MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

09/06/2012

Os primeiros romances de Lobo Antunes (1): MEMÓRIA DE ELEFANTE

“A vida biológica e social tem uma propensão  muito profunda para se fixar na sua imanência: os homens aspiram simplesmente a viver e as estruturas sociais a manter-se intactas; e o afastamento, a ausência de um Deus ativo tornaria onipotente a inércia dessa vida que se basta a si mesma e se abandona em paz à sua própria estagnação se não acontecesse aos homens, dominados pelo poder do demônio, elevar-se por vezes acima de si mesmos—de uma maneira infundada e infundável—e renunciar aos fundamentos psicológicos e sociológicos da sua própria existência. É então que esse mundo abandonado por Deus se revela de repente como privado de substância, mistura irracional, simultaneamente densa e porosa; o que parecia mais firme quebra-se como argila seca sob os golpes do indivíduo possesso, e a transparência vazia que deixava entrever paisagens de sonho transforma-se bruscamente numa parede de vidro contra a qual, vítimas de uma vã e incompreensível tortura, nos chocamos como a abelha contra o vidro, sem conseguir furá-lo, sem querer perceber que aqui não há caminho…” (Lukács, A teoria do romance)

“…nesta época estranha a inteligência parece estúpida e a estupidez inteligente, e torna-se salutar desconfiar de ambas por questão de prudência….” [1](Lobo Antunes, MEMÓRIA DE ELEFANTE)

Caiu um pouco em desuso, hoje em dia, mas creio ainda ser válida a forma como aprendíamos as diferentes funções da linguagem, com sua ênfase num dos seis elementos da comunicação (emissor, receptor, mensagem, referente, canal de comunicação e código[2]).

Dentro dessa perspectiva, os romances autobiográficos seriam um produto, apesar de mais complicados formalmente, da chamada função expressiva (ou emotiva), centrada no emissor. E disso não escapam os primeiros romances de António Lobo Antunes, notadamente o de estreia, MEMÓRIA DE ELEFANTE, publicado quando ele tinha 36 anos, e onde a estratégia não é tanto disfarçar essa predominância da função expressiva (pois ainda que seja uma narrativa em terceira pessoa, é um falso foco narrativo, evidentemente, e ainda por cima desliza para a primeira pessoa, ou até para um debate entre os dois procedimentos, em diversos momentos) como em fazê-la funcionar da forma mais contundente possível.

Aliás, quando penso nos primeiros romances de Lobo Antunes (além de MEMÓRIA DE ELEFANTE, Os cus de Judas & Conhecimento do inferno), não consigo afastar-me muito das concepções sobre o romance de Lukács, mesmo sabendo que elas são, de modo estrito, mais pertinentes ao romance oitocentista do que a textos “pós-modernos”[3].

Se o meu leitor desculpar o anacronismo, é por essa trilha que irei caminhar, com o auxílio da bussola da “função expressiva” entremeada aos fios da “função poética”, aquela centrada na forma como a mensagem do emissor ao receptor é efetivada.

A narrativa de MEMÓRIA DE ELEFANTE transcorre num único dia, e se espreme entre a loucura (nos primeiros capítulos —de um total de 15— no   hospício onde o protagonista atende como psiquiatra), no sentido institucional, e o azar (tanto no sentido do acaso, quanto da má sorte, no capítulo-clímax por assim dizer (os dois últimos decorrem dele), ambientado no cassino. Separado da mulher, a quem ama, com duas filhas, tendo servido na África, nas guerras coloniais, vindo de uma família burguesa muito tradicional e muito alinhada com a mentalidade salazarista, carola e fascistóide, o “psiquiatra” não nomeado sente-se “despaisado” em sua terra natal, Lisboa, e com “passado do que futuro”. Como Zavalita,  protagonista de Conversa no Catedral (é “no” porque se trata de um bar), o herói de Lobo Antunes se pergunta: “Quando é que eu me fodi?”, interrogação que pode ser estendida ao país inteiro, passada a euforia da Revolução.

Ameaçado pela depressão, ele vai se arrastando dia a dia na rotina, sem se resignar porém sem se insurgir. Diz a uma enfermeira que lhe é simpática: “Deolinda, estou a tocar no fundo”, ao que ela responde: “Nunca mais tem fim essa descida?”, o que informa ao leitor tratar-se de um longo processo, ligado tanto ao fim (não por falta de amor entre as partes, mas ao que parece por uma “covardia” essencial do psiquiatra) e ao dilaceramento trazido pela experiência em Angola, quanto por não reconhecer a cidade da infância:

“Ao voltar da guerra, o médico, habituado entretanto à mata, às fazendas de girassol e à noção de tempo paciente e eterna dos negros, em que os minutos, subitamente elásticos, podiam durar semanas inteiras de tranquila expectativa, tivera de proceder a penoso esforço de acomodação interior a fim de se reacostumar aos prédios de azulejo que constituíam as suas cubatas natais. A palidez das caras compelia-o a diagnosticar uma anemia coletiva, e o português sem sotaque surgia-lhe tão desprovido de encanto como um quotidiano de escriturário. Sujeitos apertados em cilícios de gravatas agitavam-se a sua volta em questiúnculas azedas: o deus Zumbi, senhor do Destino e das Chuvas, não passara o equador, seduzido por um continente onde até a morte possuía a impetuosa alegria de um parto triunfal. Entre a Angola que perdera e a Lisboa que não reganhara o médico sentia-se duplamente órfão, e esta condição de despaisado continuara dolorosamente a prolongar-se porque muita coisa se alterara na sua ausência, as ruas dobravam-se em cotovelos imprevistos, as antenas de televisão espantavam os pombos na direção do rio obrigando-os a um fado de gaivotas, rugas inesperadas conferiam à boca das tias expressões de Montaignes desiludidos, a multiplicação de eventos familiares empurrava-o para a pré-história do folhetim de que dominava apenas os acidentes paleolíticos…”

Lobo Antunes comentou (em 1979 mesmo, no ano do lançamento do romance) essa característica da sua geração:

“Independentemente do valor que a nossa geração, literariamente, possa vir a ter ou não ter, eu penso que ela é uma geração diferente das outras, porque é uma geração marcada pela guerra colonial (…) Primeiro porque provocou um corte na nossa vida, que deixou cicatrizes que, muitas delas, não sararam. Depois, porque permitiu à nossa geração e àqueles que ainda não tinham uma consciência aguda (como em grande parte era o meu caso) aperceber-se duma determinada problemática social e política. Finalmente, permitiu (…) a aprendizagem da morte e do sofrimento, feita em moldes completamente diferentes”.

