos após a segunda (a de Bernardina da Silveira Pinheiro, lançada em 2005, passados 40 anos da primeira, a de Antônio Houaiss). O autor dessa façanha, que acontece no 90º. aniversário do romance de James Joyce (1882-1941), é um jovem curitibano (nasceu em 1973), Caetano W. Galindo, que consegue transpor para a nossa língua um livro exigente sem torná-lo quase intragável (como fez Houaiss, respeitando-se o seu tour-de-force) nem enfraquecê-lo fugindo das soluções mais difíceis (como fez Bernardina, idem). A meu ver, finalmente Ulysses e o leitor brasileiro encontram-se de fato.

Ao publicá-lo em 1922, aos 40 anos, Joyce e a Europa tinham passado por uma guerra mundial e seus efeitos desagregadores estão presentes, mesmo que anacronicamente, na narração do dia 16 de junho de 1904, o bloomsday (que virou uma data comemorativa): não são poucas as alusões, no texto, denegrindo as práticas bélicas, a destruição de uma geração, e também o enfraquecimento do Império Britânico.

Tomando como modelo para seu esquema narrativo, a Odisseia de Homero (todos os dezoito episódios do livro são calcados em incidentes das aventuras de Ulisses em retorno ao lar após a Guerra de Troia), Ulysses contraria e parodia o figurino épico e seus arquétipos de virilidade agressiva e rivalidades guerreiras.

Joyce radicaliza o registro da experiência humana ao vislumbrar que somos feitos não só de ação e decisão (mesmo que no romance realista-naturalista normalmente elas sejam obstadas), mas nossa mente circunavega Poe associações, auto-lembretes pueris (como coisas que temos de comprar, uma dívida que alguém tenha com a gente etc), lembranças involuntárias, trechos de músicas, impacto de sensações, enfim, um mosaico fragmentário e muito particular (e é por isso que ele mexe nas palavras, na sua composição; um dos aspectos mais elogiáveis da versão de Galindo é não forçar a barra, como Houaiss tanto fez ao criar palavras horrorosas, e se basear na supressão do hífen e na junção cacofônica normal dos vocábulos, por exemplos olhão  destemanho). E é assim que ele nos convida para entrar na mente dos três protagonistas, o casal Bloom (ele em perambulações pela cidade, ela recebendo um amante), já não tão mais jovem (pelos padrões da época, no romance, aliás, se reitera bastsnte uma perspectiva de vida de 70 anos mais ou menos), embora ela seja uma mulher desejável, e Stephen Dedalus, que aos 22 anos, luta contra a paralisia da vontade, e do futuro, que se estende, aliás, à nação e a língua irlandesas, dominadas pelos ingleses. Stephen tem de se haver com seu lado Hamlet, embora o mundo de Joyce, assim como é antiépico  (embora Bloom, seu Ulisses moderno não deixe de apresentar as qualidades de astúcia e prudência do herói clássico) também é antitrágico por natureza. Ele confia muito no fluxo da vida, e não é por acaso que instituiu como recurso modernista essencial o fluxo de consciência dos personagens. Nosso dia a dia é feito pelos nossos movimentos pelas ruas, pelo espaço-tempo, mas também pelas viagens da nossa mente.

E sua proeza maior foi ter amarrado essa característica proteica a uma rigorosíssima estrutura narrativa. Sem contar a teia de alusões atordoantes que fazem do texto de Joyce um palimpsesto semelhante à Divina Comédia, de Dante (vale a pena ler a extraordinária biografia de Richard Ellmann, uma obra-prima do gênero, mas eu sinceramente acho que o leitor comum que queira apenas ler o romance, sem se aprofundar nessas veredas alusivas, não só culturais, mas de cidadãos e figuras históricas de Dublin e da Irlanda, bem como de personagens dos livros anteriores, como Dublinenses, pode fazê-lo tranquilamente e entender mesmo assim o plano geral do romance[1]), a paródia de vários estilos literários, a escolha de um léxico apropriado para  evocar cada episódio da Odisseia, cada momento do livro traz aconecimentos e encontros que serão completados adiante, nada é jogado fora ou acidental.

Quando Molly Bloom no célebre episódio final está na sua cama e ao mesmo tempo recapitula sua vida, rumina os vestígios do dia, fantasia, ressente-se do marido,  ainda que com inequívoca admiração pela sua peculiaridade, todas as peças do quebra-cabeça colocaram-se em seus devidos lugares (“toda a galáxia de eventos, tudo contribuía para constituir um camafeu miniaturizado do mundo em que vivemos”, lemos na pág. 915) e demos a volta ao dia em oitenta mundos (“algo que escapasse do soído e costumeiro”). E Caetano W. Galindo nos propiciou o equivalente brasileiro mais pertinente, até hoje, dessa viagem fascinante.

(resenha publicada, de forma mais condensada, em A TRIBUNA de Santos, em 12 de junho de 2012) 

II

Transcrevo abaixo um dos trechos de que eu mais gosto em Ulysses, que está no episódio das “Sereias”, que transcorre lá pelas 4 da tarde. É o momento em que Leopold Bloom, junto com Richie Goulding, ouve o pai de Stephen, o decadente e beberrão Simon Dedalus, cantando (pensando nas possibilidades perdidas dessa vida, e também nas possibilidades perdidas da sua vida, e também na mulher recebendo o amante e o que eles devem estar fazendo):

Na tradução de Galindo ficou assim:

“… Bloom curvava leopolda orelha,  virando  uma franja de toalhete para embaixo do vaso. Ordem. Sim, eu lembro. Ária linda. Dormindo ela foi até ele. Inocência à luz da lua. Detê-la ainda. Coragem, não sabem do perigo. Chamar o nome. Tocar água. Tine ginga. Tarde demais. Ela desejava ir. É por isso. Mulher.  Mais fácil deter o mar. Sim: está tudo perdido.

__Uma bela ária, disse Bloom perdido Leopold. Conheço bem.

    Nunca em toda sua vida havia Richie Goulding.

    Ele conhece bem também. Ou sente. Ainda matraqueando sobre a filha. Sábia criança que conhece o próprio pai, o Dedalus disse. Eu?

