“A vida biológica e social tem uma propensão muito profunda para se fixar na sua imanência: os homens aspiram simplesmente a viver e as estruturas sociais a manter-se intactas; e o afastamento, a ausência de um Deus ativo tornaria onipotente a inércia dessa vida que se basta a si mesma e se abandona em paz à sua própria estagnação se não acontecesse aos homens, dominados pelo poder do demônio, elevar-se por vezes acima de si mesmos—de uma maneira infundada e infundável—e renunciar aos fundamentos psicológicos e sociológicos da sua própria existência. É então que esse mundo abandonado por Deus se revela de repente como privado de substância, mistura irracional, simultaneamente densa e porosa; o que parecia mais firme quebra-se como argila seca sob os golpes do indivíduo possesso, e a transparência vazia que deixava entrever paisagens de sonho transforma-se bruscamente numa parede de vidro contra a qual, vítimas de uma vã e incompreensível tortura, nos chocamos como a abelha contra o vidro, sem conseguir furá-lo, sem querer perceber que aqui não há caminho…” (Lukács, A teoria do romance)
“…nesta época estranha a inteligência parece estúpida e a estupidez inteligente, e torna-se salutar desconfiar de ambas por questão de prudência….” [1](Lobo Antunes, MEMÓRIA DE ELEFANTE)
Caiu um pouco em desuso, hoje em dia, mas creio ainda ser válida a forma como aprendíamos as diferentes funções da linguagem, com sua ênfase num dos seis elementos da comunicação (emissor, receptor, mensagem, referente, canal de comunicação e código[2]).
Dentro dessa perspectiva, os romances autobiográficos seriam um produto, apesar de mais complicados formalmente, da chamada função expressiva (ou emotiva), centrada no emissor. E disso não escapam os primeiros romances de António Lobo Antunes, notadamente o de estreia, MEMÓRIA DE ELEFANTE, publicado quando ele tinha 36 anos, e onde a estratégia não é tanto disfarçar essa predominância da função expressiva (pois ainda que seja uma narrativa em terceira pessoa, é um falso foco narrativo, evidentemente, e ainda por cima desliza para a primeira pessoa, ou até para um debate entre os dois procedimentos, em diversos momentos) como em fazê-la funcionar da forma mais contundente possível.
Aliás, quando penso nos primeiros romances de Lobo Antunes (além de MEMÓRIA DE ELEFANTE, Os cus de Judas & Conhecimento do inferno), não consigo afastar-me muito das concepções sobre o romance de Lukács, mesmo sabendo que elas são, de modo estrito, mais pertinentes ao romance oitocentista do que a textos “pós-modernos”[3].
Se o meu leitor desculpar o anacronismo, é por essa trilha que irei caminhar, com o auxílio da bussola da “função expressiva” entremeada aos fios da “função poética”, aquela centrada na forma como a mensagem do emissor ao receptor é efetivada.
A narrativa de MEMÓRIA DE ELEFANTE transcorre num único dia, e se espreme entre a loucura (nos primeiros capítulos —de um total de 15— no hospício onde o protagonista atende como psiquiatra), no sentido institucional, e o azar (tanto no sentido do acaso, quanto da má sorte, no capítulo-clímax por assim dizer (os dois últimos decorrem dele), ambientado no cassino. Separado da mulher, a quem ama, com duas filhas, tendo servido na África, nas guerras coloniais, vindo de uma família burguesa muito tradicional e muito alinhada com a mentalidade salazarista, carola e fascistóide, o “psiquiatra” não nomeado sente-se “despaisado” em sua terra natal, Lisboa, e com “passado do que futuro”. Como Zavalita, protagonista de Conversa no Catedral (é “no” porque se trata de um bar), o herói de Lobo Antunes se pergunta: “Quando é que eu me fodi?”, interrogação que pode ser estendida ao país inteiro, passada a euforia da Revolução.
