MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

06/03/2018

OS 50 ANOS DE “A OBRA EM NEGRO”, DE MARGUERITE YOURCENAR

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 06 de março de 2018)

Há 50 anos Marguerite Yourcenar publicou “A OBRA EM NEGRO”, que se tornou um dos meus livros prediletos: desde os 18 anos leio e releio as aventuras de Zênon, seu herói lunar (em contraste com o protagonista solar de “Memórias de Adriano”).

“A OBRA EM NEGRO” é a história de Zênon, filho bastardo dentro de uma abastada família flamenga, que deixa Bruges, sua terra natal, após matar numa briga o aprendiz de artesão Perrotin, tornando-se com os anos um famoso (e para a Igreja, herético) médico, filósofo e alquimista, na linha de Leonardo, para Celso, Giordano Bruno.

Na primeira parte, “A vida Errante”, após um perfil de Zênon aos 20 anos, a grande escritora belga (de expressão francesa) acaba mostrando-o quase sempre de viés, mais como um objeto da opinião pública, que especula a respeito de suas várias transgressões, em meio a mentiras, boatos e distorções. Conhecemos também, paralelamente, a trajetória de algumas pessoas ligadas a Zênon: sua mãe, Hilzonda, que morre num cerco aos anabatistas, rebeldes religiosos; seu primo, Henri-Maximilien, que abandona a família para engajar-se em qualquer guerra…

É no capítulo “Conversa em Innsbruck” que conhecemos o Zênon já maduro, resultado das viagens e perseguições, enfim, de uma vida precária e ameaçada. E a princípio não se tem certeza de que se pode simpatizar com um tipo tão opiniático, tão lúgubre e amargo, tão consumido pela experiência.

Se a primeira parte já é interessante, com seu painel do século XVI, onde se vive, grosso modo, o conflito entre o Catolicismo e a Reforma Protestante, “A OBRA EM NEGRO” cresce vertiginosamente (e também a figura de Zênon, que passa a ocupar o primeiro plano quase que exclusivamente) nas duas outras partes, “A vida Imóvel” e “A Prisão”. O belo filme de André Delvaux, com um notável Gian-Maria Volonté no papel central, concentra-se mais nesse ponto da história, muito menos movimentado, porém mais denso: Zênon decide voltar clandestinamente a Bruges, estabelecendo-se como o médico Sebastian Theus, de certa forma protegido pelo compassivo prior dos franciscanos, Jean-Louis de Berlaimont (que foi admiravelmente encarnado por Sami Frey na versão cinematográfica). Depois da morte do prior, por causa de confusões sexuais de noviços no mosteiro, acaba nas mãos da Inquisição, sentenciado à fogueira, da qual escapa pelo suicídio.

Da vida imóvel de Zênon emerge o grande tema das maiores obras de Yourcenar, na minha opinião: o tudo-nada que é a experiência. Ela nos descreve a experiência da vida da forma mais detalhista, para depois nos mostrar a sua dissolução e a sua negação. É o que faz Zênon, no “Abismo” (título do capítulo-âmago do romance), experimentando os limites do corpo e da mente, de forma que, em meio aos resíduos do que ele viveu e pensou e sentiu, ele consegue roçar o não-ser.

A ironia é que, engajado nessa experiência de superação dos limites da nossa condição, ele se vê ao mesmo tempo enredado (no sentido mesmo da vítima na teia de aranha), num contexto histórico que não deixa muitas saídas para quem não professe um dogma ou pertença a um partido, a uma determinada associação. Tendo escolhido uma existência sem laços, Zênon sempre será o suspeito, o dissidente, o que traz em si o princípio da negação, embora dele se diga: “por estar mais familiarizado com o procedimento que consiste em negar tudo—para depois ver se em seguida se pode reafirmar alguma coisa—e, em desfazer tudo—para ver depois tudo se refazer em outro plano ou de outra forma…”

Ou como ele mesmo diz, é preciso morrer um pouco menos tolo do que quando se veio ao mundo.

03/12/2014

O TUDO-NADA DA EXPERIÊNCIA: “A Obra em Negro”, de Marguerite Yourcenar

yourcenar

a-obra-em-negro1a-obra-em-negro-marguerite-yourcenar-13702-MLB74233597_7954-OA obra ao negro

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 16 de junho de 1998)

Se 1968 é o ano que ainda não terminou, como quer o título de um livro de sucesso, uma das razões, para quem gosta de literatura, é que há trinta anos, em meio àquela época de contestação e rebeldia, publicou-se uma das maiores, mais contestatórias e rebeldes obras de ficção do século XX: A obra em negro (L´oeuvre au noir, em tradução de Ivan Junqueira), embora o romance de Marguerite Yourcenar só tenha aparecido naquele momento em virtude de uma querela judicial que se arrastava desde 1965.