   Bloom de esguelha sobre desfigadado via. Rosto de tudo está perdido. Um dia foi Richie risonho. Piadas velhas agora rançosas (…)

   Piano de novo. Soando melhor que da última vez que ouvi. Afinado provavelmente. Parou de novo.

   Dollard e Cowley ainda incitavam o cantor recalcitrante a andar com aquilo.

__Anda com isso, Simon.

__ Anda, Simon.

__ Senhoras e senhores, fico-lhes profundamente grato por seus gentis pedidos.

__ Anda, Simon.

__ Não tenho dinheiro mas se me cederem um momento de sua atenção eu tentarei cantar a estória de um coração curvado em reverência (…)

(…) Quando primeiro vi aquela forma cativante.

   Richie se virou.

__ A voz do Si Dedalus, ele disse.

   Cerebrêbados, bochechas tocadas de chama, eles ouviam sentindo aquele fluxo cativante fluxo sobre pele membros peito humano e alma espinha. Bloom sinalizou a Pat, calvo Pat é um garçom ruim de ouvido, para entreabrir a porta do bar. A porta do bar. Assim. Está ótimo. Pat, garçom à espera, esperava, esperando ouvir, pois era ruim de ouvido junto à porta.

__ A mágoa de mim vi partir.

   Pela placidez do canto uma voz lhes cantava, grave, não chuva, não folhas em murmúrio, em nada como voz de cordas ou palhetas ou comèquechama saltérios, tocando seus ouvidos poucos com palavras, pouco o coração de cada um sua vida relembrada. Bom, bom de ouvir: a mágoa de cada um parecia de ambos partir quando primeiro ouviram. Quando primeiro viram, Richie perdido Poldy, mercê da beleza, ouviram de uma pessoa que não poderiam jamais esperar, a jura inteira  e pura primeira maduramor.

   É o amor que está cantando: a velha e doce canção do amor. Bloom desenrolou lento o elástico de seu pacote. A velha e doce sonnez la ouro de amor. Bloom enrolou uma meada em quatro dedosgarfos, esticou, afrouxou, e enrolou seu duplo confuso, em quatro, in oitava, embaraçando bem.

__ Pleno de esperança e deleitoso…

Os tenores ganham mulher sem precisar nem cantada. Aumenta o fluxo. Jogam flores aos pés deles quando a gente pode se encontrar? Minha cabeça toda. Tine todo deleitoso. Ele não pode cantar pras cartolas. Sua cabeça ela toda rroda. Perfumada pra ele. Que tipo de perfume que a sua esposa? Eu quero saber. Tin. Para. Bate. Última olhada no espelho sempre antes de ela abrir a porta. A sala. Lá? Como vai? Eu vou bem. Lá? O quê? Ou? Balinhas de menta, beijos doces, na bolsa. Sim? Mãos buscavam suas opulentas.

   Ai de mim! A voz subia, um suspiro, mudada: alta,c heia, clara, orgulhosa.

__ Mas, ai de mim!, era um sonho vão…

   Um timbre esplendoroso ele tem ainda. Ar de Cork mais suave e o sotaque deles também. Sujeitinho bobo! Podia ter ganhado oceanos de dinheiro. Cantando a letra errada. Consumiu a esposa: agora canta. Mas difícil de dizer. Somente os dois. Se ele não desmonta. Manter um trote pro desfile. As mãos e os pés dele cantam também. Bebia. Nervos tensos como corda de violino. Tem que ser abstêmio pra cantar. Sopa Jenny Lind: brodo, sálvia, ovo cru, uma xícara de creme. Para o lírico onírico.

   Em ternura acrescia: lenta, crescente. Cheia latejava. Isso é que é. Ah, dá! Toma! Lateja, um latejo, um orgulho pulsando ereto.

   Letra? Música? Não: é o que está por trás…”

No original (utilizo o texto da edição da The Modern Libary, 1992):

“…Leopold  bent leopold ear, turning a fringe of doyley down under the vase. Order. Yes, I remember. Lovely air. In sleep she went to him. Innocence in the moon. Still hold her back. Brave, don´t know their danger. Call name. Touch water. Jingle jaunty. Too late. She longed to go. That´s why. Woman. As easy stop the sea. Yes: all is lost.

__ A beautiful air, said Bloom lost Leopold. I know it well.

   Never in all his life has Richie Goulding.

    He knows it well too. Or the feels.  Still harping on his daughter. Wise child that knows her father, Dedalus said. Me?

   Bloom askance over liverless saw. Face of the all is lost. Rollicking Richie once. Jokes old stale now (…)

   Piano again.  Sounds better than last time I heard. Tuned probably. Stopped again.

   Dollard and Cowley still urged the lingering singer out with it.

__ With it, Simon.

__ It, Simon.

__ Ladies and gentlemen, I am most deeply obliged by your kind solicitations.

__ It, Simon.

__ I have no money but if you will lend me your attention I shall endeavour to sing to you of a heart bowed down (…)

(…)When first I saw that form endearing.

   Richie turned.

__ Si Dedalus´s voice, he said.

    Braintipped, cheek touched with flame, they listened feeling that flow endearing flow over skin limbs human heart soul spine. Bloom signed to Pat, bald Pat is a waiter hard of hearing, to set ajar the door of the bar. The door of the bar. So. That will do. Pat, waiter, waited, waiting to hear, for he was hard of hear by the door.

__ Sorrow from me seemed to depart.

   Through the hush of air a voice sang to them, low, not rain, not leaves in murmur, like no voice of strings of reeds or whatdoyoucallthem dulcimers, touching their still ears with words,  still hearts of their each his remembered lives.  Good, good to hear: sorrow from them each seemed to from both depart when first they heard. When first they saw, lost Richie, Poldy, mercy of beauty, heard from a person wouldn´t expect it in the least, her first merciful lovesoft oftloved word.

   Love that is singing: love´s old sweet song. Bloom unwound slowly the elastic band of his packet. Love´s old sweet sonnez la gold. Bloom wound a skein round four forkfingers, stretched it, relaxed, and wound it round his troubled double, fourfold, in octave, gyved the fast.

__Full of hope and all delighted…

   Tenors get women  by the score. Increase their flow. Throw flower at his feet when will we meet? My head it simply. Jingle all delighted. He can´t sing for tall hats. Your head it simply swurls. Perfumed to him. What perfume does your wife? I want to know. Jing. Stop. Knock. Last look at mirror always before she answers the door. The hall. There? How do you? I do well. There? What? Or? Phila of  cachous, kissing comfits, in her satchel. Yes?  Hnds felts for the opulent.