Ameaçado pela depressão, ele vai se arrastando dia a dia na rotina, sem se resignar porém sem se insurgir. Diz a uma enfermeira que lhe é simpática: “Deolinda, estou a tocar no fundo”, ao que ela responde: “Nunca mais tem fim essa descida?”, o que informa ao leitor tratar-se de um longo processo, ligado tanto ao fim (não por falta de amor entre as partes, mas ao que parece por uma “covardia” essencial do psiquiatra) e ao dilaceramento trazido pela experiência em Angola, quanto por não reconhecer a cidade da infância:
“Ao voltar da guerra, o médico, habituado entretanto à mata, às fazendas de girassol e à noção de tempo paciente e eterna dos negros, em que os minutos, subitamente elásticos, podiam durar semanas inteiras de tranquila expectativa, tivera de proceder a penoso esforço de acomodação interior a fim de se reacostumar aos prédios de azulejo que constituíam as suas cubatas natais. A palidez das caras compelia-o a diagnosticar uma anemia coletiva, e o português sem sotaque surgia-lhe tão desprovido de encanto como um quotidiano de escriturário. Sujeitos apertados em cilícios de gravatas agitavam-se a sua volta em questiúnculas azedas: o deus Zumbi, senhor do Destino e das Chuvas, não passara o equador, seduzido por um continente onde até a morte possuía a impetuosa alegria de um parto triunfal. Entre a Angola que perdera e a Lisboa que não reganhara o médico sentia-se duplamente órfão, e esta condição de despaisado continuara dolorosamente a prolongar-se porque muita coisa se alterara na sua ausência, as ruas dobravam-se em cotovelos imprevistos, as antenas de televisão espantavam os pombos na direção do rio obrigando-os a um fado de gaivotas, rugas inesperadas conferiam à boca das tias expressões de Montaignes desiludidos, a multiplicação de eventos familiares empurrava-o para a pré-história do folhetim de que dominava apenas os acidentes paleolíticos…”
Lobo Antunes comentou (em 1979 mesmo, no ano do lançamento do romance) essa característica da sua geração:
“Independentemente do valor que a nossa geração, literariamente, possa vir a ter ou não ter, eu penso que ela é uma geração diferente das outras, porque é uma geração marcada pela guerra colonial (…) Primeiro porque provocou um corte na nossa vida, que deixou cicatrizes que, muitas delas, não sararam. Depois, porque permitiu à nossa geração e àqueles que ainda não tinham uma consciência aguda (como em grande parte era o meu caso) aperceber-se duma determinada problemática social e política. Finalmente, permitiu (…) a aprendizagem da morte e do sofrimento, feita em moldes completamente diferentes”.
Em outro trecho, ele afirma:
“Para além de toda a experiência livresca, ou existencial ou lisboeta que tivemos, tivemos uma experiência que é original e que é única, apesar de tudo, que é a experiência da nossa geração, a experiência da guerra e do sofrimento concreto e da morte concreta, que pode ser extremamente enriquecedor do ponto de vista humano e que em certo sentido, apesar do que lá se sofreu e do que eu lá sofri, para mim foi extremamente importante, permitiu-me aperceber de uma grande quantidade de coisas, das quais, provavelmente, eu teria continuado a passar ao lado, se não tivesse sido a guerra de África.
Depois, há o problema do regresso e da sensação de despaisado que as pessoas que voltam da guerra têm. A sensação de não pertencerem nem cá nem lá, de se terem perdido naquele lugar e de não terem, ainda, conquistado lugar nenhum.”[4]
Na evocação incessante do passado, a figura da mãe aparece de forma especialmente significativa como veredicto social sobre o personagem:
“Será que cresci, que cheguei realmente a crescer, interrogou-se o psiquiatra, correspondendo com o joelho à pressão de anca da mulher do leopardo de plástico, a avaliá-lo de viés com lenta pálpebra sabida, cresci de fato ou permanecei um puto assustado, de cócoras na sala entre gigantescas pessoas crescidas que me acusam, fitando-me em silêncio numa hostilidade horrível, ou tossindo de leve, a coberto de dois dedos, a sua reprovação resignada? Deem-me tempo, pediu ele a essa roda de ídolos da Ilha de Páscoa, que o perseguia de um amor ferozmente desiludido, deem-me tempo e serei exatamente o que vocês desejam, como vocês desejam, sério, composto, consequente, adulto, prestável, simpático, empalhado, miudamente ambicioso, sinistramente alegre, tenebrosamente desingênuo e definitivamente morto, deem-me tempo…”
“…e podia bem ser que às quartas-feiras o irmão mais novo lhe desse de jantar em sua casa, acompanhando a carne assada de conselhos e repreensões.
