MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

22/07/2011

O VALE DAS CINZAS

 

Azar Nafisi tentou manter a literatura como atividade lúcida e lúdica em meio ao furor fundamentalista que lhe tirou a possibilidade de trabalhar como professora no Irã. Os leitores brasileiros não vivem sob nenhum regime antidemocrático. Nem por isso têm acesso a várias das obras mencionadas no livro de Nafisi, Lendo Lolita em Teerã.

Felizmente, O Grande Gatsby, cujo “julgamento” encenado pelos alunos da autora iraniana (quando lhe era permitido dar aulas) ocupa a segunda parte do livro, ganhou recentemente duas novas traduções: a de Roberto Mugiatti para a Record e a de William Lagos para a L&PM (há uma tradicional versão de Brenno Silveira, já publicada por várias editoras). Ainda bem, pois esse notável romance de 1925 transformou-se no paradigma da visão que os norte-americanos têm de si mesmos e que temos deles.

E isso com a banal história do pobretão que enriquece contrabandeando bebidas, tornando-se famoso por suas festas, embora na verdade só queira reconquistar seu amor do passado, a nebulosa Daisy Buchanan, a qual não consegue se desligar da vida acomodada e esnobe que leva com o marido (enquanto este a engana descaradamente com a mulher de um mecânico).

O narrador é Nick Carraway (que na sofrível versão de Jack Clayton era vivido pelo grande Sam Waterston, a melhor coisa do filme, eclipsando totalmente o casal de astros, Robert Redford e Mia Farrow), cujo envolvimento com o sonho romântico de Gatsby em torno de Daisy nos permite ver como os famosos valores americanos, sempre fortemente arraigados no provincianismo e no puritanismo, são dissolvidos na passagem do Oeste (origem dos personagens do livro) para o Leste.

O enredo se concentra em Nova York e arredores, no contraste entre o brilho da cidade grande e o vale de cinzas (uma região degradada e deprimente que todos têm de atravessar para alcançá-la de Long Island), o qual, em última instância, é sempre onde tudo ganha sua medida final.

Azar Nafisi, em sua defesa do livro no “julgamento”, diz¨”A cidade, como Daisy, tem nela mesma uma promessa, uma miragem que quando é atingida se torna degradada e corrompida. A cidade é o elo entre o sonho de Gatsby e o sonho americano. O sonho não diz respeito apenas ao dinheiro, não se trata de uma análise sobre a América como  um país materialista, mas como um país idealista, que transformou o dinheiro num meio de recuperar o sonho. Não existe nada grosseiro aqui, ou o grosseiro é tão misturado ao sonho que se torna muito difícil diferenciar os dois. No final, todos os melhores ideais e todas as mais sórdidas realidades acabam juntos.”

E, lógico, há a beleza incomparável do estilo de Fitzgerald (além do soberbo e inaparente exercício narrativo) que faz uma história de desilusão romântica terminar como visão de um sonho civilizatório ambíguo (quando Nick observa o Estreito de Long Island, após o melancólico funeral de Gatsby, assistido por quase ninguém, ele que era anfitrião de festas nababescas e com incontáveis convidados), de uma forma quase tão poderosa quanto o que Conrad mostrou ao descrever o Tamisa no início de O coração das trevas.

O grande Gatsby é uma obra-prima desesperada e pungente. Nick fica contente de ter feitor a Gatsby um único elogio (“você vale mais do que eles todos juntos”) porque o “reprovava do começo ao fim”. É essa a empatia que todo grande romance cria e que é tão bem descrita por Azar Nafisi, ecoando Harold Bloom: “Não podemos experimentar tudo o que os outros vivenciaram,mas podemos compreender mesmo os indivíduos mais monstruosos. Um bom romance é aquele que mostra a complexidade dos indivíduos e que cria espaço suficiente para que todos eles tenham uma voz; desse modo, um romance é chamado de democrático, não porque defenda a democracia, mas porque ele é assim, por sua natureza. A empatia está no âmago da questão, no âmago de Gatsby, como no de tantos outros romances; o maior pecado é ficar cego diante dos problemas e sofrimentos de outras pessoas. Não enxergar esses problemas e sofrimentos significa negar sua existência.”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de dezembro de 2004)