Em outro trecho, ele afirma:

“Para além de toda a experiência livresca, ou existencial ou lisboeta que tivemos, tivemos uma experiência que é original e que é única, apesar de tudo, que é a experiência da nossa geração, a experiência da guerra e do sofrimento concreto e da morte concreta, que pode ser extremamente enriquecedor do ponto de vista humano e que em certo sentido, apesar do que lá se sofreu e do que eu lá sofri, para mim foi extremamente importante, permitiu-me aperceber de uma grande quantidade de coisas, das quais, provavelmente, eu teria continuado a passar ao lado, se não tivesse sido a guerra de África.

   Depois, há o problema do regresso e da sensação de despaisado que as pessoas que voltam da guerra têm. A sensação de não pertencerem nem cá nem lá, de se terem perdido naquele lugar e de não terem, ainda, conquistado lugar nenhum.”[4]

    Na evocação incessante do passado, a figura da mãe aparece de forma especialmente significativa como veredicto social sobre o personagem:

“Será que cresci, que cheguei realmente a crescer, interrogou-se o psiquiatra, correspondendo com o joelho à pressão de anca da mulher do leopardo de plástico, a avaliá-lo de viés com lenta pálpebra sabida, cresci de fato ou permanecei um puto assustado, de cócoras na sala entre gigantescas pessoas crescidas que me acusam, fitando-me em silêncio numa hostilidade  horrível, ou tossindo de leve, a coberto de dois dedos, a sua reprovação resignada? Deem-me tempo, pediu ele a essa roda de ídolos da Ilha de Páscoa, que o perseguia de um amor ferozmente desiludido, deem-me tempo e serei exatamente o que vocês desejam, como vocês desejam, sério, composto, consequente, adulto, prestável, simpático, empalhado, miudamente ambicioso, sinistramente alegre, tenebrosamente desingênuo e definitivamente morto, deem-me tempo…”

“…e  podia bem ser que às quartas-feiras o irmão mais novo lhe desse de jantar em sua casa, acompanhando a carne assada de conselhos e repreensões.

__ A mãe sempre disse que nunca terias juízo.

   E provavelmente não só nunca teria juízo como (mais grave ainda) não alcançaria a espécie de felicidade  que a ausência desse esquisito atributo traz consigo, lastro sem o qual se voa aos agradáveis píncaros de uma loucura divertida, sem maçadas, sem preocupações, sem planos, ao sabor da adolescência assumida como estado de alma, como vocação ou como sina.

__ A mãe sempre disse.

    A mãe sempre disse tudo. E parecia-me que o  fiscal adquiria pouco a pouco o jeito profético dela, as pálpebras magoadas, a testa enrugada, o cigarro aceso espiralando na ponta do braço elipses de desistência:

__ O que é que se pode esperar deste rapaz?

   Nada, afirmou em voz alta numa espécie de raiva…”[5]

   Portanto, não há como o livro não ser caracterizado como um “desabafo emocional”. Sua estrutura cuidadosa, acompanhando um dia do protagonista, poderia ser um disfarce frágil desse discurso autobiográfico fácil, a forma romanesca descambando para o “lirismo”, afrouxado o imperativo épico-narrativo. Hoje, em 2012, nos é possível a  perfeita visão dessa feição de MEMÓRIA DE ELEFANTE e os outros livros iniciais, quando temos todo o império edificado sob bases ciclópicas da obra vindoura, em que o romance se serve desse “lirismo”, dessas reminiscências autobiográficas, de uma forma muito irônica (na verdade, já o quinto romance de Lobo Antunes, de 1983, Fado alexandrino, inaugura esse ânimo “majestoso”). Mas em 1979 quem poderia prever que o autor estreante iria seguir caminhos tão grandiosos? Apesar do talento bruto que ali se exibia, MEMÓRIA DE ELEFANTE não deixa de ser principalmente um magma de imagens, analogias e ponderações digressivas que comprimem a experiência narrativa a um resíduo. Aqui é o lukácsiano em mim falando, e com a visão retrospectiva que as obras posteriores me possibilitaram, não se trata de uma avaliação de defeitos ou limitações. No entanto, eu penso que, passadas um pouco mais de três décadas, o livro não seria ainda tão eficiente se não fosse o sopro inaugural de um universo que se expandiu desmesuradamente. O que tem de “cru” e “latente” é o que fazem suas qualidades de um livro daquele momento, muito verdadeiro, e sua feição de livro “datado”, porque ainda muito atrelado à “função expressiva”, a essa necessidade de desafogo existencial.

A esse respeito, talvez fosse bom evocar outras palavras do grande escritor português, naquele ano de 1979:

“Simplesmente, há todo o problema da dificuldade da escrita e a minha escrita é toda muito carregada de metáforas, eu sinto-a realmente muito barroca. É-me difícil escrever doutra maneira, mas eu penso que, apesar de tudo, talvez seja possível chegar às pessoas através dessa maneira e gostaria muito que isso fosse possível”.

No romance, lemos:

“E por que é que só sei gostar, perguntou-se examinando as bolhas de gás pegadas à parede de vidro, por que é que só sei dizer que gosto através dos rodriguinhos de perífrases e metáforas e imagens, da preocupação de alindar, de pôr franjas de crochê nos sentimentos, de verter a exaltação e a angústia na cadência pindérica do fado menor, alma a gingar, piegas, à Correia de Oliveira de samarra, se tudo isto é limpo, claro, direto, sem precisão de bonitezas, enxuto como um Giacometti numa sala vazia e tão simplesmente eloquente como ele: depor palavras aos pés de uma escultura equivale às flores inúteis que se entregam aos mortos ou à dança da chuva em torno de um poço cheio: chiça para mim e para o romantismo meloso que me corre nas veias, minha eterna dificuldade em proferir palavras secas e exatas como pedras…”[o grifo é meu].