   Alas! The voice rose, sighing, changed: loud, full, shining, proud.

__But alas, ´twas idle dreaming…

   Glorious tone he has still. Cork air softer also their brogue. Silly man! Could have made oceans of money. Singing wrong words. Wore out his wife: now sings. But hard to tell. Only the two themselves. If he doesn´t break down. Keep a trot for the avenue. His hands and feet sing too. Drink. Nerves overstrung. Must be abstemious to sing. Jenny lind soup: stock, sage, raw eggs, half pint of cream. For creamy dreamy.

   Tenderness it welled: slow, swelling. Full it throbbed. That´s the chat. Ha, give! Take! Throb, a throb, a pulsing proud erect.

   Words? Music? No: it´s what´s behind…”

Na versão de Antônio Houaiss (utilizo a edição da Civilização Brasileira, 1982) ficou assim:

“…Bloom inclinava leopold orelha, dobrando uma franja do paninho para debaixo da floreira. Ordem. Sim, eu me lembro. Adorável ária. Em sono ela se fora para ele. Inocência na lua. Deixá-la ainda por longe. Bravos, não sabem do perigo. Xinga nomes. Toca na água. Sege ginga. Muito tarde. Ela ansiava por ir-se. É por isso. Mulher. Tão fácil como parar o mar. Sim: tudo é perdido.

 __ Uma bela melodia—disse Bloom perdido Leopold.—Conheço-a bem.

   Nunca em sua vida tinha Richie Goulding.

    Ele a conhece também. Ou ele pensa. Ainda assim harpejando a filha. Garota sabida que conhece o pai, disse Dedalus. Eu?

   Bloom de esguelha sobre o desfigadado via. Cara de tudo é perdido. Folgazão Richie outrora. Pilhérias de velho estilo agora (…)

   Piano de novo. Soa melhor que da última vez.  Afinado provavelmente. Parou de novo.

   Dollard e Cowley urgiam ainda o tardo cantor vamos com isso.

__ Com isso, Simon.

__ Isso, Simon.

__ Senhores e senhores, estou mui fundamente obrigado por suas gentis solicitações.

__ Isso, Simon.

__ Não tenho dinheiro mas se me emprestarem atenção eu me esforçarei para cantar-lhes sobre um coração em pena (…)

__ Ao ver primeiro a forma tão querida.

   Richie voltou-se.

__ Voz do Si Dedalus—disse ele.

   Cerebrespicaçados, faxes tocadas de flama, eles ouviam sentindo um fluir querido fluir sobre pele membros coração humano alma espinha. Bloom fazia sinal a Pat, o calvo Pat é um garçom duro de ouvido, para deixar entreaberta a porta do bar. A porta do bar. Assim. É bastante. Pat, o garçom, esgarçava-se, engonçando-se por ouvir, pois ele era de ouvir perto da porta.

__ Pareceu-me fugir toda a tristeza.

  Na caluda do ambiente uma voz cantava-lhes, baixo, nem chuva, nem folhas múrmuras, nem como a voz d cordas de junquilho ou comoé quechama dulcímeros, tocando-lhes as orelhas-quedas com palavras, os corações quedos deles cada um com vidas revividas. Bom, bom de ouvir: a tristeza deles cada um parecia de ambos partir quando logo ouviram, perdidos, Richie, Poldy, a misericórdia da beleza, ouvida de alguém de quem menos se esperaria, a primeira misericordiosa suavemente palavra dela sempreamada.

   Amor que é canto: a velha doce canção do amor. Bloom destacava, lento, a fita elástica do seu embrulho. Velha, doce, sonnez la ouro do amor.  Bloom atacava a fita à volta de quatro dedos em garfo, esticava-a, relaxava-a, e atacava-a, turvado em volta em duplo, quádruplo, em oitavo, agrilhoando-a rápido.

__ Esperança e delícias me acenavam.

Tenores conseguem mulheres em penca. Aumenta-lhes o fôlego. Jogam flores aos pés deles quando nos encontraremos? Minha cabeça, isso simplesmente.  Zum-zum que é delícia. Ele não pode cantar para cartolas. Tua cabeça simplesmente gera. Perfumada para ele. Que perfume é que sua mulher?  Eu quero saber. Tlim. Parada. Toque-toque.  Ultima olhadela ao espelho antes sempre que atende à porta. A sala de entrada. Está aí? Como vai? Vou bem? Está aí?  O quê? Ou? Caixinha do  tsén-tsén,  confeitos para beijinhos, na bolsinha dela. Sim? Mãos a sentir a opulência.

   Ai-ai! A voz  se erguia, suspirava, modulava: forte, cheia, brilhante, audaz.

__Mas era um sonho apenas essa vida.

  Timbre soberbo ele tem ainda. O ar de Cork suaviza também seu sotaque. Sujeito idiota! Podia ter feito montanhas de dinheiro. Pregou em freguesia errada. Arrebentou a mulher: canta agora. Mas quem pode saber? Somente eles dois mesmos. Mantém as aparências. Suas mãos e pés cantam também. Bebe. Nervos mais que estirados. Deve-se ser abstêmio para cantar. Dieta de Jenny Lind:  caldo, sálvia, ovos crus, meia pinta de creme. Para sonhos risinhos.

    Ternura e canto derramava: lento , esparramava. Cheio, ele pulsava. Isto é tizio. Ah, tira! Dá! Pulsa, um impulso, claro erguido latejando.

   Palavras? Música? Não: é o que é por trás…”   

Na versão portuguesa de João Palma-Ferreira (utilizo a edição da Livros do Brasil, 1984) fica assim:

“… Bloom aprestou o ouvido de Leopold, a dobrar uma franja da toalha sob o vaso das flores. Ordem. Sim, recordo. Bela ária. Era no sono que ela se chegava a ele. Inocência na lua. Valentes. Não conhecem o perigo. Contudo, ainda a mantém. Chamar por nomes. Tocar na água. O tilintar da tipoia. Demasiadamente tarde. Ela queria partir.É por isso. Mulher. Tão fácil deter o mar. Sim, está tudo perdido.