__ A mãe sempre disse que nunca terias juízo.
E provavelmente não só nunca teria juízo como (mais grave ainda) não alcançaria a espécie de felicidade que a ausência desse esquisito atributo traz consigo, lastro sem o qual se voa aos agradáveis píncaros de uma loucura divertida, sem maçadas, sem preocupações, sem planos, ao sabor da adolescência assumida como estado de alma, como vocação ou como sina.
__ A mãe sempre disse.
A mãe sempre disse tudo. E parecia-me que o fiscal adquiria pouco a pouco o jeito profético dela, as pálpebras magoadas, a testa enrugada, o cigarro aceso espiralando na ponta do braço elipses de desistência:
__ O que é que se pode esperar deste rapaz?
Nada, afirmou em voz alta numa espécie de raiva…”[5]
Portanto, não há como o livro não ser caracterizado como um “desabafo emocional”. Sua estrutura cuidadosa, acompanhando um dia do protagonista, poderia ser um disfarce frágil desse discurso autobiográfico fácil, a forma romanesca descambando para o “lirismo”, afrouxado o imperativo épico-narrativo. Hoje, em 2012, nos é possível a perfeita visão dessa feição de MEMÓRIA DE ELEFANTE e os outros livros iniciais, quando temos todo o império edificado sob bases ciclópicas da obra vindoura, em que o romance se serve desse “lirismo”, dessas reminiscências autobiográficas, de uma forma muito irônica (na verdade, já o quinto romance de Lobo Antunes, de 1983, Fado alexandrino, inaugura esse ânimo “majestoso”). Mas em 1979 quem poderia prever que o autor estreante iria seguir caminhos tão grandiosos? Apesar do talento bruto que ali se exibia, MEMÓRIA DE ELEFANTE não deixa de ser principalmente um magma de imagens, analogias e ponderações digressivas que comprimem a experiência narrativa a um resíduo. Aqui é o lukácsiano em mim falando, e com a visão retrospectiva que as obras posteriores me possibilitaram, não se trata de uma avaliação de defeitos ou limitações. No entanto, eu penso que, passadas um pouco mais de três décadas, o livro não seria ainda tão eficiente se não fosse o sopro inaugural de um universo que se expandiu desmesuradamente. O que tem de “cru” e “latente” é o que fazem suas qualidades de um livro daquele momento, muito verdadeiro, e sua feição de livro “datado”, porque ainda muito atrelado à “função expressiva”, a essa necessidade de desafogo existencial.
A esse respeito, talvez fosse bom evocar outras palavras do grande escritor português, naquele ano de 1979:
“Simplesmente, há todo o problema da dificuldade da escrita e a minha escrita é toda muito carregada de metáforas, eu sinto-a realmente muito barroca. É-me difícil escrever doutra maneira, mas eu penso que, apesar de tudo, talvez seja possível chegar às pessoas através dessa maneira e gostaria muito que isso fosse possível”.
No romance, lemos:
“E por que é que só sei gostar, perguntou-se examinando as bolhas de gás pegadas à parede de vidro, por que é que só sei dizer que gosto através dos rodriguinhos de perífrases e metáforas e imagens, da preocupação de alindar, de pôr franjas de crochê nos sentimentos, de verter a exaltação e a angústia na cadência pindérica do fado menor, alma a gingar, piegas, à Correia de Oliveira de samarra, se tudo isto é limpo, claro, direto, sem precisão de bonitezas, enxuto como um Giacometti numa sala vazia e tão simplesmente eloquente como ele: depor palavras aos pés de uma escultura equivale às flores inúteis que se entregam aos mortos ou à dança da chuva em torno de um poço cheio: chiça para mim e para o romantismo meloso que me corre nas veias, minha eterna dificuldade em proferir palavras secas e exatas como pedras…”[o grifo é meu].
