MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

23/11/2013

AMÁLGAMA: um Rubem Fonseca pífio para 50 anos de carreira

580x415-sqPV Rio de Janeiro (RJ) 02/10/2013 Capa de livro Foto Divulgação

(uma versão da resenha abaixo foi publicada na Folha de São Paulo de 23 de novembro de 2013: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/11/1375157-critica-coletanea-reune-lado-fraco-de-rubem-fonseca.shtml )

Percorrendo os 34 textos que compõem Amálgama, o leitor encontra relances da genialidade que inovou profundamente a nossa ficção desde o lançamento, há 50 anos exatos, de Os Prisioneiros. Entre um Pedro Luiz, algumas poucas protagonistas femininas e outros não-nomeados, vários Josés—geralmente   órfãos, (mal)criados por uma tia— enredados na misoginia, na criminalidade ou na perversão (um deles gasta o capital da venda da casa para furar os peitos siliconados de uma mulher) circulam pelo anonimato urbano. Mesmo no caso do pai amoroso  de Conto de Amor, o lado “mundo-cão” prevalece : ele presenteia o filho nascido sem os membros com um explosivo.

Como que para rubricar esse estado de coisas, Rubem Fonseca seguiu o caminho adotado por Dalton Trevisan a certa altura da sua contística (ambos nasceram no mesmo ano, 1925, e os mais sérios candidatos ao posto de maior nome dentro do gênero), com relatos que vão na direção do tosco, do traço rupestre.

É difícil seguir Dalton título a título, mas quando cai algum nas mãos a impressão sempre é de vigor. Não é o caso de Amálgama. Não é ela a coletânea a redimir seu autor de uma sequência infindável de obras fracas; pelo menos, desde  O buraco na parede (1995).

Buscando ser cru à máxima potência (“Foi caminhando lentamente pela rua até que encontrou a primeira lata de lixo grande. Então jogou o bebê na lata de lixo”, lemos no conto de abertura, O filho), o José-autor revela-se apenas desfibrado[1], mesmo porque recai em truques derrisórios: assassinos de aluguel cultos (nem com o fracasso de O Seminarista, seu péssimo romance mais recente, ele aprendeu), espreitadores de mulheres que leem Chatwin, Theroux e Lévi-Strauss, e principalmente as risíveis informações de almanaque (de araque, dir-se-ia): o narrador tem bursite, “essa inflamação da bolsa, ou bursa, a cavidade que contém líquido seroso e reduz o atrito em articulações“, chegando à seguinte desfaçatez: “Afinal, que pessoas frequentavam essas festas? Creio que principalmente os boca-livristas (termo que resulta do substantivo boca-livre, evento ou lugar em que se pode comer e beber de graça) “[2].

O que há de mais horrível, afora a decadência da linguagem rubem-fonsequeana, é a inclusão (também à Dalton Trevisan) de arremedos da forma poética: “Um escrevia o nome da mulher amada com letras de macarrão/ Enquanto a sopa esfriava no prato./Outro era metade solidão e metade multidão./Estou de olhos neles./ Um andava com a espada sangrenta na mão./ Outro fingia que sentia o que de verdade sentia./Este dizia que não cabe no poema o preço do feijão (…) Este vê a vida como origem da sua inspiração/ A vida que é comer, defecar e morrer (…)/ A poesia é uma sopa de pedra/ Cabe tudo dentro dela” (Sopa de pedra)[3].

Há os lampejos mencionados e alguns textos que, se não redentores do conjunto, pelo menos honram a firma (Conto de AmorDevaneio, por exemplo[4]). O saldo final é depressivo: Fonseca parece imitar um jovem e ainda inábil escritor influenciado por sua obra. Mais do que a crueldade destilada (debilmente) pelas histórias, o leitor fica contristado com esse depauperamento avassalador de um universo autoral que já foi um marco e tanto. Não haverá comemorações para esse meio-século de produção.

VER TAMBÉM NO BLOG

https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/a-moralidade-de-best-seller-de-rubem-fonseca/

https://armonte.wordpress.com/2013/11/24/parcas-emocoes-e-romances-imperfeitos-a-fastidiosa-ficcao-longa-de-rubem-fonseca/

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https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/o-genial-rubem-fonseca-dos-primeiros-tempos/

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[1]  E, por vezes, parece estar parodiando (consciente ou inconscientemente?) seu maior rival:

“Estou olhando as mulheres passarem na rua em frente deste reles botequim.