    Nunca na sua vida tinha Richie Goulding.

    Ele também sabe. Ou sente. A maçar a filha. Sábia criança que conhece o pai, disse Dedalus. A mim?

    Bloom de soslaio, sobre sem fígado, viu. O rosto de tudo está perdido. Outrora o exuberante Richie. Agora anedotas e velhos ditos (…)

   Outra vez o piano. Soa melhor do que última vez que ouvi. Afinado, provavelmente.  Parou de novo.

   Dollard e Cowley continuavam a instar para que o arrastado cantor se soltasse.

__ Vamos com isso, Simon.

__ A isso, Simon.

__ Senhoras e cavalheiros, sinto-me profundamente agradecido pelas vossas amáveis solicitações.

__ Vamos, Simon.

__ Não tenho dinheiro, mas se me emprestardes a vossa atenção, tentarei cantar-vos acerca de um coração destroçado (…)

(…)Quando a primeira vez eu vi essa forma sedutora.

    Richie voltou-se.

__ A voz de Si Dedalus—disse ele.

   Miolos excitados, rosto tocado pelo rubor, escutaram sentindo essa torrente sedutora, torrente sobre a pele, membros, coração humano, alma, espinha.  Bloom acenou a Pat, o careca Pat é um criado duro de ouvido, para entreabrir a porta do bar. Isso. Assim serve.  Pat, criado, esperou, esperando para ouvir pois era duro de ouvido, junto à porta.

__ A tristeza pareceu partir de mim.

       Através da quietude do ar uma voz cantava para eles, baixa, não chuva, não murmúrio de folhas,  como voz alguma de juncos ou junquilhos ou como se chamam saltérios atingindo-lhes os ouvidos com palavras,  tranquilos corações das  suas vidas recordadas. Bom, bom de ouvir: a tristeza pareceu afastar-se  de ambos quando primeiro ouviram. A primeira vez que viram, o perdido Richie, Poldy, misericórdia da beleza ouvida de uma pessoa de quem jamais se esperaria, a sua primeira palavra misericordiosa, suave de amor, palavra tão amada.

   Amor que canta: velha e suave canção de amor. Bloom desfez lentamente a fita elástica do embrulho. Suave e velha sonnez la ouro. Bloom enrolou uma meada em torno de quatro dentes do garfo, estirou-a, relaxou, atou em torno do seu perturbado duplo, quádruplo, em oitavo, atou-a fortemente.

__ Cheio de esperança e de todo o encanto.

   Os tenores conseguem mulheres ás dúzias. Aumenta-lhes o fluxo. Atiram-lhes flores aos pés. Quando é que nos encontramos? A minha cabeça, simplesmente. Retinir todo deliciado. Não pode cantar para chapéus altos. A tua cabeça gira simplesmente. Perfumada para ele.  Qual é o perfume que a sua mulher? Quero saber. Retine. Acabou. Bate à porta. O último olhar ao espelho antes que ela responda. O vestíbulo. Ali? Como passou? Vou bem. Ali? O quê? Ou? Um frasquinho de pastilhas, confeitos de beijos, no bolso dela. Sim? As mãos procuravam-lhe as opulências.

   Ah, a voz subiu, suspirando, alterou-se: alta, cheia, brilhante, orgulhosa.

__Mas, ah, era sonhar em vão…

   Ainda tem um tom glorioso. O ar de Cork é mais suave e também o seu acento. Estúpido homem!  Podia ter feito oceanos de dinheiro. Cantando letras erradas. Consumiu a mulher: agora canta. Mas custa dizer. Só eles, os dois. Se não se for abaixo. A trote para o cemitério. As mãos e os pés também cantam. Bebida. Os nervos sensíveis. Para se cantar deve ser-se abstêmio. A sopa de Jenny Lind: caldo, infusão de sálvia, ovos crus, meio quartilho de creme. Para sonhos em creme.

    Ternura a transbordar,  lenta, dilatante, cheia, latejava. A conversa é esta. Ah, dá! Toma! Pulsar, uma pulsação, pulsar orgulhoso e erecto.

  Palavras? Música? Não, é o que está atrás…”

Por fim, a versão de Bernardina da Silveira Pinheiro (utilizo a edição da Objetiva, de 2005):

“… Bloom inclinou o ouvido de Leopoldo, dobrando uma fímbria do guardanapo debaixo do vaso. Ordem.  Sim, eu me lembro. Uma bela canção. Dormindo ela ia para ele. Inocência sob a lua. Corajosas. Desconhecem o perigo. Ainda assim detê-la. Chamá-la pelo nome. Tocar a água. Tilintar lépido. Tarde demais. Ela ansiava ir. Eis por quê. Mulher. Tão fácil quanto reter o mar. Sim: está tudo perdido.

__ Uma linda canção—disse Bloom perdido Leopoldo.—Eu a conheço bem.

   \nunca em toda a sua vida tinha Richie Goulding.

    Ele também a conhece bem. Ou a sente. Ainda repisando o assunto de sua filha. Filha sábia que conhece o próprio pai, disse Dedalus. Eu?

    Bloom o olhou de soslaio por sobre sua ausênciadefígado. Rosto de tudo está perdido. O Richie brincalhão de antigamente. Velhas piadas batidas agora (…)

    Piano novamente. Soa melhor do que na última vez em que ouvi. Provavelmente afinado.  Parou de novo.

    Dollard e Cowley a instar com o vagaroso cantar para que cantasse logo.

__ Vamos, Simon.

__ Vamos com isso, Simon.

 __ Senhoras e senhores, estou profundamente agradecido por sua generosa solicitação.

__ Vamos com isso, Simon.

__ Não tenho dinheiro mas se vocês me emprestarem sua atenção eu vou tentar cantar para vocês sobre um coração oprimido (…)

(…)Quando primeiro vi aquela figura cativante…

    Com o cérebro tinindo de excitação, as faces atingidas pela flama, eles escutavam sentindo aquela torrente cativante fluir sobre a pele os membros o coração humano a alma a espinha dorsal. Bloom fez sinal para Pat, o calvo Pat que é um garçom que ouve mal, para que deixasse entreaberta a porta do bar. A  porta do bar. Assim. Basta. Pat, previdente, pacientou, pacientando para ouvir, pois ele era meio surdo, junto da porta.