Então o desejo “eu hei-de amar uma pedra” existia desde o começo! Talvez a dificuldade desse lírico enveredando pela forma épica tenha como origem o “núcleo narcísico” (a expressão é do próprio autor de MEMÓRIA DE ELEFANTE) a que ele foi confinado desde a infância:

“Como quem enfia sem pensar a mão no bolso à procura da gorjeta de uma resposta mergulhou o braço na gaveta da infância, bricabraque inesgotável de surpresas, tema sobre o qual sua existência posterior decalcava variações de uma monotonia baça, e trouxe à tona ao acaso, nítido na concha da palma, ele miúdo acocorado no bacio diante do espelho do guarda-fato em que as mangas dos casacos pendurados de perfil como as pinturas egípcias proliferavam na abundância de lianas moles dos príncipes de Gales do seu pai. Um puto loiro que alternadamente se espreme e observa, pensou concedendo um soslaio aos anos devolutos, eis um razoável resumo dos capítulos anteriores: costumavam deixá-lo assim horas seguidas na sua chávena de Sèvres de esmalte onde o xixi pianolava escalas tímidas de harpa, a conversar consigo mesmo as quatro ou cinco palavras de um vocabulário monossilábico e completado de onomatopeias e guinchos de saguim abandonado, ao mesmo tempo que no andar de baixo a tromba de papa-formigas do aspirador sugava carnivoramente as franjas comestíveis dos carpetes manejadas pela mulher do caseiro a quem o incômodo das pedras da vesícula acentuava o aspecto outonal. Quando é que eu me fodi?, inquiriu o médico ao garoto que a pouco e pouco se dissolvia com a sua gaguez e o seu espelho para ceder lugar a um adolescente tímido, de dedos manchados de tinta, encostado a uma esquina propícia a fim de assistir à passagem indiferente e risonha das raparigas do liceu cujas soquetes o abalavam de desejos confusos mas veementes afogados em chás de limão solitários na pastelaria vizinha, ruminando num caderno sonetos à Bocage policiados pela censura  estrita do catecismo de bons costumes das tias…”

Ainda que narcísica, essa exploração autobiográfica, ainda mais com a inclinação para luxúria das metáforas (e um levantamento delas na tessitura do livro mostraria que imagens como “aquário” e “crochê”, dada a sua disseminação ao longo do texto, esboçam um desenho inquietante do mundo à volta do personagem, como se ele fosse ao mesmo tempo “afogado” e “perfurante”, submerso e cheio de arestas), mesmo assim o prender-se à forma romanesca, revestindo-a de um contorno tênue, a moldura de um dia vivido, “salva” o personagem do lirismo “alienado” e impotente. Lukacs destacou o significado que a forma biográfica tem para o romance: é a “vitória sobre o mau infinito”, já que a trajetória do indivíduo “continua a ser o fio diretor ao longo do qual o mundo vem enlaçar-se e desenrolar-se na sua totalidade”. É o que sentimos ao ler MEMÓRIA DE ELEFANTE, E, à respeito dessa tensão entre o narcisismo e a apreensão do mundo, em 1979, Lobo Antunes tinha  que dizer:

“É a história de um narcisista, que apesar de tudo existe um pouco em todos nós, e da solidão tremenda daí recorrente.

   É terrível uma pessoa sentir-se o centro do Mundo, mesmo para si própria. Dá um alívio bestial—a gente vê isso nas análises—quando um gajo descobre que deixa de ser o centro do Mundo e que as outras pessoas são iguais a ela, que ele deixa de ser realmente o centro, o sol, a coisa mais importante. Para mim é sobretudo um livro sobre a angústia, sobre o sofrimento da solidão, para além de ser também, é evidente, uma história de amor, de amor  entre o desespero e a resignação. Pelo menos é o que eu gostaria que fosse.”

Na Teoria do Romance lemos:

“O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida (…) na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscência (…) a visão capaz de perceber essa unidade é a apreensão divinatória e intuitiva do sentido da vida, inatingido e portanto inexprimível”. Por isso, toda ação interna do romance “não é senão a luta contra o poder do tempo”.


[1] Vale a pena transcrever a passagem por extenso (o grifo é meu):

“Um rebuliço de crianças junto ao portão da escola anunciou ao psiquiatra o fim das aulas: o mendigo remexeu-se, zangado, na sua manta:

__ Sacanas dos putos roubam-me mais do que me dão.

   E o médico ponderou se essa frase irritada não conteria em si os germes de uma verdade universal, o que o levou a olhar para o seu sócio com um respeito novo: Rembrandt, por exemplo, não acabou muito mais próspero, e não se está livre de encontrar um Pascal no cobrador de água: António Aleixo vendia cautelas, Camões escrevia cartas na rua para os que não sabiam ler, Gomes Leal compunha alexandrinos no papel selado do notário onde trabalhava. Dezenas de prêmios Nobel em blue-jeans desafiam a polícia nas manifestações maoistas: nesta época estranha a inteligência parece estúpida e a estupidez inteligente, e torna-se salutar desconfiar de ambas por questão de prudência….” Neste momento do seu dia, o protagonista observa, escondido, a saída das filhas do colégio.

[2] O emissor manda uma mensagem para o receptor, a respeito do referente, utilizando um canal de comunicação e um código. Lembram-se dessa formulazinha prática e cognitivamente confortável?

[3] As minhas citações de Lukács são todas da tradução (portuguesa) de Alfredo Margarido para a Teoria do Romance (Editorial Presença,s/d), as citações de MEMÓRIA DE ELEFANTE são todas da edição brasileira de 2006 pela Objetiva, e as citações de Lobo Antunes que não forem do romance, são extraídas de Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007): Confissões do Trapeiro, edição da Almedina (2008)

[4] Em MEMÓRIA DE ELEFANTE lemos: Como em África, pensou ele, exatamente como em África, aguardando a chegada miraculosa do crepúsculo no Jango da Marimba, enquanto as nuvens escureciam o Cambo e a Baixa do Cassanje se povoava do eco dos trovões. A chegada do crepúsculo e a do correio que a coluna trazia, as tuas compridas cartas úmidas de amor. Tu, doente, em Luanda, a miúda longe de ambos, e o soldado que se suicidou em Mangando, deitou-se na camarata, encostou a arma ao queixo, disse Boa noite e havia pedaços de dente e de ossos cravados no zinco do teto, manchas de sangue, carne, cartilagens, a metade inferior da cara transformada num buraco horrível, agonizou quatro horas em sobressaltos de rãs, estendido na marquesa da enfermaria, o cabo segurava o petromax que lançava nas paredes grandes sombras confusas…”

[5] Lobo Antunes fala a respeito da “detenção do poder pela parte da mãe”:”Não sei se já reparaste que os pais não têm autoridade, a autoridade real é da mãe (…) o pai é uma figura ausente, quem é uma figura presente é a mãe, não sei se tens essa sensação. A mãe é que detém de fato o poder.”