A obra em negro é a história de Zênon, filho bastardo dentro de uma abastada família flamenga, que deixa Bruges, sua terra natal, após matar numa briga o aprendiz de artesão Perrotin, tornando-se com os anos um famoso (e para a Igreja, herético) médico, filósofo e alquimista, na linha de Leonardo, paracelso, Giordano Bruno.

Na primeira parte, A vida errante, após um perfil de Zênon aos 20 anos, a grande escritora belga (de expressão francesa) acaba mostrando-o quase sempre de viés, mais como um objeto da opinião pública, que especula a respeito de suas várias transgressões, em meio a mentiras, boatos e distorções. Conhecemos também, paralelamente, a trajetória de algumas pessoas ligadas a Zênon: sua mãe, Hilzonda, que morre num cerco aos anabatistas, rebeldes religiosos; seu primo, Henri-Maximilien, que abandona a família para engajar-se em qualquer guerra…

obra em negro

É no capítulo “Conversa em Innsbruck” que conhecemos o Zênon já maduro, resultado das viagens e perseguições, enfim, de uma vida precária e ameaçada. E a princípio não se tem certeza de que se pode simpatizar com um tipo tão opiniático, tão lúgubre e amargo, tão consumido pela experiência.

Se a primeira parte já é interessante, com seu painel do século XVI, onde se vive, grosso modo, o conflito entre o Catolicismo e a Reforma Protestante, A obra em negro cresce vertiginosamente (e também a figura de Zênon, que passa a ocupar o primeiro plano quase que exclusivamente) nas duas outras partes, A vida imóvel e A prisão. O belo filme de André Delvaux, com um notável Gian-Maria Volonté no papel central, concentra-se mais nesse ponto da história, muito menos movimentado, porém mais denso: Zênon decide voltar clandestinamente a Bruges, estabelecendo-se como o médico Sebastian Theus, de certa forma protegido pelo compassivo prior dos franciscanos, Jean-Louis de Berlaimont (que foi admiravelmente encarnado por Sami Frey na versão cinematográfica). Depois da morte do prior, por causa de confusões sexuais de noviços no mosteiro, acaba nas mãos da Inquisição, sentenciado à fogueira, da qual escapa pelo suicídio.

Da vida imóvel de Zênon emerge o grande tema das maiores obras de Yourcenar, na minha opinião: o tudo-nada que é a experiência. Ela nos descreve a experiência da vida da forma mais detalhista, para depois nos mostrar a sua dissolução e a sua negação. É o que faz Zênon,  no abismo (título do capítulo-âmago do romance), experimentando os limites do corpo e da mente, de forma que, em meio aos resíduos do que ele viveu e pensou e sentiu, ele consegue roçar o não-ser.

A ironia é que, engajado nessa experiência de superação dos limites da nossa condição, ele se vê ao mesmo tempo enredado (no sentido mesmo da vítima na teia de aranha), num contexto histórico que não deixa muitas saídas para quem não professe um dogma ou pertença a um partido, a uma determinada associação. Tendo escolhido uma existência sem laços, Zênon sempre será o suspeito, o dissidente, o que traz em si o princípio da negação, embora dele se diga: “por estar mais familiarizado com o procedimento que consiste em negar tudo—para depois ver se em seguida se pode reafirmar alguma coisa—e, em desfazer tudo—para ver depois tudo se refazer em outro plano ou de outra forma…”

Ou como ele mesmo diz, é preciso morrer um pouco menos tolo do que quando se veio ao mundo.

oeuvre_au_noir_08

oeuvre-au-noir-01-g

marguerite

30/07/2011

Sobre a obra de Marguerite Yourcenar

yourcenar

O CENTENÁRIO DE YOURCENAR

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 10 de junho de 2003)

Nascida a 8 de junho de 1903 na Bélgica (e tendo vivido boa parte da sua existência nos EUA), Marguerite Yourcenar confirma o chavão “a língua é minha pátria”: tornou-se um dos principais nomes da literatura francesa do século XX.

No Brasil, ganhou notoriedade com a tradução, em 1980, do seu livro mais famoso, Memórias de Adriano (1951), um inusitado best seller, que coincidiu com sua eleição como a primeira mulher da Academia Francesa de letras (tão ridícula e grotesca quanto a nossa). Sorte de quem, como eu, estava na adolescência: em muitíssimo boa hora (para utilizar uma expressão que lhe era peculiar: de très bonne heure) pôde conhecer uma série de livros essenciais que a Nova Fronteira lançou regularmente (arrefecendo no início dos anos 90), além da inigualável reconstituição da mentalidade do imperador romano do século II.

