Nélida Piñon fez, com A roda do vento,uma primeira incursão pela literatura juvenil, procurando construir um elogio à imaginação contra a mesmice do cotidiano, contra a rotina, os hábitos institucionalizados. Elogio, aliás, de praxe nesse filão editorial.
Muito bonito. Mas eu jamais quererira ser o jovem destinatário desse elogio: A roda do vento é o tipo de livro que coloca o leitor iniciante contra a literatura, o tipo de livro que faz co que ele ache a leitura a coisa mais chata do mundo.
Tal fato não é muito surpreendente em se tratando de Nélida Piñon. Ela já foi ruim e ilegível (qual “coração valente” terá chegado ao final de Madeira feita cruz, Guia-mapa de Gabriel Arcanjo ou Fundador?). Mais tarde, ela tentou ser legível e foi igualmente ruim (em A casa da paixão& A república dos sonhos); é uma lástima, porém, o caso de A roda do vento, pois parecia um livro promissor. E essa parece ser a maldição de Nélida: alguns textos seus (contos de Sala de armas, o romance paródico A força do destino) começam prometendo, parecendo que vão decolar e que a autora conseguirá atravessar o inferno astral de chatice, falta de espontaneidade e ausência do senso de realidade, no qual chafurda e agoniza como uma penitente de Dante. Alguma coisa acontece, contudo, no coração da narrativa, um enfarte fulminante, e tudo desmorona no besteirol.
A roda do vento tem como cenário a cidadezinha de Catavento (podia ser mais óbvio?), onde não acontece nadaa não ser um misterioso vento semanal e a chegada de Gênia (!!??), tia da dupla central de crianças, Tarzan e Beijinho. Ela é o ídolo da garotada porque conta histórias.
Para o leitor, ela parece mais uma chata de galocha que diz coisas do tipo: “O Brasil é como um doente que precisa de remédios. Só que, para sarar, ele precisa de cultura”. É mole? Mas também o pai deles, Armando, não fica atrás em sentenciosidade ridícula: “O Brasil não tem memória porque as famílias se esquecem de entregar aos filhos os retratos, os papéis, as intrigas escondidas no porão de cada casa”!!??
Na intriga armada pela autora, em que os personagens ficam “genuflexos”, “impávidos” e saem “vencedores da pugna” (o que me confirma a desconfiança, após umas coxas de alabastro que apareciam em A casa da paixão, de que Nélida Piñon veio ao mundo com o coração parnasiano), Tarzan descobre que o dono do bar da cidade e seu sócio escondem alguma coisa relacionada com o vento. Através de um mapa, ele e sua turma encontram uma caverna onde o misterioso vento vive aprisionado pelos dois comparsas, dentro de um odre (para que a autora possa nos remeter ao mito de Éolo e sua participação no regresso de Ulisses para casa na Odisséia).Como foi Gênia quem começou toda a especulação sobre o vento, caberá a ela a palavra final, salvando a garotada que ficou em apuros na caverna, pois, segundo ela, quem começa a contar uma história é seu dono.
Há coisas boas. Apesar de tudo, é sempre necessário um fundo pedagógico nas histórias juvenis, e por isso são válidas as informações sobre o vento, tanto literárias quanto geográficas. Seria muito instigante, caso melhor aproveitada, a idéia de que todos, mesmo os personagens mais prosaicose mergulhados na rotona, projetam sua fantasia em algo.
A narrativa vai desenhando diversos graus de envolvimento com a imaginação e a criatividade, desde a empregada Nhonhô,com seus quitutes, até a tia Gênia. O problema é que a imaginação da autora simplesmente não decola. E nem a linguagem. A expedição à caverna é sabotada por trechos como: “Se o triunfo promovia a glória, o fracasso vergava-lhe os ombros” (referindo-se à situação de Tarzan como líder do grupo) ou “Aquele mundo de pedra haveria na manhã seguinte de dardejar setas de luz oriundas do sol”!!??
E quando o próprio Tarzan toma a narrativa para si, no capítulo 15, a autora fá-lo afirmar coisas como “Aquela excursão precisava ser coroada de êxito. Havia que acreditar na concórdia dos homens”, e temos a interminável e impagável litania de Gênia invocando o vento: “Tu que governas os grotões da terra, que alicias as ondas do mar, que atormentas os sentidos dos fracassados, castigas os que traem,os que mentem, os que não sabem sonhar”, lembrando aquela iinsuportável e bisonha canção de Guilherme Arantes, Planeta Água.
A mediocridade do seu estilo não impede que Nélida Piñon tente dar um clima grandioso para o seu livreco: “Dava-se na caverna, em torno do odre, uma batalha que, desde a criação do homem, perseguiu a humanidade.As forças do bem e do mal defrontando-se em acirrada contenda”!!??
Há, anexo ao livro, um suplemento de apoio para os alunos (deveria ser, na verdade, um pronto-socorro porque muitos poderão sucumbir ao tédio mortal), com um roteiro para o professor trabalhar com eles, cheio de observações interessantes e inteligentes. Tal suplemento-roteiro é mais criativo do que o próprio A roda do vento: inventa um livro que o leitor não leu. Temos declarações como: “Tal indefinição proposital faz com que o leitor não possa ter uma atitude passiva, de quem apenas segue um trabalho acabado. Ele é de certa forma um co-autor da obra… Enfim, trata-se de uma escritora que promove verdadeira iniciação à ficção literária e desvenda-lhes o fascínio perene da literatura, a possibilidade de construir um mundo a partir das palavras…” Isso sim é uma imaginação delirante. Ou uma cabeça-de-vento.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 03 de dezembro de 1996)