   Em MEMÓRIA DE ELEFANTE há uma reminiscência da relação entre pai e mãe do protagonista, enrodilhada uma apreensão da sua cidade (Lisboa), que é mais uma espécie de “lugar da infância” do que palco da vida presente:

“Como esta casa deve ser triste às três horas da tarde. De forma que anos e anos volvidos vertia álcool das farmácias nas jarras das flores para o beber às ocultas e conseguir desse jeito um meio-dia perpétuo.

    A noite das ruas e das praças, nessa sexta-feira, aparentava-se para o médico às noites de infância quando, deitado, escutava, vindos do escritório, os tais duetos de ópera que lhe chegavam à cama, sob a forma de discussões apavorantes, o pai-tenor e a mãe-soprano a insultarem-se aos gritos num fundo tétrico de orquestra que o escuro ampliava até um deles enforcar o outro no nó corredio de um dó sustenido, a que se seguia o terrível silêncio das tragédias consumadas: alguém jazia no carpete numa poça de colcheias, assassinado a golpes de bemóis, e maestros gatos-pingados, vestidos de preto, subiriam em breve a escada carregando um caixão que se assemelhava a um estojo de contrabaixo, com o crucifixo de duas batutas cruzadas no tampo. As criadas de crista e de avental engomado entoavam o Coro dos Caçadores com sotaque da Beira, na sala de jantar. O padre, vestido de D. José, surgia num remoinho espanhol de Filhas de Maria. E o pastor alemão da fábrica de curtumes lançava nas trevas os uivos do cão dos Baskerville, revisto por Saint-Saëns.

    Na noite de Lisboa tem-se a impressão de se morar num romance de Eugene Sue com página para o Tejo, em que a rua Barão de Sabrosa é a fitinha desbotada de marcar o lugar de leitura, apesar dos telhados onde florescem plantações de antenas de televisão idênticas a arbustos de Miró…”

08/06/2012

Notas sobre ARQUIPÉLAGO DA INSÓNIA

«e portanto não tenho senão uma mulher inventada a respirar do lado da consola numa cama de estilo, a prima Hortelinda a mostrar-me o livro
– Não constas aqui»
«deve ser o fim ou qualquer coisa parecida com o fim…»
Por conta de Drummond e a “estranha ideia de família viajando através da carne”, voltei a uma leitura que deixara interrompida, não porque o romance não fosse bom, muito, muito pelo contrário, mas por atribulações e vicissitudes pessoais: O ARQUIPÉLAGO DA INSÓNIA, de António Lobo Antunes, ainda sem edição brasileira.
Reli esta semana as cem páginas iniciais e depois o livro inteiro e portanto já posso dizer, de saída, que é uma das grandes obras do maior escritor de língua portuguesa do momento. É  parecido, sob alguns aspectos, com Eu hei-de amar uma pedra, inclusive pelo intrincado da narração, intrincado não pelos factos em si, mas porque nós os acompanhamos em toda a sua concreticidade, se é que se pode dizer assim, de uma concreticidade visceral, acachapante e depois eles são des-realizados, se tornam fantasmáticos, recombinados, redistribuídos, ressignificados: como em Faulkner, no mundo de Lobo Antunes o tempo enquanto sucessão não existe.  Porém, a partir da segunda parte (eu estava no começo dela quando interrompi a leitura em novembro), ficamos sabendo que a narrativa em parte está a cargo de um autista (o irmão do narrador insone, que espera a manhã, que virá dali a pouco, e no entanto nunca será manhã). Agora: quem não tem o seu quê de autismo nesse universo todo regido pela incomunicabilidade? Veja-se na terceira parte, quando Maria Adelaide (a cunhada do autista) assume seu lugar na roda de narradores (a função primordial de todos: narradores, nessa vida que é absorvida monstruosamente por um livro continuamente escrito: «que espécie de livro é este que custa tanto escrever?»):

«eu com seis anos no quintas e cinquenta aqui e no entanto a mesma pedra a esconder-me dos outros convencida que havia outros e não há outros…»;

ou ainda:
«e portanto faleci em criança, as sombras da santinha e do enfermeiro sob a sombra da serra
– Diz-me se cheiro a defunta não mintas

 

e o meu cunhado a olhar para mim sem olhar para mim»

 

e mais adiante:
«e o pai do meu sogro a descer do mulo diante da casa que não existe chegado de uma herdade que não existe…»
«quantas vezes pedi ao meu marido que levasse o irmão de volta ao hospital e eu pudesse esquecer que faleci e achar que estou viva, não me habituo a Lisboa, estas avenidas que me assustam e esta gente que me ignora, quantas vezes perguntei ao meu marido

 

– Por que tenho de morar com o teu irmão

 

e o meu marido um gesto que se dissolvia no garfo (…)
– Porque não tenho mais ninguém»…
Além da revelação do autismo do narrador inicial (que cria um poderoso mundo primordial na primeira parte e depois gera uma formidável incerteza quanto ao que poderia haver de conteúdo “real” ali, quando o localizamos num hospital, sendo visitado intermitentemente pela família), um dos achados de O ARQUIPÉLAGO DA INSÓNIA é o personagem da Prima Hortelinda, uma espécie de Parca portuguesa, que consulta no seu caderno quem deve morrer (e a região rural onde vive já moribunda, quase sem mortos para serem apontados no caderno, e o narrador insone eternamente poupado, para viver o inferno da lembrança, mas que lembranças exatamente?).
A morte como ser compassivo, suas intermitências:
«supõe-se que a morte nos quer mal, vai-se a ver e mentira, não gosta do que faz (…) quantas ocasiões deve ter perdido
– Por que não entregam este serviço a outra?»
ou:
«e, depois, claro, a pergunta do costume
– Por que eu?

