“De vez em quando, tenho necessidade de ficar muito quieto. Não naquele momento: eu chorava no meio da avenida Paulista para ver se alguém vinha me abraçar e assim me ajudava a conservar, pregada à carne viva do meu corpo, o restinho de pele que minha ex-mulher tinha deixado. Ninguém.” (Ricardo Lísias, Meus três Marcelos)
“Acho que o diário e o que minha ex-mulher fez no Festival de Cannes me feriram tanto porque, ao me descarnar, minha interioridade ficou completamente exposta.” (Ricardo Lísias, Divórcio)
“Tenho curiosidade por saber o que vou escrever daqui a cinco anos”. (idem)
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 13 de agosto de 2013)
MEUS TRÊS RICARDOS
Em Divórcio o protagonista afirma: “meu corpo estava sem pele”, logo na primeira página. Com a pele arrancada (que vai se recompondo conforme ele se recupera do trauma do seu sórdido divórcio e fortalece sua técnica de corredor para participar da São Silvestre de 2011, quando terminará sua provação pessoal e começará, com o ano novo, a escrita do romance intitulado Divórcio), ele, Ricardo Lísias, o personagem, se descola do próprio autor, embora ainda não se transforme de pronto no futuro narrador do livro, frente ao qual ele diz “Estou de fato dentro de um texto que escrevi”[1], e que repassará toda a agônica experiência[2] de traição, separação e superação em quinze capítulos, que constituem como momentos de uma prova de pedestrianismo em que os três Ricardos se equacionam e se interpelam. Então, divórcio é também uma metáfora para a separação que se opera entre a própria pele e a dos caracteres que se cria num universo ficcional.
Este deveria ser o clímax da série de experimentos notáveis que Ricardo Lísias (o autor) encetou após a publicação de O Livro dos Mandarins (2009), com a chamada autoficção. Trata-se, aliás, da extrapolação do conto Meus Três Marcelos (2011)[3]: o indiscretamente lido diário da esposa reduz Ricardo Lísias, o personagem, a um papel infantilizado e autista: ela (reproduzindo o comportamento de uma determinada faixa social que “se deu bem” no Brasil pós-FHC e Lula[4]) serve-se do seu status de escritor prestigiado, enquanto o trai sem culpa:
“Por que eu disse sim? Acho que nem este livro vai me dizer. Poucas coisas são mais ridículas, e de novo clichês, que gente que subiu na vida trabalhando. Aceitei casar com uma pessoa que progrediu com o próprio suor…
Os bem-sucedidos, que começaram a se tornar muito presentes nos anos do governo de Fernando Henrique Cardoso e se solidificaram com Lula, sempre foram alvo do meu desdém. De repene, eu estava no meio de pessoas que deram certo na vida. Uma galera que ganhou dinheiro trabalhando…”
Em contrapartida:
“Tenho 36 anos e uma renda, há algum tempo, que me permite figurar entre os privilegiados. Mesmo assim, nunca fiz nenhuma aplicação financeira. Não guardo dinheiro. Compro livros com tudo o que me sobra. Jamais quis ter um carro ou me preocupei em comprar uma casa. Já gostei de algumas mulheres e ainda vou encontrar um grande amor para ter filhos e passar o resto da vida.”[5]
Ao longo dessa fase “autoficcional”, na qual se destaca O Céu dos Suicidas (2012), Lísias confirmou-se como o grande nome da sua geração (ele nasceu em 1975), com belos marcos para comprovar sua “liderança” nessa “corrida” imaginária, a partir da estreia em 1999 (Cobertor de Estrelas, que já era ótimo), movimentando-se com destreza desde as mais estreitas vias do conto e da novela até as avenidas mais largas do romance, trilhadas com uma desenvoltura que resultou num romance tão esplêndido como O Livro dos Mandarins.
O novo romance, nessa trajetória, representa um tropeço, um passo em falso. Não só fica a dever a Meus Três Marcelos no impacto e eficácia da dramática e um pouco torpe situação aí evocada-simulada, como deixa a desejar num aspecto em que Lísias sempre se mostrou um craque: a adoção do tom exato para a sua narrativa, por mais que ela nos levasse pelos caminhos do caos e da desagregação da mente e da linguagem dos personagens (sequer seu gosto de desdobrar seus relatos e criar-rememorar incidentes que parecem nada ter a ver com o eixo central mostra-se bem calibrado desta vez).
Pode-se objetar que Divórcio é escrito num diapasão ainda mais experimental do que os anteriores, com sua releitura em espiral dos mesmos elementos, à medida que o personagem vai ficando mais fortalecido e passando o bastão para o narrador, e talvez então se trate de uma não-identificação minha com o texto enquanto leitor (mesmo sendo admirador contumaz dos textos de Lísias, há alguns anos um dos meus ficcionistas favoritos), de uma simples (e total) falta de empatia com esse pôr-se a nu (ou “ficar sem pele”, para ficar nos termos do relato), que me parece artificioso, no pior sentido da palavra. Há um momento em que o livro chega a crescer, quando narra as reações hostis à utilização do diário da esposa por parte do personagem, a revolta contra o uso de eventos pessoais na “ficção”(“a situação mudou e os fofoqueiros passaram a achar um absurdo que tudo que me contaram fosse registrado. Um deles disse que eu esta indo longe demais. Para que ser tão radical? (…) a fofoca precisa continuar apenas fofoca, já que as pessoas são assim mesmo, o Brasil funciona desse jeito e ´todo mundo tem a sua zona cinzenta´”)[6]; no geral, ele me deixou a impressão de “mais do mesmo”: o que despontava, na largada, como uma experiência ainda mais “radical”, na chegada aparece com todos os sintomas da diluição.