__ …A tristeza parecia me abandonar.

   Através da quietude do ar uma voz cantava para eles, baixo, não era chuva, não eram folhas em murmúrio, como nenhuma voz de instrumentos de corda ou de sopro ou comovocêaschama cítaras, enternecendo seus ouvidos serenos com palavras, os corações serenos de cada um as suas vidas relembradas.  Bom, bom de ouvir: a tristeza de cada um deles parecia abandonar os dois assim que começaram a ouvir. Quando eles viram pela primeira vez, Richie e Poldy perdidos, a clemência da beleza, ouviram de alguém  de quem nem um pouco esperavam, sua primeira palavra misericordiosa tãoamada de ternoamor.

    Amor que canta: a antiga e doce canção de amor.  Bloom lentamente desenrolou a tira elástica de seu pacote.  A antiga e doce de amor sonnez la ouro.  Bloom enrolou uma meada em volta de quatro dedos bifurcados, esticou-a, relaxou,  e enrolou-a em  volta dos duplos, quádruplos dedos tensos, em óctuplo, e os atou firmemente.

__ Cheio de esperança e todo encantamento…

     Tenores conseguem mulheres aos montes.  Aumentam o desejo delas. Atire flores aos pés dele. Quando vamos nos encontrar? Minha cabeça ela simplesmente. Tilintar todo encantamento. Ele não pode cantar para cartolas. Sua cabeça ela simplesmente rodopia. Perfumada para ele.  Que perfume sua mulher? Eu quero saber. Tilint. Parar. Bater na porta. Último olhar para o espelho antes que ela abra a porta. O saguão. Lá? Como vai? Vou bem. Ali? O quê? Ou? Frasco de cachu, bals que favorecem o beijo, na sua bolsa. Mãos para apalpar os opulentos.

    Ai de mim elevou-se a voz, suspirando, alterada: sonora, vibrante, esplendorosa, gloriosa.

__ Mas, ai de mim, era um sonho vão…

   Como ainda é magnífico o seu timbre. A cantiga de Cork mais suave o sotaque dele também. Homem tolo! Podia ter ganho rios de dinheiro. Cantando palavras erradas. Consumiu sua mulher: agora canta. Mas difícil de dizer. Apenas os dois eles próprios.  Se ele não sucumbir. Mantém-se em forma apesar dos pesares. Seus pés e mãos também cantam. Bebida. Nervos hipersensíveis.  É preciso ser abstêmio para cantar. Sopa de Jenny Lind: caldo de carne ou peixe, salva, ovos crus, meia xícara de creme. Para um sonhar cremoso.

   Ternura ela se derramou: lentamente, se inflando, tremulou plenamente. Essa é a coisa certa. Há, teste! Tome! Trema, um tremor, um pulsar orgulhoso ereto.

   Palavras? Música? Não é o que está por trás….”


[1] “A verossimilhança no Ulysses é tão forte que Joyce tem sido ridicularizado como mais um mímico do que um criador, acusação que, sendo falsa, é o maior de todos os elogios. Depois da sua morte, quando a BBC estava preparando um longo programa a seu respeito,  emissários foram a Dublin e abordaram o dr. Richard Best para participar de uma entrevista. Por que vieram me procurar, questionou ele, todo truculento, o que os faz pensar que tenho qualquer coisa a ver com esse cara aí, Joyce? Mas o senhor não pode negar sua ligação, replicaram os enviados da BBC, afinal o senhor é um personagem do Ulysses.

   Esse incidente é útil. Até com um roman à clef, o que o Ulysses é em larga medida, não há chave que se adapte direito…” (James Joyce, de Richard Ellmann. Há uma tradução brasileira, publicada pela Globo, em 1989, e realizada por Lya Luft).

12/06/2012

O CENTENÁRIO DO BLOOMSDAY

M_Joyce

16 de junho de 1904

Certamente a data mais famosa da literatura. O bloomsday. O dia da ação de Ulisses (1922), no qual acompanhamos as andanças dos protagonistas por Dublin: Stephen Dedalus, 22 anos, que retornara à Irlanda devido à morte da mãe (estava estudando em Paris) e se debate contra o marasmo da pátria e dos seus compatriotas (tema de Dublinenses, 1914, e Um retrato do artista quando jovem, 1916, dos quais vários personagens reaparecem em Ulisses), que ameaça engoli-lo também; Leopold “Poldy” Bloom, 38 anos, corretor de anúncios judeu, o qual, após sair de casa nesse dia, perambula para retardar o momento em que deve voltar, pois sua esposa, Molly, receberá um amante, Blazes Boylan, provável sócio numa turnê musical.

Os dois representam o Joyce da época da narrativa e o Joyce da execução e publicação da obra, 18 anos depois. Etapas e prismas diferentes “da mesma personalidade, numa contransmagnificandjudeibumbstancialidade (na versão de Antônio Houaiss) : a consubstancialidade do Pai e do Filho no catolicismo, de Shakespeare e seu filho morto, Hamnet, transformado em Hamlet, que tem um pai morto. Stephen tem um pai vivo a quem não respeito e do qual permanece alheado. Bloom perdeu um filho onze dias depois do nascimento, cessando suas relações sexuais com a fogosa esposa.

Ao transfigurar a Odisséia dentro do cotidiano pequeno-burguês (cada cena do romance reproduz fielmente episódios homéricos, através de variados e desafiadores recursos estilísticos; por exemplo: após o almoço, a sonolência causada pela digestão evoca os efeitos de esquecimento narcótico dos lótus ingeridos pelos imprudentes companheiros de Ulisses), Joyce configura (consubstancia) uma estranha família para emancipar Stephen da paralisia dublinense; Poldy e Molly o assumem como filho.

Após encontros fortuitos e mal se conhecendo, acabam por reunir-se numa maternidade: Stephen fora procurar companheiros de farra entre estudantes de medicina, Poldy aparecera à procura de notícias de uma conhecida que estava sofrendo para dar à luz. Preocupado com a exploração do jovem (cujo salário, como professor, fora pago no final da manhã) pelos camaradas, e aqui o autor aproxima as agruras de ambos à usurpação e dissipação de bens sofridas por Telêmaco e Ulisses em Ítaca. Poldy o acompanha até um puteiro, permanecendo com ele até o final da noitada e levando-o para casa, fazendo-lhe a oferta de ali se instalar como hóspede.