 

como se houvesse um motivo, não há motivo algum»

 

e se a morte é assimilada à compassiva Prima Hortelinda, Deus é assimilado à figura do avô:
“perguntei-lhe [ para Prima Hortelinda]
– Quem é que manda em você?

 

e um olhar para o tecto

 

– Ele já não sabe mandar porque até Deus, com a idade, se lhe turvou a cabeça, amolecia num banco a repetir perplexo, esfregando as mãos nos joelhos
– Que estranha coisa é a vida»
No entanto, eu confesso aos meus leitores: eu não saberia nem como nem por onde começar uma análise “global” e que se pretendesse esclarecedora e totalizante de O ARQUIPÉLAGO DA INSÓNIA. Ele me derrota, nesse sentido, assim como já fui derrotado por outros Lobo Antunes ou poir Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño.
O romance de Lobo Antunes tem um impacto sensorial, em sua matriz de imagens e falas que vão aparecendo e reaparecendo, recombinando-se, e dando a sensação de que entramos realmente na mente dos personagens. Fisicamente, eu quero dizer. Há sempre algo associado a alguém (o pai e o cavalo; o avô e a mula; a avó e a chávena no pires; Prima Hortelinda e os goivos; a mãe e os baús perfumados); há as inúmeras modulações das afirmações que reaparecem e vão criando o referido impacto: «no tempo em que nada faltava na casa?»; «indiferença do meu irmão que continua comigo nesta casa em que apesar de igual quase tudo lhe falta»;  «na casa em que apesar de igual tudo principiava a faltar-lhe»; «o meu avô que continua nesta casa a quem tudo falta, apesar de igual»; «conforme se desfez a casa em que apesar de igual tudo lhe falta hoje em dia». A questão é justamente essa: quando é “hoje em dia”, quando tudo falta na casa, apesar de igual, casa que porventura talvez nem tenha existido: «Qual a minha idade hoje em dia e quantos anos se passaram desde aquilo que contei?»; «qual  é a minha idade, quantos anos passaram, catorze, vinte, trezentos ou nenhum».
«Quem anda de noite misturado com o vento à roda da casa e eu para o meu irmão
– Não ouves?

 

procurando os intervalos das janelas para espiar a gente, um defunto que se perdeu sem encontrar a travessa onde mora ou as doninhas que não respeitam ninguém obrigando-me a trazer a caçadeira  e a disparar ao calhas, quando de manhã as procuro os milhafres levaram-nas e há um texugo a lamber restos de sangue escondido nas ervas porque são ervas o que hoje temos na herdade de modo que a serra maior, a lagoa nos seus refluxos miúdos e vozes a falarem de uma época em que o meu irmão e eu não havíamos nasido, onde os campos cresciam e o meu avô rico a ordenar isto e aquilo, chegou da vila com o feitor e a mulher do feitor de que se serviam os dois na barraca a partir da qual se construiu esta casa, escutavam bandos de corvos evadidos das nuvens onde se guardam os pássaros  por ordem, estorninhos, gralhas, cegonhas que a mão de não sei quem distribui, se chamasse uma das empregadas da cozinha ninguém, no caso de subir ao compartimento dos baús nenhum perfume na roupa, vamo-nos embora amanhã, onde o mulo, o cavalo e as doninhas não cheguem, pela mesma vereda que a mulher do feitor seguiu sem dizer fosse o que  fosse abandonando a carne ao lume e a agulha espetada no novelo como se fosse voltar; o meu avô e o feitor acertaram no rastro apesar de tanto cardo e tanta pedra porque ao principiar a colina os pés  se arrastavam e alguns caules quebrados, alcançaram-na numas hidrângeas de ribeiro a olhar os gafanhotos que saltavam na corrente se é que  podia chamar-se corrente a uma linhazita incapaz de contornar os seixos, deu por eles de olhos mansos, viu a agulha de crochet na palma do feitor e pergunto-me se a terá sentido entre duas costelas absorvida como estava pelos gafanhotos… o feitor experimentou a agulha mais acima, no ponto em que o coração vai dando corda ao corpo e inventando ideias e a mulher amontoou-se sem cair, ou seja alargou  sentada dizendo qualquer coisa como sucede ao calcário se lhe encostamos o ouvido e uma artéria secreta a latir, a latir, a subir de tom, a parar, ao parar a cabeça no peito e foi tudo…»
  
[…] Apesar de repetir processos narrativos de livros anteriores (processo que, creio eu, chegou ao auge em Eu hei-de amar uma pedra), o que impressiona no romance é sua primordialidade. Parece que estamos vendo em ação o “id” freudiano, sem nenhuma censura ou repressão, e as imagens, fantasias e fábulas pessoais (o “romance familiar”) são vistos de forma nua e crua e não sabemos se estamos numa alucinação, numa reconstrução memorialística, num eterno retorno, num pesadelo circular: essa herdade, erguida pela vontade balzaquiana do patriarca, o avô, cuja mãe abandonou o pai (que se suicidou com uma tesoura no pescoço) e foi viver com o padre da vila, renegando o filho (depois o feitor, a mando do avô, assassinará o padre)… essa herdade, que não terá um herdeiro forte que a herde, pois o avô “pegou” a avó para ser sua esposa, mesmo assim usando todas as mulheres do local (a mulher do feitor, as futuras empregadas, a mulher do filho, menos a filha do feitor, que se oferece, mas pode ser sua própria filha), só que a perdeu para o filho, o Idiota, o fraco, aquele que não consegue nem ser suficientemente homem para mandar na mulher, que escolheu entre as empregadas da cozinha, mas que serve sexualmente o pai dele e transa com um ajudante de feitor (que pode ser outro filho do padre), o qual pode ser o verdadeiro pai do narrador, um filho desprezado por todos, ao contrário do irmão mais novo, talvez legítimo, mas esse sim o verdadeiro Idiota, sem noção de nada… mas aí a herdade empobreceu, a vila despovoou-se, tudo ficou mais pobre, só restam os omnipresentes retratos em suas molduras de gente morta que prossegue nos retratos e nas lembranças como gente viva, talvez até mais viva que os vivos,  como pressentimos numa frase genial logo na primeira página (quando fala da avó morta): «…fixando-me com um olhar de retrato que atravessava gerações…». Cinquenta páginas depois: «…já só faltamos o meu irmão e eu na parede para que a família inteira em molduras ou seja há retratos nossos de criança, não de hoje… além das fotografias sobra-nos o cavalo e as vozes dos finados que conversa, conversam…». Mais adiante: «De maneira que fico aqui à espera porque com um  bocadinho de sorte pode ser que alguma coisa aconteça, uma pessoa chegue da vila para ficar connosco ou levar-nos consigo e nem já da vila se calhar; meia dúzia de postigos que resistem e os parentes dos retratos aguardando que a lâmpada do fotógrafo os desperte para regarem as hortas…»