No entanto, é bom mesmo que se trace uma fronteira nítida entre autor e personagem/narrador. Pois não é possível que Lísias-autor tenha opiniões tão pueris, estreitas e mal formuladas sobre, por exemplo, o adultério (“Adultério é para gente vulgar. Sexo, depois da adolescência, só é bom se tiver afeto junto”)[7] ou a variação de pontos de vista na narrativa do século XX, relativizando a “verdade”[8], ou ainda se permita descrições sexuais tão constrangedoras[9]. Aí, parece que o descolamento de pele foi total. E Divórcio se ressente de ela não ter se recomposto a contento nas transfusões entre os três Ricardos. De qualquer forma, é apenas um momento menor de um talento de quem nos habituamos a esperar o máximo. Também tenho a maior curiosidade por saber o que ele escreverá daqui a cinco anos.
VER TAMBÉM NO BLOG:
https://armonte.wordpress.com/2012/12/11/destaque-do-blog-duas-vezes-o-ceu-dos-suicidas/
e sobre Lísias e a autoficção:
[1] “…lembrei do primeiro conto que escrevi na vida, há mais de dez anos, a personagem também repassava na cabeça uma série de coisas para tentar manter a lucidez. Estou de fato dentro de um texto que escrevi.”
[2] “Descarnado, o tempo inteiro eu esperava alguém se aproximar e me dar uma explicação. Um corpo sem pele não consegue achar nenhuma resposta (…) O mundo oferece muito pouco para as pessoas que estão muito vulneráveis.”
[3] Há um conto chamado Divórcio, publicado na PIAUÍ, mas eu não o li ainda.
[4] “Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance. O crescimento brasileiro dos últimos anos correu muita gente em troca de um apartamento próprio, um emprego com salário de dez mil reais e outros duzentos e cinquenta mil no banco.”
[5] O que me leva a especular que Adriano Schwartz em sua resenha do livro na Folha foi muito comedido ao indicar a presença de um “leve” tom panfletário.
[6] Esse assunto do aproveitamento do material da realidade sempre fascina, e me traz à memória o bafafá com o aparecimento dos primeiros (que depois acabaram sendo os únicos encontrados) capítulos de Preces atendidas, o indiscreto romance derradeiro de Truman Capote, que determinou seu ostracismo social no final da vida.
[7] Convenhamos, o próprio termo “adultério” já é um pouco risível e só na época de Bentinho poderia ser usado sem fazer alguém corar. E toda essa caracterização de “gente vulgar/” ou mais genericamente, “vulgaridade”, faz parte de um pacote panfletário que o discurso de Divórcio não absorve. Ele teria de ter um escopo mais radicalmente moralista (mesmo que não se concordasse com ele), ou pelo menos mais dissolvente (como o que Alexandre Dal Farra atinge em Manual da Destruição) para ser menos superficial.
[8] “Sempre me irritaram os romancistas que pretensamente ´retratariam o ponto de vista do outro´. Aqueles que dão espaço para posições contrárias apresentam vários pontos de vista e relativizam tudo. Parte da teoria literária os tomou como grandes artistas justamente por conta disso: eles não acreditam apenas no próprio ponto de vista e suas personagens e situações sempre mostram o outro lado da moeda. A disseminação desses chavões é normal até nos meios mais especializados. A desonestidade me parece evidente. Os vários pontos de vista são criados pelo mesmo autor e a leitura é determinada por ele. Os mais competentes simplesmente ocultam essa enorme manipulação”. Ora, ora, aqui está sendo confundindo um processo (ou melhor, um procedimento) técnico com um postulado ético. Não sei por qual motivo o foco narrativo variado teria de necessariamente indicar um relativismo moral por parte do autor (Faulkner que o diga). Parece-me que é uma conquista da técnica narrativa para evitar maniqueísmos psicológicos estritamente literários. Agora, seu uso por escritores de segunda e acadêmicos universitários, é outro assunto. Não tem muita serventia fazer declarações generalizantes, tanto quanto dizer que “No estágio atual da ficção, é preciso que o esqueleto de um romance esteja inteiramente à vista” !!!??? Ou ainda: “A transcendência quase sempre está na palavra não”!!!??
[9] Em larga medida por causa da terminologia adotada, que aniquila inapelavelmente um texto literário. Ricardo ainda utiliza “pau”, mas temos de aguentar “vagina”, “ânus”, o rapaz foi “penetrado” e outras pérolas pudicas e formalistas que, faça-me o favor! Creio que em geral, mas especialmente num discurso rancoroso e íntimo, caberiam melhor “buceta”, “cu”, “enrabado”. Novamente creio que Alexandre Dal Farra foi muito mais feliz (apesar de toda a “negatividade” do discurso) em Manual da Destruição e creio que A fúria do corpo, de João Gilberto Noll, continua sendo o paradigma (pelo menos, na ficção brasileira) do registro literário de cunho sexual minimamente convincente e natural.