Stephen recusa, mas a proposta paira como uma possibilidade implícita, cujo raio de alcance é capaz até de renovar a relação entre o casal Bloom: mesmo depois de horas com um amante vigoroso, Molly, que fora servida pelo marido no começo do dia, acaba sendo intimada a fazer o mesmo por ele no dia seguinte. Pois embora tenha havido certas demonstrações de menosprezo por Poldy (o anti-semitismo é exposto cruamente ao longo de Ulisses), entre outros motivos devido a um mal entendido com uma dica de aposta em corridas de cavalos (evocando a astúcia meio desonesta de Ulisses e o Cavalo de Tróia), embora tenha sido um dia de consumação adúltera consentida, e embora Molly inicie o célebre monólogo que fecha a narrativa depreciando as peculiaridades do marido, o fato é que Leopold Bloom deita-se na cama, ao final, no cômputo dos vestígios do dia, como um vencedor, aquele que prevaleceu, mesmo que seu heroísmo tenha sido vencer cada hora desse dia, tendo sido visto em todos os aspectos de um ser humano, até o ponto da defecação e da masturbação ou, num pólo oposto, da alucinação.

outra capa de ulisses

Boa parte de Ulisses não oferece problemas ao leitor mais experimentado, ainda que exija muito dele. Os monólogos interiores das personagens (Stephen na praia, Molly na cama), a cena do enterro (na qual se mostra os mortos muito presentes para os vivos, idéia que domina o conto mais famoso de Dublinenses e que fará praça no posterior e muito joyceano Ironweed, de William Kennedy), as vastas cenas do jornal e da biblioteca (esta última centrada em Shakespeare e Hamlet).

E a lírico-perversa cena em que Bloom se masturba contemplando Getty MacDowell na praia, descobrindo, desiludido (como o Brás Cubas de Machado de Assis com relação a Eugênia, a flor da moita) que ela é coxa (há um reaparecimento dela na zona do meretrício, mais tarde), e a pungente cena em que Bloom ouve o pai de Stephen cantando com sua bela voz, na taberna, e na qual vemos um mundo de possibilidades desperdiçadas numa geração (o que também é muito forte no monólogo de Molly), transcendendo aquele bando de beberrões truculentos do qual o senhor Dedalus faz parte, e a cena pós-noitada, em que aparece um falso Ulisses (o marinheiro mentiroso) em sua volta para casa, e depois sua rebarba, já na casa dos Bloom.

Entretanto, três seqüências quase fazem naufragar a persistência do leitor, de tão difíceis: a cena em que um Cidadão meio alegórico (hostil a Bloom) e equiparado ao ciclope Polifemo através da “garganta”, ou seja, da retórica agigantada; a maior parte da cena da maternidade, na qual se faz o parto da língua inglesa moderna, a partir da paródia de vários estilos, desde o mau latim dos cronistas do início da cristandade, e que na verdade era virtualmente intraduzível; a cena da alucinação de Bloom no puteiro. O que irrita nelas, basicamente, é a necessidade de recorrer a estudiosos para entendê-las minimamente. A tradução de Houaiss também não ajuda em nada.

Em leituras anteriores, eu me identificava com Stephen Dedalus. Certamente por efeito do tempo, agora me sinto mais na pele de Poldy, o marinheiro das ruas de Dublin, esse maravilhoso personagem com “um plano multiacarinhado que ele tencionava um dia realizar numa quarta-feira ou sábado, de viajar para Londres,via alto-mar, para não dizer que jamais houvera viajado  extensivamente nenhuma grande extensão pois que ele era de coração um aventureiro nato ainda que por um logro dos fados tivesse consistentemente permanecido como marinheiro de água doce”.

(resenha publicada na véspera do centenário do Bloomsday, 15 de junho de 2004,  em A TRIBUNA de Santos) notinha pueril:  eu tinha 38 anos

 

 

11/06/2012

O Livro do Mundo e o heroísmo do cotidiano

De todos os acontecimentos literários importantes de 1922 (e são muitos) o principal é Ulisses, de James Joyce (1882-1941), um dos livros que mais justificam uma bela definição de Osman Lins (em A rainha dos cárceres da Grécia“romance: mundo imerso no mundo”). Ao recortar  “do mundo” um dia da vida de Dublin (16 de junho de 1904), Joyce deu forma a um imenso universo literário e recriou a Odisséia de Homero, mostrando que heroísmo é enfrentar o dia-a-dia.

O livro começa com Stephen Dedalus (de Um retrato do artista quando jovem), que se sente culpado com a morte da mãe e a miséria da família, mas está preocupado muito mais em não ser  engolfado pelo marasmo em que se debate a Irlanda. Portanto, Stephen, que é um candidato a escritor (e alter ego de Joyce) luta contra várias dependências emocionais e intelectuais: contra a dependência familiar, nacional e lingüística.  Depois dele, apresenta-se para nós Leopold Bloom, corretor de anúncios para jornal, judeu, casado com uma cantora de segunda categoria, Molly Bloom, com quem não teve mais relações sexuais desde que o filho deles morreu, ainda criança.

Como Ulisses é uma imagem da vida real, mundo imerso no mundo, acompanharemos tudo o que se passa na mente e no corpo de Bloom: ele pensa, come seu desjejum, defeca, sai pelas ruas de Dublin, vai a um enterro, ao jornal onde trabalha, a um banho público, pensa em masturbar-se, almoça, vai à biblioteca, a uma taverna (enquanto isso, sua mulher encontra-se com o amante, Blazes Boylan), à praia, onde efetivamente se masturba, ao hospital e depois à zona do meretrício, antes de voltar para casa. Nessa trajetória, ele encontra indiretamente Stpehen várias vezes, antes do encontro verdadeiro, no qual vai se estabelecer o que muita gente considera o tema central do romance: a procura de um pai espiritual por parte de Stephen e de um filho simbólico para o casal Bloom.

E por que Bloom seria um candidato ideal para preencher tal papel? Porque ele tem o heroísmo de enfrentar o cotidiano com a delicadeza e a sutileza de um gato (tem em comum com esses felinos, também uma certa rejeição por parte da maioria das pessoas). De toda forma, o encontro para o qual a narrativa vai se armando simboliza também o destino fechado de Bloom (já adaptado ao marasmo) e o destino aberto, prenhe de possibilidades, de Dedalus (afinal, o grande arquiteto escapou da prisão).