Então o desejo “eu hei-de amar uma pedra” existia desde o começo! Talvez a dificuldade desse lírico enveredando pela forma épica tenha como origem o “núcleo narcísico” (a expressão é do próprio autor de MEMÓRIA DE ELEFANTE) a que ele foi confinado desde a infância:
“Como quem enfia sem pensar a mão no bolso à procura da gorjeta de uma resposta mergulhou o braço na gaveta da infância, bricabraque inesgotável de surpresas, tema sobre o qual sua existência posterior decalcava variações de uma monotonia baça, e trouxe à tona ao acaso, nítido na concha da palma, ele miúdo acocorado no bacio diante do espelho do guarda-fato em que as mangas dos casacos pendurados de perfil como as pinturas egípcias proliferavam na abundância de lianas moles dos príncipes de Gales do seu pai. Um puto loiro que alternadamente se espreme e observa, pensou concedendo um soslaio aos anos devolutos, eis um razoável resumo dos capítulos anteriores: costumavam deixá-lo assim horas seguidas na sua chávena de Sèvres de esmalte onde o xixi pianolava escalas tímidas de harpa, a conversar consigo mesmo as quatro ou cinco palavras de um vocabulário monossilábico e completado de onomatopeias e guinchos de saguim abandonado, ao mesmo tempo que no andar de baixo a tromba de papa-formigas do aspirador sugava carnivoramente as franjas comestíveis dos carpetes manejadas pela mulher do caseiro a quem o incômodo das pedras da vesícula acentuava o aspecto outonal. Quando é que eu me fodi?, inquiriu o médico ao garoto que a pouco e pouco se dissolvia com a sua gaguez e o seu espelho para ceder lugar a um adolescente tímido, de dedos manchados de tinta, encostado a uma esquina propícia a fim de assistir à passagem indiferente e risonha das raparigas do liceu cujas soquetes o abalavam de desejos confusos mas veementes afogados em chás de limão solitários na pastelaria vizinha, ruminando num caderno sonetos à Bocage policiados pela censura estrita do catecismo de bons costumes das tias…”
Ainda que narcísica, essa exploração autobiográfica, ainda mais com a inclinação para luxúria das metáforas (e um levantamento delas na tessitura do livro mostraria que imagens como “aquário” e “crochê”, dada a sua disseminação ao longo do texto, esboçam um desenho inquietante do mundo à volta do personagem, como se ele fosse ao mesmo tempo “afogado” e “perfurante”, submerso e cheio de arestas), mesmo assim o prender-se à forma romanesca, revestindo-a de um contorno tênue, a moldura de um dia vivido, “salva” o personagem do lirismo “alienado” e impotente. Lukacs destacou o significado que a forma biográfica tem para o romance: é a “vitória sobre o mau infinito”, já que a trajetória do indivíduo “continua a ser o fio diretor ao longo do qual o mundo vem enlaçar-se e desenrolar-se na sua totalidade”. É o que sentimos ao ler MEMÓRIA DE ELEFANTE, E, à respeito dessa tensão entre o narcisismo e a apreensão do mundo, em 1979, Lobo Antunes tinha que dizer:
“É a história de um narcisista, que apesar de tudo existe um pouco em todos nós, e da solidão tremenda daí recorrente.
É terrível uma pessoa sentir-se o centro do Mundo, mesmo para si própria. Dá um alívio bestial—a gente vê isso nas análises—quando um gajo descobre que deixa de ser o centro do Mundo e que as outras pessoas são iguais a ela, que ele deixa de ser realmente o centro, o sol, a coisa mais importante. Para mim é sobretudo um livro sobre a angústia, sobre o sofrimento da solidão, para além de ser também, é evidente, uma história de amor, de amor entre o desespero e a resignação. Pelo menos é o que eu gostaria que fosse.”
Na Teoria do Romance lemos:
“O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida (…) na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscência (…) a visão capaz de perceber essa unidade é a apreensão divinatória e intuitiva do sentido da vida, inatingido e portanto inexprimível”. Por isso, toda ação interna do romance “não é senão a luta contra o poder do tempo”.