  (escrito especialmente para o blog, em janeiro de 2010; a esta altura o livro  não fora ainda lançado em edição brasileira, o que  ocorreria poucos meses depois, pela Alfaguara)

Destaque do blog: MIASMAS FAMILIARES em “Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de janeiro de 2010)

“começo a pensar se é que se pode chamar-se pensar a um ressentimento antigo…” (António Lobo Antunes, Eu hei-de amar uma pedra)

Além de ser uma obra-prima, Eu hei-de amar uma pedra (o trecho acima pode ser encontrado na pág. 316 da edição brasileira, pela Alfaguara) tem um título que  é emblemático da visão de mundo que sustenta a obra de Lobo Antunes. Só não gosto, nesse romance, de um detalhe, que não chega a atrapalhar, mas que me parece “sobrar” na tessitura geral. Na pág. 127, lemos: “ou sou eu que imagino ou o António Lobo Antunes julgando que devo imaginar a fim de que o romance melhore”.

Creio que ele usa esse recurso a uma “janela” metalingüística de forma mais feliz e conseqüente no seu mais recente romance, QUE CAVALOS SÃO AQUELES QUE FAZEM SOMBRA NO MAR? (ninguém pode ser pego de supetão para dizer esse título, vai se embaralhar todo). Os narradores debatem com “o que faz este livro”, com a chamada instância autoral com o próprio Lobo Antunes, cuja participação também é problemática, pois, além de ser interpelado pelas suas criaturas,  afigura-se-nos que ele está numa corrida contra o tempo. Ele já afirmou que após os 70 anos (e,  nascido em 1942, portanto está quase lá) ninguém produz nada que preste. Então pode-se ler o seguinte nas págs.  108-109 do novo livro:

“o que pensará minmha mãe nesta altura, aposto que não há há espaço nela para pensar (…) e no entanto suponho que gorjeios, risinhos, uma palavra feita pedido de esmola ao telefone

___ Por quê?

         porque o mundo não se incomoda com a gente senhora (…)

__ Por quê?

      numa parte da minha mãe que nem estou certa que exista, o que sobeja quando não existimos, em que pensarei eu, este livro é seu testamento António Lobo Antunes, não embelezes, não inventes, o teu último livro, o que amarele por aí quando não existires…”

Como se sabe, nesta última década, talvez premido pelo “prazo” que decretou com suas declarações sempre um tanto dogmáticas, ele se lançou a uma tarefa ciclópica, quase assustadora (parece até que ele é um pactário, um Adrian Leverkühn), de lançar um após o outro uma série de livros “totais”, de uma amplidão que não deixa margem a dúvidas sobre quem é o maior nome da ficção em língua portuguesa dos nossos dias. Assim tivemos depois de  Eu hei-de amar uma pedra (2004): Ontem não te vi em Babilônia (2006), Meu nome é Legião (2007) e O arquipélago da insônia (2008).

E agora mais um tour-de-force.  A Alfaguara tem optado por manter a grafia de Portugal nas suas edições de Lobo Antunes, como outras editoras que estão fazendo o mesmo com seus lançamentos de autores lusitanos, entretanto não será essa a maior dificuldade do leitor que não está acostumado à sua linguagem peculiar, seus parágrafos que começam com letra minúscula (como se acompanhássemos um fluxo que não começa nem acaba) e se interrompem, os inúmeros parênteses que se abrem, as frases-refrões que surgem e ressurgem na boca dos mais diversos narradores, os fatos que parecem muito concretos e realistas e depois se tornam irreais e fantasmáticos… Na minha opinião, a obra dele é tanto um projeto modernista, no sentido de buscar a totalidade (como fizeram Joyce, Proust, Mann, Faulkner, Guimarães Rosa, Hermann Broch), quanto um projeto pós-modernista, no sentido de sombrear essa totalidade com seus escombros (o projeto modernista de Musil, que ficou inacabado, gigantesco fragmento, os autores pós-Beckett, que não acreditam mais em enredo, em personagens, no próprio real…

Ainda assim, Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?, por incrível que pareça, é mais fácil de ler que os anteriores (em O arquipélago da insônia, o efeito emaranhado era acentuado pela  perspectiva de um autista), com uma tessitura de fatos menos intrincada: acompanhamos os últimos momentos de vida da matriarca da decadente família Marques, e os depoimentos dos parentes mais próximos (e uma empregada fiel, ainda que desprezada, Mercília), especialmente dos filhos Francisco, Beatriz, Ana e João (há uma irmã que morreu, Rita, e um outro sobre o qual ninguém fala):  Francisco está roubando dos outros herdeiros os restos que conseguiu salvar da bancarrota; Beatriz é que nos dá a imagem de potência e plenitude que justifica o título (e que é retomada e/ou posta em dúvida pelos demais); Ana é viciada; e João é a vergonha da família, devido ao homossexualismo (na verdade, ele seria mais um pedófilo, caçando menininhos num parque) e ao fato de ter AIDS.

Por mais histórias do gênero que já tenham sido escritas, poucas terão a visceralidade e radicalidade dessa investigação dos miasmas familiares que compõem nossa individualidade, essa “estranha idéia” que “viaja pela nossa carne”, como Drummond (autor muito importante para Lobo Antunes) tão bem colocou.