     O cara me diz, meu irmão, pode descolar uma grana para um sujeito faminto?

    Foda-se, respondo.

    Eu podia estar assaltando, mas estou pedindo—ele não sabia se ameaçava ou suplicava.

     Foda-se, repito.

    Não consigo ver bem seus olhos ansiosos de cão vadio; é uma dessas noites escuras, propícia para os pé-rapados foderem as rameiras no cantão e terem um alívio agônico enquanto o dia afinal não chega com as ânsias mais horrendas” (Noite). Se houvesse um tempero mais “brejeiro”, seria um típico texto do Trevisan mais tardio.

[2] No primeiro parágrafo de Segredos e Mentiras (aquele em que o narrador não é um José, mas Pedro Luiz) temos uma promissora brincadeira com esse pedantismo raso: “Tenho uma tendência à prolixidade, uso mais palavras e frases do que o necessário e acabo me tornando enfadonho. Não existe nada pior do que ler um texto fastidioso. Por isso tentarei ser o mais conciso possível ao narrar esta história”. Pena que o relato, embora contenha aqueles “relances” da boa safra Fonseca, não tenha um resultado final apreciável: é fastidioso.

[3]  Para não dizer que todos os pruridos em versos de Amálgama são horríveis, tem um momento de quase-redenção: Lembranças, onde há um homem com Alzheimer, os versos ecoando o que restou da memória, e em última instância, dos traços da existência. No entanto, Fonseca teima em permanecer à superfície das coisas.

[4]  Há textos que “prometem” alguma coisa, e acabam logrando o leitor, como Isto é o que você deve fazer (o narrador espreita um sujeito que mata gatos) ou Perspectivas (que é destruído pelo bizarro almanaquismo do autor). O ciclista também poderia ser um belo relato.

Sem ser um grande conto, Best Seller é o mais divertido de Amálgama: trata-se de um escritor que precisa criar um livro “que tenha veracidade. Ninguém mais quer ficção, a ficção acabou. É isso que vende”. Como ele realiza essa passagem para a “veracidade” eu não conto, mas garanto que é um lampejo da velha (boa) crueldade rubem-fonsequeana.

Assim como o começo de Borboletas (que depois se perde nos cacoetes do autor):

“Estava pensando em escrever um livro para velhotas solitárias.

   O quê? Está maluco? Velhotas solitárias gostam de ir ao teatro de van. E sabe por quê?

    Primeiro elas têm a oportunidade de sair de casa, a van as apanha, leva ao teatro e traz de volta. Saem de casa, entendeu? Toda velhota quer sair de casa de noite; quando está lendo, ela não sai de casa, fica de camisola, pijama, ou sei lá que for, cochilando com o livro  no peito. Mas quando ela vai ao teatro, ela se arruma toda, precisa ir à manicure, ao cabeleireiro, entendeu?

    Então para quem vou escrever o meu livro novo?”

Outra boa oportunidade perdida, por causa dos artifícios do discurso (fastidiosos) é Crianças e velhos, cujo narrador(que “despreza os pedófilos”) recolhe em casa uma menina de quatro anos: “Bem, vou deitar. O pesadelo está me esperando” é a última frase. Isso é o cru. Isso é o rupestre em sua melhor forma, pena que para chegar a ele temos de aturar páginas “a mais do que o necessário”, como bem alertou nosso amigo Pedro Luís.

Outros textos, como Decisão, respiram o ar da autoparódia (o assassino não mata mulheres nem anões). Aliás, não podia faltar a autorreferência: “Tem sempre um anão se metendo na minha vida. Até já matei um e coloquei dentro de uma mala”, lemos em Perspectivas (O anão é um dos textos mais brilhantes de O buraco na parede); ou como O espreitador, malgrado alguns “relances” (“Espreitada parada perde a graça, mesmo de saia. O que é bonito é a Espreitada em movimento”). O pior, nessa linha, é provavelmente A festa.

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