 VER TAMBÉM NO BLOG:

https://armonte.wordpress.com/2011/07/22/lendo-azar-nafisi-na-baixada-santista/

https://armonte.wordpress.com/2011/07/22/alcapoes-invisiveis-de-onde-surge-a-borboleta-esquecida-da-revelacao/

Lendo Azar Nafisi na Baixada Santista

 

Meu receio diante de um livro como Lendo Lolita em Teerã [tradução de Tuca Magalhães, editora A Girafa] era que usasse a literatura apenas como um enfeite para um martirológio das mulheres no regime fundamentalista que se apossou do Irã..

Na página 288 da edição brasileira do livro de Azar Nafisi pode-se ler: “Minha amiga Mina me relembrou que no livro The tragic muse, Henry James explica que, quando escreve, seu objetivo é produzir a arte como uma complicação humana e como um obstáculo social. Isso é o que o torna tão difícil.  Mina era uma especialista em James e contei-lhe das dificuldades dos meus alunos com Daisy Miller. Ela acrescentou com uma certa ansiedade: Espero que não esteja pensando em tirá-lo do curso porque ele é difícil.  Eu lhe assegurei que não tinha essa intenção; de qualquer modo, não era porque fosse difícil para eles, mas sim por que os fazia se sentirem desconfortáveis… dizem que não precisamos de James, mas o que realmente querem dizer é: temos medo desse senhor James, ele surpreende, atordoa, confunde, inquieta um pouco”.

Nem é preciso chegar a esse ponto para compreender que, para Azar Nafisi, a literatura jamais ficaria em segundo plano. Desde as primeiras páginas, quando conta como deixou  (por imposição externa) de ser professora universitária no Irã e começou um clandestino grupo de estudos com algumas moças (a inclusão de um homem despertaria suspeitas), tendo Nabokov, autor de Lolita, como espírito tutelar, relatando também o cotidiano das discussões, as experiências pessoais das participantes, e depois ampliando o leque para abarcar sua trajetória de vida, a observação social não impede instigantes análises literárias (de obras de Nabokov, de Scott Fitzgerald,  de James, de Jane Austen). Isso não impede que tomemos contato com uma realidade quase surreal. Um exemplo: Negar, filha de Azar, está numa aula quando irrompem a diretora e a professora de moralidade (!).: “A classe inteira foi escoltada para fora da sala, suas mochilas foram vasculhadas à procura de armas e contrabando., fitas, romances, braceletes de amizade.  Seus corpos foram examinados cuidadosamente, as unhas inspecionadas.  Uma aluna, uma menina que acabara de voltar dos Estados Unidos, foi levada à sala da diretora, suas unhas estavam muito compridas….A própria diretora as cortou tão curtas que sangraram… Para Negar o fato de sequer poder chegar perto da amiga para consolá-la  dói tão ruim quanto o trauma da revista. Ela continuava repetindo, mamãe, ela simplesmente não conhece todas as nossas normas e regras, como você acha que ela se sente quando eles nos forçam a pisar a bandeira americana e gritar Morte aos Estados Unidos?”

Por causa desse estado de coisas, o grupo de leitura é formado “numa tentativa de, a cada semana, escapar do olhar fixo do censor cego durante umas poucas horas…não importa quão repressor o Estado se tornara, não importa o quanto estivéssemos intimidadas ou amedrontadas, tentamos escapar e criar nossos próprios pequenos bolsões de liberdade, como Lolita. E, como Lolita, aproveitamos todas as oportunidades para exibir nossa insubordinação:  uma pequena mecha de cabelo à mostra sob os véus, um pouco de cor insinuada na monótona uniformidade da aparência, as unhas compridas, apaixonando-nos ou ouvindo músicas proibidas”.

Lendo Lolita em Teerã tem feito muito sucesso. Para os leitores de Lolita, de O grande Gatsby, dos livros de Henry James e de Jane Austen do mundo inteiro, nada mais merecido.

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 23 de novembro de 2004)

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