[1] Vale a pena transcrever a passagem por extenso (o grifo é meu):
“Um rebuliço de crianças junto ao portão da escola anunciou ao psiquiatra o fim das aulas: o mendigo remexeu-se, zangado, na sua manta:
__ Sacanas dos putos roubam-me mais do que me dão.
E o médico ponderou se essa frase irritada não conteria em si os germes de uma verdade universal, o que o levou a olhar para o seu sócio com um respeito novo: Rembrandt, por exemplo, não acabou muito mais próspero, e não se está livre de encontrar um Pascal no cobrador de água: António Aleixo vendia cautelas, Camões escrevia cartas na rua para os que não sabiam ler, Gomes Leal compunha alexandrinos no papel selado do notário onde trabalhava. Dezenas de prêmios Nobel em blue-jeans desafiam a polícia nas manifestações maoistas: nesta época estranha a inteligência parece estúpida e a estupidez inteligente, e torna-se salutar desconfiar de ambas por questão de prudência….” Neste momento do seu dia, o protagonista observa, escondido, a saída das filhas do colégio.
[2] O emissor manda uma mensagem para o receptor, a respeito do referente, utilizando um canal de comunicação e um código. Lembram-se dessa formulazinha prática e cognitivamente confortável?
[3] As minhas citações de Lukács são todas da tradução (portuguesa) de Alfredo Margarido para a Teoria do Romance (Editorial Presença,s/d), as citações de MEMÓRIA DE ELEFANTE são todas da edição brasileira de 2006 pela Objetiva, e as citações de Lobo Antunes que não forem do romance, são extraídas de Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007): Confissões do Trapeiro, edição da Almedina (2008)
[4] Em MEMÓRIA DE ELEFANTE lemos: “Como em África, pensou ele, exatamente como em África, aguardando a chegada miraculosa do crepúsculo no Jango da Marimba, enquanto as nuvens escureciam o Cambo e a Baixa do Cassanje se povoava do eco dos trovões. A chegada do crepúsculo e a do correio que a coluna trazia, as tuas compridas cartas úmidas de amor. Tu, doente, em Luanda, a miúda longe de ambos, e o soldado que se suicidou em Mangando, deitou-se na camarata, encostou a arma ao queixo, disse Boa noite e havia pedaços de dente e de ossos cravados no zinco do teto, manchas de sangue, carne, cartilagens, a metade inferior da cara transformada num buraco horrível, agonizou quatro horas em sobressaltos de rãs, estendido na marquesa da enfermaria, o cabo segurava o petromax que lançava nas paredes grandes sombras confusas…”
[5] Lobo Antunes fala a respeito da “detenção do poder pela parte da mãe”:”Não sei se já reparaste que os pais não têm autoridade, a autoridade real é da mãe (…) o pai é uma figura ausente, quem é uma figura presente é a mãe, não sei se tens essa sensação. A mãe é que detém de fato o poder.”
Em MEMÓRIA DE ELEFANTE há uma reminiscência da relação entre pai e mãe do protagonista, enrodilhada uma apreensão da sua cidade (Lisboa), que é mais uma espécie de “lugar da infância” do que palco da vida presente:
“Como esta casa deve ser triste às três horas da tarde. De forma que anos e anos volvidos vertia álcool das farmácias nas jarras das flores para o beber às ocultas e conseguir desse jeito um meio-dia perpétuo.
A noite das ruas e das praças, nessa sexta-feira, aparentava-se para o médico às noites de infância quando, deitado, escutava, vindos do escritório, os tais duetos de ópera que lhe chegavam à cama, sob a forma de discussões apavorantes, o pai-tenor e a mãe-soprano a insultarem-se aos gritos num fundo tétrico de orquestra que o escuro ampliava até um deles enforcar o outro no nó corredio de um dó sustenido, a que se seguia o terrível silêncio das tragédias consumadas: alguém jazia no carpete numa poça de colcheias, assassinado a golpes de bemóis, e maestros gatos-pingados, vestidos de preto, subiriam em breve a escada carregando um caixão que se assemelhava a um estojo de contrabaixo, com o crucifixo de duas batutas cruzadas no tampo. As criadas de crista e de avental engomado entoavam o Coro dos Caçadores com sotaque da Beira, na sala de jantar. O padre, vestido de D. José, surgia num remoinho espanhol de Filhas de Maria. E o pastor alemão da fábrica de curtumes lançava nas trevas os uivos do cão dos Baskerville, revisto por Saint-Saëns.
Na noite de Lisboa tem-se a impressão de se morar num romance de Eugene Sue com página para o Tejo, em que a rua Barão de Sabrosa é a fitinha desbotada de marcar o lugar de leitura, apesar dos telhados onde florescem plantações de antenas de televisão idênticas a arbustos de Miró…”