      Ulisses não termina aí. Ainda falta o momento mais célebre do romance, quando temos acesso aos pensamentos de Molly, a senhora Bloom, num processo chamado de fluxo de consciência, cuja função é transformar o texto numa aparentemente caótica corrente de associações mentais. O romance que nos fez tatear labirinticamente por Dublin ao longo do dia, termina numa atmosfera de sonolência, de semi-sonho, adequada a um autor que admira Shakespeare. E não foi o autor de A tempestade (e de Hamlet, tão citado ao longo de todo Ulisses) que colocou na boca de um de seus personagens “somos feitos da matéria com que são feitos os sonhos”? Ou, como pensa Dedalus (com Aristóteles na mente, como conhecedor de São Tomás de Aquino, por formação jesuítica): “na escuridão da minha mente uma preguiça de inframundo, relutando, avessa à claridade, remexendo suas dobras escamosas de dragão. Pensamento é o pensamento de pensamento. Claridade tranqüila. A alma é de certa forma tudo que é: a alma é a forma das formas. Tranqüilidade súbita, vasta, candescente, forma das formas”.

Infelizmente, graças aos esforços de uma panelinha de tradutores vanguardistas xiitas . Ulisses ficou famoso no Brasil mais por causa de mirabolantes técnicas lingüísticas do que pelo seu lado de representação admirável do mundo real.

É evidente que toda obra literária é uma construção lingüística (e, no Brasil, quem pode esquecer de Grande Sertão: veredas e sua peculiar linguagem?), e a de Joyce mais que qualquer outra, porém pode-se abordar Ulisses “apenas” como um dos romances totais da nossa época, em que um máximo de representação da realidade dá a impressão de que a vida toda está contida neles. Esse é, aliás, o aspecto preferencial (o de representação, não de experimentação lingüística para iniciados) que eu resolutamente prefiro extrair desse livro extraordinário e difícil.

É por isso que a tradução de Antônio Houaiss (ao contrário da do português João Palma-Ferreira) é tantas vezes detestável. Ela ajuda a tornar mais ilegível e distante o texto de Joyce para o leitor brasileiro. Até Augusto de Campos, um dos gêmeos-mórbida semelhança do Concretismo (um dos movimentos mais chatos e autovangloriadores da nossa literatura, e que parece ter feito de Joyce uma possessão particular) reconheceu: Houaiss exagerou na dose, criando palavras feias, de sonoridade desagradável e pesada, que não ajudam em nada o texto: “cordissentidos”, “pluvirociada”, “marifrígidos”, “frescamaciadas”, “oculivacuna”, “cintibrilhichispeantes”, “subobscurainfra”, “cheiilambigrudosos”, só para citar algumas soluções medonhas da tão celebrada (a)versão.

Ao leitor que ultrapassar tais inconvenientes sobrará a sensação de estar lendo o Livro do Mundo e alguns momentos da mais alta poesia: “tal qual ele era eu, esses ombros caídos, essa desgraciosidade. Minha infância aconchega-se ao meu lado. Muito longe para eu pousar nela a mão uma vez ou de leve. A minha é distante, a dele é secreta, como nossos olhos. Segredos, silentes, pétreos, moram nos palácios sombrios dos corações de ambos nós dois; segredos exaustos de sua tirania; tiranos desejosos de serem destronados”.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em oito de abril de 1997, nos 75 anos do livro)

13/05/2012

TODOS OS CAMINHOS LEVAM A DUBLIN

 

“James Joyce desceu num autocarro em Berlim  e disse: esta não é a minha cidade. Não vejo Bloom.

    Há escritores que moram em personagens como há putas que moram em esquinas. James Joyce era um homem que morava em Bloom.

   De resto, havia um amigo de todos que era o homem mais lento do mundo: demorava mais de seiscentas páginas a percorrer um dia…”  (verbete James Joyce, em Biblioteca, de Gonçalo M. Tavares)

“… Digo-te que Bloom faz bem em baixar-se quando a bala vai direto à cabeça, e faz bem em manter a cabeça firme quando o beijo vai direto aos lábios. Admiro Bloom por saber distinguir, com perfeição, a bala do beijo. Bom Bloom, esperto Bloom, não-a-largues Bloom” (verbete Enrique Vila-Matas, id. ibid.)

“A única angústia de homem sensato é a angústia da não influência. Se o teu quarto de hotel entre os vivos for vizinho de habitantes imbecis, muda a direção da cama, para que pelo menos em sonhos sejas influenciado por diferente vento.

   (…) O balde brutal, vazio, no centro de uma casa de telhado fraco, anuncia a  chuva que aí vem. O balde pode ser, em objeto, o profeta que Sócrates foi para os gregos.

   Bêbado de biblioteca, Bloom (James Joyce-Bloom) baixa as calças-Bloom e abandona sobre o chão-Bloom uma urina-Bloom culta. Dir-se-ia mesmo não fosse ela urina simplesmente.

   A vantagem das idéias em relação  à rima é que as idéias rimam em qualquer língua, enquanto a rima não. O som é menos traduzível que o raciocínio…” (verbete Harold Bloom, id. ibid)

(resenha publicada, de forma mais condensada, em A TRIBUNA de Santos, em 14 de junho de 2011)

Se antes era a Roma que todos os caminhos levavam, parece que agora (pelo menos em se tratando da literatura pós-1922), o destino de todos eles é mesmo Dublin. É o que se depreende da leitura do mais recente romance de Enrique Vila-Matas, Dublinesca.

O protagonista, Samuel Riba, é um editor apaixonado por literatura (e portanto sem muita esperança de lucro) que teve de encerrar seu negócio em Barcelona.  Dois anos de inatividade, embora o tenham afastado do álcool (que ativava sua “persona” social), deixaram-no numa espécie de vácuo. Enquanto a esposa se inclina para o budismo, ele não consegue recuperar o entusiasmo de viver e uma identidade que perdera ao se tornar um “catálogo de autores”. Passa os dias no computador, consultando o Google, transformando-se (como ele mesmo caracteriza-se) um hikikomori, um autista informático. Isola-se, perde seus contatos e espanta a vizinhança com sua aparência de morto-vivo (além de preocupar os pais nas visitas semanais que faz a eles), nas poucas vezes que sai às ruas de uma cidade onde a chuva se faz cada vez mais presente. É como se o mundo enfrentasse um novo dilúvio, como se estivéssemos num clima de final de mundo.