A leitura às vezes é exasperante, sobretudo porque, assim como Faulkner, nos vemos aprisionados numa visão de mundo em que o tempo como sucessão é anulado: o passado e o presente estão ali juntos, num círculo vicioso de impotência e paralisia. Não sou eu que o digo, é o próprio autor, veja-se outro trecho de Eu hei-de amar uma pedra, talvez sua obra maior: “pensando em como estas coisas se pegam a um homem, teimam, ficam tal como o passado continua a acontecer em simultâneo com o presente”.  Mas mesmo quem recusar essa visão fatalística não poderá negar: Lobo Antunes é um narrador incomparável.

13/05/2012

15 DESTAQUES DE 2010

(uma versão reduzida saiu em A TRIBUNA de Santos de 04 de janeiro de 2011)

É sempre  bom esclarecer que quando um crítico propõe destaques entre as publicações de um ano, ele não está propondo uma lista de melhores, o que seria risível. Quem lê tudo o que se lança num ano? E se lesse, que tipo de pessoa seria essa?  Por exemplo, saíram em 2009 e são dois dos melhores livros da década  A fantástica vida breve de Oscar Wao, de Junot Díaz, e Quando haverá boas notícias, de Kate Atkinson, e o leitor não os encontrará na minha lista do ano passado. O mesmo deverá acontecer com lançamentos de 2010, que não tive oportunidade de ler. Também não entrarão na minha lista obras que ganharam nova tradução, caso de reaparições importantíssimas, como  Walden, de Thoreau, nas mãos especialíssimas de Denise Bottmann, ou as novas versões dos romances de William Kennedy (A grande jogada de Billy Phelan & Ironweed), ou de Henderson, o rei da chuva, de Saul Bellow, ou ainda de A verdadeira vida de Sebastian Knight, de Nabokov, só para citar alguns; ou então  novas edições de autores essenciais (é o caso de dois lançamentos primorosos do ano que acabou, os Contos Completos de Lima Barreto e a edição conjunta de Diário do Hospício  & Cemitério dos Vivos).

Tendo em mente essas limitações, eis 15 lançamentos imprescindíveis do último ano (em comentários sumários e necessariamente superficialíssimos):

1)Sartoris, de William Faulkner (CosacNaify)-  Romance fundador, que em 1929 deu início à saga da decadência sulista, representada pelo mítico condado de Yoknapatawapha, um dos lugares fundamentais da ficção,  e em que a obsessão do maior escritor norte-americano pelo tempo se traduz numa narrativa  caleidoscópica fascinante.

2) Verão, de J.M. Coetzee, e Invisível, de Paul Auster (Companhia das Letras)-  Dois dos mais notáveis escritores da pós-modernidade no auge de sua maestria, em relatos que se aproximam do limite do relato tal como conhecemos.

3) Memórias Inventadas, de Manoel de Barros (Planeta)- Um poeta que se recusa a sair da infância e vet o mundo e a linguagem  com outros olhos que não sejam os da não-domesticidade, do não-conformismo. O resultado é uma poesia-brincadeira-infantil muito séria e contundente. Neste ano também, pela Leya saiu a sua Obra Completa, a qual preencheria um ano todo da vida de um leitor.

4) O arquipélago da insônia, de António Lobo Antunes (Alfaguara)- O mais lírico e pungente dos livros ciclópicos publicados pelo grande autor português nesta última década, chegando ao requinte de ter um narrador autista. Também prova cabalmente como a lição de Faulkner foi fecunda. Mas poucos o seguiram com tal radicalismo.

5)A câmara de inverno, de Anne Michaels (Companhia das Letras)- Finalmente, depois de mais de uma década,  o segundo romance da fabulosa autora canadense, que já criara um fascinante deslocamento geográfico em  Peças em fuga. Memória, esquecimento, conservação, deterioração, os opostos se atraem nessa autêntica poesia da prosa, incursão bissexta no gênero narrativo de uma poetisa consagrada.

6) Senhores e Criados e Outras Histórias, de Pierre Michon (Record)- O grande autor francês, de Vidas minúsculas, aproxima a ficção  da pintura e do relato biográfico, em três textos, pelos quais circulam figuras como Van Gogh, Goya, Watteau, Piero della Francesca ou Claude Lorrain. Michon é da estirpe de um W. G. Sebald ou de um Claudio Magris.

7) Um homem apaixonado, de Martin Walser (Planeta)-  Uma bela incursão pela alma, mente, espírito e corpo de Goethe, o qual, septuagenário, se inspira na sua paixão por uma mocinha de 19 anos para compor um de seus mais famosos poemas. É o eros da criação contra a aproximação da morte, e aí não importa tanto se a paixão biográfica foi bem sucedida ou não.

8) A morte de Matusalém, de Isaac Bashevis Singer (Companhia das Letras)- O maior contador de histórias curtas da 2ª. metade do século XX em plena forma, tanto nas incursões sobrenaturais, onde mergulha no imaginário judaico, quanto (ou sobretudo) nas soberbas narrativas realistas.

9) Hóspedes do Vento, de Chico Lopes (Nankin)- Talvez o mais talentoso contista  brasileiro surgido nesta década, em sua terceira e mais equilibrada coletânea, após os talentosos Nó de sombras & Dobras da noite.

10) Sabres e utopias, de Mario Vargas Llosa (Objetiva)-  Uma chance de conhecer o pensamento político do incontornável vencedor do Nobel de 2010, sem que necessariamente tenha de se concordar com ele.

11) A questão dos livros, de Robert Darnton (Companhia das Letras)- magnífica reunião de ensaios  do historiador norte-americano onde ele discute o passado, o presente e o futuro do livro e do conhecimento enciclopédico.

12) Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas (CosacNaify)- Quanto mais vou conhecendo a obra de Vila-Matas, mais vou achando que ele é um dos grandes nomes da literatura atual. Este talvez seja o seu livro mais ambicioso.

Hors concours: 2666, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras) & Os embaixadores, de Henry James (CosacNaify)- O que teria em comum um romance escrito por um Chileno e que transcorre num México microcosmo da nossa época, e um romance  em que James nos mostra o problema do cosmopolitismo, a problemática convivência entre americanos e europeus? Simplesmente são os romances mais ambiciosos escritos na década inicial do século, no caso de Bolaño, o nosso próprio século, e no caso de James, o século passado, e que parecem esgotar as formas narrativas em curso.