Assim, tivemos sua obra-prima suprema, A obra em negro (1968), que aborda ao mesmo tempo o muno do Renascimento, como também a fronteira entre o ser e o não-ser; o seu romance mais desencantado (pelo menos na segunda versão, publicada em 1959, a partir de um original de 1934), Denário do sonho, igualmente fundamental, onde encontramos todos os seus defeitos e qualidades como escritora (o estilo às vezes vacila e fica meio afetado, porém o efeito geral é poderoso e cada revisão confirma isso): a Roma de Mussolini continua a “cidade eterna” na qual podemos encontrar o Mito em meio à insustentável leveza do ser do dia-a-dia (dois capítulos particularmente extraordinários são os que mais persistem na memória anos depois: o que aborda a vida da vendedora de círios, a siciliana Rosalia di Credo, antes do seu suicídio, e aquele em que sua irmã, Angiola, está incógnita num cinema vendo a si mesmo como atriz na tela e embarcando num incidente sexual como Alessandro, marido da protagonista do romance, Marcella, que comete um atentado contra o “Duce”).

Tivemos, também, o belo Golpe de Misericórdia (1939), que marcou o final de sua primeira fase como escritora, antes da mudança para os EUA e o retorno triunfal com a publicação de Adriano. Mesmo os que não gostam de Yourcenar como escritora (e são muitos) geralmente apreciam esse romance, muito mal adaptado para o cinema por Volker Schlondorff (um contumaz assassino de obras literárias), ao contrário de A obra em negro.

Ainda podem ser citado entre os destaques da sua obra, os textos mitológico-passionais de Fogos (1936), um dos raros da primeira fase em que ela aparentemente não mexeu, e que ganha muito se lido com Denário do sonho. Alguns dos Contos Orientais (1938) são memoráveis, como “O último amor do príncipe Genji” ou “Como Wang Fô foi salvo” (outros, nem tanto).

De Como a água que corre, que é de 1981, mas a partir de um outro livro de 1934 (La mort conduit l´attelage-A morte conduz a carroça) temos os dois magníficos textos-testamentos tardios de Yourcenar, que transcorrem no século XVII, Um homem obscuro e Uma bela matinê (cujo protagonista, Lazare, filho do “homem obscuro”, Nathanael, aos 12 anos, sonha toda a sua vida futura, interpretando personagens de Shakespeare, ao se incorporar numa compahia teatral; a história de Nathanael, por sua vez, mostra que qualquer homem que se indaga sobre o mundo e as coisas—e deixa a água correr—pode realizar em si a meta que a filosofia se propôs).

Obrigatória seria, também, a leitura de O labirinto do mundo, trilogia sobre a história da família da autora, da qual destaco especialmente o primeiro volume, que tem o belíssimo título original de Souvenirs Pieux (1974), vertido insossamente para Recordações de família; para mim, marcou um novo patamar na minha admiração pela obra de Yourcenar, ao contrário de quase todo o restante da crítica, que exalta o tumultuoso e cansativo segundo volume, Arquivos do Norte (1976). O último, A eternidade, o que é, ficou incompleto e foi lançado postumamente (ela morreu em 1987).

E também a leitura de alguns ensaios de Sous bénéfice d´inventaire, outro belo título, que virou um reles Notas à margem do tempo (aquele sobre Thomas Mann, por exemplo, ou aquele sobre Piranesi), e de O tempo, esse grande escultor, além de A visão do vazio, sobre Mishima (o único não publicado pela Nova Fronteira entre os textos citados aqui, mas que tem edição pela Guanabara).

E, para fechar, um livro muito querido e infinitamente lido nos anos 80, De olhos abertos (o título é uma alusão à frase final de Memórias de Adriano), suas entrevistas com Mathieu Galey, as quais delineavam uma mulher admirável (e de fato ela o era, mas de outro modo). Infelizmente, era uma imagem esculpida, inventada, retocada, uma persona.

A biografia de Josyane Savigneau, A invenção de uma vida, uma das melhores no gênero, desmistifica cruelmente De olhos abertos e Marguerite Yourcenar, sem, no entanto, fazer cair o interesse nem por um nem por outro. Nem sempre a grande escritora francesa caminhou de olhos abertos. Atire a primeira pedra quem nunca fechou os seus também.

yourcenar_2N

Blog no WordPress.com.