Instado pelos pais a falar de seus “planos futuros” (apesar de que, às vésperas dos 60 anos, se sinta velho e acabado), Riba de repente tem a idéia de fazer no bloomsday um funeral da literatura e da era de Gutenberg (devoradas pelo triunfo digital), que teriam chegado ao auge justamente na genial construção de Ulisses, cujo famoso capítulo do enterro de Paddy Dignan, acompanhado por seus compasses dublinenses, serviria como inspiração para esse singular réquiem. Para a empreitada, Riba convida alguns amigos.

Uma vez em Dublin, Riba se sente mais e mais acossado por fantasmas e aparições (embora o universo de Dublinesca e de Vila-Matas sejam mais de desaparições, seres, coisas e valores que vão obliterando-se nessa nossa época “apocalíptica”), e uma delas é uma figura idêntica ao jovem Samuel Beckett, o qual resolvera adotar a sua linguagem destrutiva porque Joyce já tinha “feito tudo”.

Assim, temos o encontro do auge da representação romanesca (Ulisses) e a ressaca pós-modernista (a partir da obra de Beckett), toda a linhagem mapeada por Vila-Matas de artistas (escritores, cineastas, músicos, pintores e criadores inclassificáveis) cuja missão é capturar “o que acontece quando parece não acontecer nada”. Se Joyce transformou o trivial cotidiano em epopéia modernista, ao explorador dessa supernova digital que devorou a chamada “Galáxia de Gutenberg” (McLuhan, cujo centenário se comemora neste 2011) resta o quê? “Mesmo assim continuará imaginando. Desolação, solidão, miséria ao rés do chão. Instalado no pior do pior…”

   Ou, como diz Beckett “O que restará de toda esta nossa miséria? Afinal, só uma velha puta passeando com uma gabardina irrisória, num dique solitário, debaixo da chuva”.

Com a nota pessimista das citações acima, e com sua teia de referências e citações[1], Dublinesca pode criar no leitor a expectativa de uma leitura pesada e indigesta. Muito pelo contrário: o grande escritor espanhol consegue fazer um romance lírico, poético e até “comovente” (estou consciente do risco que corro ao empregar essa palavra a princípio tão deslocada na tessitura textual predominantemente irônica de Vila-Matas). É como se o uruguaio beckettiano e dissolvente Juan Carlos Onetti (de A vida breve) tivesse sido banhado pelo universo mais terno e humanista de seu conterrâneo Mario Benedetti (de A trégua); ou, como se aqui no Brasil, João Cabral de Melo Neto se retemperasse nas águas de Drummond.

Dessa forma, o mundo morto-vivo, fantasmagórico, insubstancializado, do editor espanhol que perdeu sua razão de ser e vai fazer o funeral da literatura no dia mais importante de Dublin, acaba fazendo desse desfile fúnebre uma luta pela vitalidade e pela renovação: “Sempre aparece alguém que nunca se espera”.  Pode ser a morte, mas também pode ser a vida. Uma lição aquém da radicalidade beckettiana, entretanto digna de Joyce: o cadáver que de repente surpreende com sua regeneração: A chuva pode cessar, but “riverrun, past Eve and Adam´s, from swerve of shore to bend of bay…”


[1] Sem querer fazer um levantamento exaustivo, temos—além de Joyce e Beckett, alguns  bastante famosos (Borges, Pessoa, Nabokov,   Oscar Wilde, Italo Calvino, Marguerite Duras, Cortázar, Melville,  Paul Auster,  Antonin Artaud, Dylan Thomas, Nietzsche, Yeats,  Proust Emily Dickinson), outros nem tanto (Hugo Claus, Claudio Magris, W. G. Sebald, Julien Gracq, Robert Walser, Georges Perec, Carlo Emilio Gadda Maurice Blanchot,, Jules Renard, Flann O´Brien, Siri Hustvedt,  Mark Strand,  Roberto Bolaño,  Julian Barnes,  Perer Handke, John Banville), outros bem mais para desconhecidos (Mark Strand, Idea Vilariño, Augusto Monterosso, José Emilio Pacheco, Claire Keegan,Joseph O´Neill, o grande tradutor J. Salas Subirat , Brendan Behan, Colum McCann), e outros que são citados e que não achei no tão amado Google de Riba (Larry O´Sullivan, Andrew Breen, Hobbs Derek, Vilém Vok);além dos escritores, temos os cineastas David Cronenberg (e seu filme Spider), Charles Walters (High Society), Antonioni (O deserto vermelho), John Ford, a atriz Catherine Deneuve, entre outros; também os músicos Tom Waits, Bob Dylan, Johnny Cash, a cantora Billie Holliday; temos o pintor Vilhelm Hammershoi (ver quadros abaixo), a criadora de instalações Dominique Gonzales-Foerster. E há as referências constantes à Marshall McLuhan e sua “Galáxia de Gutenberg” e ao “Teatro de Oklahoma”, que evidentemente nos evoca Kafka (de  Amerika ou O Desaparecido, onde no entanto é grafado como Teatro de Oklahama).

É bom lembrar que o poeta Philip Larkin tem um poema (sobre o enterro de uma velha prostitura) que, entretecido com o bloomsday e trechos de Beckett compõem toda uma mitologia da literatura no romance:

“Pelas vielas de estuque

onde a luz é cinzenta

 e a névoa da tarde

acende a luz das lojas

sobre rédeas e rosários,

passa um funeral.

O carro segue à frente,

mas atrás, acompanhando,

uma tropa de rameiras,

com largos chapéus floridos,

mangas-presunto

e vestidos até os pés.

Há um ar de grande amizade,

como se homenageassem

alguém que lhes é querida;

algumas dançam uns passos,

hábeis levantando as saias

(alguém bate o ritmo com palmas),

e de grande tristeza também.

Quando seguem seu caminho

uma voz se ouve cantando

sobre Kitty, ou Katy,

como se o nome um dia evocara

todo amor, toda beleza.”

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