Feliz 2011 e um monte de leituras para todos.

29/04/2012

LIRISMO E REALISMO AO MODO LOBO ANTUNES

 

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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em primeiro de novembro de 1994)

MOTE

Para o grande pensador Georg Lukács, o ponto fundamental da épica narrativa era a questão da possibilidade e da necessidade da ação do herói: para que ela fosse possível e necessária o mundo deveria fazer sentido.

Na época burguesa, dificilmente há a sensação de que o mundo faça sentido. Ou o seu sentido é acumular capital? O herói do romance, a grande arte burguesa, procura, então, o sentido dentro de si, e o gênero narrativo descamba para o lirismo (descrição de estados de alma), uma vez que a realidade íntima do herói entra em confronto com a realidade exterior. Ou seja, a gente se acha demais, e o mundo de menos, árido e pobre.

Observando a trajetória da ficção contemporânea, vemos como diversos narradores, esmagado pelo peso sem sentido do mundo burguês, deixaram-se levar (via experimentação lingüística ou via introspecção extrema) para um lirismo radical, deformando o imperativo épico de “representar a realidade”.

O CASO LOBO ANTUNES

    O português António Lobo Antunes, em Conhecimento do Inferno (1980), fornece um belo exemplo do dito acima.  Seu texto é um magma de lembranças, cenas e imagens incríveis que fragmentam a narrativa e deixam no leitor a sensação de estar acompanhando um vulcão em erupção, um grande talento sem dúvida:

“A rapariga, imóvel, muito direita, a apertar contra o peito o seu saco de plástico, consentia que os anjos lhe pousassem nos ombros, nos cabelos, nos braços, tal os pássaros nas estátuas dos parques, empoleirados em heróis de bronze como a roupa nos cabides. Se não agisse depressa o asilo transformar-se-ia num aviário celeste, repleto de roçar de túnicas e de zumbidos siderais, e dezenas de homens alados invadiriam a Urgência, soprando-nos na nuca leves risos idênticos às borbulhas das guelras, que se dissolvem em estalos verdes de musgo.

–Porque não lhe dá uma injecção contra os anjos? –insistia a enfermeira.-Tem de haver uma injecção contra os anjos como há raticida, pó das baratas, remédio para o bicho das vinhas. Os anjos são mais fáceis de matar do que o bicho das vinhas.

     E ele imaginou por um instante, enquanto escrevia na ficha uma receita qualquer, anjos a agonizarem no soalho, suados e pálidos, chamando-o com as pupilas de vidro baço dos moribundos, que se despem a pouco e pouco de expressão e de cor até se assemelharem a cristais ocos, sem reflexos, idênticos aos duros olhos de plástico dos bichos empalhados. Imaginou as camionetas de lixo da cidade carregadas, ao fim da noite, de astronautas bíblicos, de ossos porosos de água e barbatanas de mergulhador, acumulados uns sobre os outros em atitudes de náufrago, imaginou um jovem querubim enforcado num algeroz, raspando com os tornozelos lilases parapeitos de varanda, imaginou o seu próprio anjo da guarda estendido aos pés como uma sombra, de braços abertos, um resto sangrento de Via Láctea a evaporar-se-lhe do canto dos beiços”.

    Imaginem 315 páginas nesse teor e é fácil imaginar que a lava vulcânica muitas vezes se deixa levar para o jorro fácil, para o informe e o meramente prolixo. Trata-se, com uma respiração narrativa de maior fôlego, de um caso parecido aos textos em prosa da nossa Hilda Hilst (Fluxofloema; Qadós; Tu não te moves de ti).

CASA PORTUGUESA HORROR SHOW

Lobo Antunes, em Auto dos Danados (1985), lançamento da editora Best Seller (salvo engano, é o segundo publicado no Brasil; o primeiro foi Os cus de Judas pela Marco Zero), demonstra maior habilidade técnica, esmerando-se na construção do romance, apesar de manter o mesmo lirismo (no sentido lukásiano). E assim como Hilda Hilst esse autor de 50 anos tem certa afinidade com outro ótimo escritor lusitano, Vergílio Ferreira, que conseguiu ser um grande alegorizador da opressão salazarista e um autor verticalmente existencialista e fenomenológico em romances raros, como Alegria breve, Nítido Nulo e Rápida, a sombra.

Em Auto dos Danados,cujos acontecimentos principais transcorrem por volta da Revolução dos Cravos, as baterias do realismo grotesco de Lobo Antunes se voltam contra a alta burguesia que se beneficiou do regime de Salazar. E ela nunca entrou em decadência; ela é a própria decadência, pela sua ganância, pela sua falta de interesse público, pela sua depravação, equivalendo a uma casa apodrecendo ao som meloso de  Roberto Leal tirolando “é uma casa portuguesa, com certeza”…

Realismo grotesco, sim. Porque o instrumento utilizado para mostrar tal podridão moral e ética é o exagero. Enquanto o patriarca  agoniza, somos informados de que o seu genro fornicou com todas as mulheres do clã: as duas cunhadas, sendo uma delas mongolóide, a qual inclusive dá à luz uma filha dele, com quem ele também transa (e tem outra filha), além de faturar de quebra a sobrinha, Ana, que muitos anos depois retorna a Portugal para ajustar contas com o tio-amante.

Exagero eficaz, sim. Porque confronta o leitor com coisas “que não são possíveis”. E no entanto são possíveis e acontecem (ao contrário da necessidade e da possibilidade da ação heróica). Não se pense com isso que o romance é facilmente escandaloso ao mostrar os escombros da respeitabilidade portuguesa, ou então uma leitura fácil. É um livro pesado, como se um crítico da burguesia implacável como o italiano Alberto Moravia desse as mãos a um visionário compilador da realidade bruta dos objetos e das coisas diante do sem sentido do homem e da sociedade, como o francês Claude Simon, Nobel de 85. É o inferno, com certeza.

 (a citação de CONHECIMENTO DO INFERNO foi extraída da 6ª. edição portuguesa, pelas Publicações Dom Quixote, 1983)

 Lobo+Antunes

 Auto dos Danados, 2

 

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