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I
Por que terá calhado ao destino fazer viver como contemporâneos, e no mesmo país,os dois maiores gênios literários do século XIX (junto com Flaubert): Fiódor Dostoiévski (1821-1881)e Lev Tolstói, o qual viveu um pouco mais (1828-1910) e terminou seus dias como uma espécie de Rei Lear?
Tolstói é um autor perigos para os demais. Sempre que o lemos parece que não se precisa ler mais nenhum outro escritor. Ele parece ser o limite do que pode ser dito e representado através das palavras. O leitor pode verificar essa minha afirmação através da edição conjunta de cinco textos curtos que a Ediouro está lançando, As obras-primas de Leon Tolstói: A morte de Ivan Ilitch; Senhores e servos; Sonata a Kreutzer; A felicidade conjugal; Onde está o Amor, Deus está também, com traduções de Marques Rebelo, Boris Schnaiderman e Ruy Jungman.
O primeiro da coletânea, A morte de Ivan Ilitch (1886), é também o melhor.Na verdade, é o texto mais cruel e terrível já escrito, uma assustadora reflexão sobre a mortalidade. Também assustador é o descuidado trato editorial da Ediouro. Não há uma única nota de rodapé, os termos e frases em francês (comuns em qualquer obra russa do século passado) não são destacados em itálicos; em compensação, há pedaços de palavras que estão assim incompreensivelmente grifadas, sem nenhuma razão aparente que não o mero desleixo. E o acento que o pronome tu ganhou várias vezes: Lindo, esse Tú criado pela editora para,talvez,fazer brilhar mais o estilo de Tolstói, talvez fazê-lo competir com o Finnegans Wake de Joyce. E na pág. 73, a palavra decência (uma palavra-chave no texto)foi trocada por decadência. Será que a Ediouro queria ajudar a matar Ivan Ilitch mais depressa?
Mas do que morre Ivan Ilitch? Calma,leitor, a edição brasileira tem pouca participação nesse destino terrível. Ele é um juiz, um cidadão que leva sua vida comme il faut, isto é, dentro do convencional,do decente, do respeitável, apesar de alguns aborrecimentos domésticos. Um dia, sofre uma queda e machuca a ilharga. A partir daí, desenvolve uma doença misteriosa que lhe provoca dores lancinantes, as quais depois de certo ponto não são aplacadas com ópio nem com morfina.
“Por favor, queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da solidão dessehomem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós”. Nessas palavras de A obscena senhora D (1982), grande momento da sua obra, Hilda Hilst coloca o dedo na ferida: ao se perceber como moribundo, uma pessoa que já é considerada morta, mesmo em vida, Ivan Ilitch tem de enfrentar a solidão que, em última instância, é a nossa condição. E ao enfrentar essa solidão, faz uma descoberta mais aterrorizante ainda:a mentira do dia a dia(esses nadas que vão consumindo a melhor parte de nós), que, inclusive, quer varrer a idéia da morte para debaixo do tapete e vê no agonizante uma lembrete incômodo.Chega um momento em que o outrora juiz se vê reduzido à mesma condição de Gregor Samsa, de A metamorfose: é o monstro que tem que ser escondido para não horrorizar os outros.
É avassaladora a maneira como Tolstói faz Ivan Ilitch defrontar-se com a morte a partir da reminiscência do silogismo filosófico básico que aprendera quando jovem: “Caio é um homem, os homens são mortais; logo, Caio é mortal”. Como abstração, pairando no reino das generalidades, que coisa bonita e lógica!, só que, quando a sentimos na carne, nenhuma angústia é maior: “Que Caio,o homem abstrato, fosse mortal, era perfeitamente certo; ele, porém, não era Caio, não era um homem abstrato, era um ser completa e absolutamente distinto dos demais”. E, de repente, de idéia, a morte se torna uma evidência; mais ainda, uma vivência: “Ia para o escritório, deitava-se novamente ficava a sós com ela. Cara a cara, e sem nada poder fazer,salvo encará-La, enquanto o coração gelava-se no peito”. Radicalizando o processo de idéia e vivência, a Morte se torna um aprendizado, uma tabula rasa que mostra que, de fato, a verdadeira morte estava na vida alienada e medíocre que levara. Ao morrer, pensa: “Acabou a Morte, a Morte já não mais existe”.
Tal desfecho passa longe de ser otimista. Muito pelo contrário, é desolador. Porque joga uma luz negra sobre a existência que nós levamos, assemelha-se a um veredicto inapelável sobre a nossa maneira de viver. Lendo a obra-prima de Tolstói é que podemos ver como são acertadas as palavras de Harold Bloom em O cânone ocidental sobre a função da obra literária (e da obra de arte em geral).A alta literatura não torna ninguém melhor ou pior, mais útil ou mais nocivo. O que nos faz e nos traz é “o uso correto de nossa solidão, essa solidão cuja forma final é nosso confronto com nossa mortalidade”.
Com relação a isso, A morte de Ivan Ilitch adquire quase um caráter cósmico, é um texto-limite. Eu só lembro de uma outra obra que conseguiu quase o mesmo efeito, o lindíssimo filme de Bergman, Gritos & sussurros (1972), que também desmascara os nadas do dia a dia que vão consumindo a nossa melhor parte: “Aquela mentira que lhe era pregada nas portas da morte, aquela mentira que rebaixava o solene e terrível desenlace ao nível das visitas sociais, das cortinas, do esturjão que se comera no jantar… O monstruoso, o horrendo ato da morte era por todos rebaixado ao nível de um acidente fortuito, desagradável, quase inconveniente(mais ou menos como se trata alguém que entrasse numa sala fedendo a catinga),e tudo era praticado em nome daquela decência que ele tanto defendera durante toda a sua vida”.
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de novembro de 2000)
II
Na seção anterior, foi colocado em evidência A morte de Ivan Ilitch porque ele está para a ficção do século XIX como A metamorfose, de Kafka, está para a do século XX.
Outro momento extraordinário incluído na seleção é Sonata a Kreutzer (1889): numa viagem de trem, no decorrer de uma conversa mundana, um dos passageiros, Pozdnichev, conta como assassinou a esposa, amante de um músico. Na verdade,o truque utilizado para apresentar a narrativa de Pzdnichev, o debate dos passageiros, cria de antemão a sustentação para o tom polêmico e provocativo de Sonata a Kreutzer, tom que se prolonga no famoso pós-escrito do auto, inexplicavelmente excluído da edição que ora se comenta (um dos seus inúmeros pecados). Como acontece sempre, quando um personagem tende a ser um pouco maníaco, na sua ânsia de provar a sua causa, ele acaba se revelando pelo avesso. Isso já acontecia com os personagens de Dostoiévski(e esse talvez seja o texto mais dostoievskiano de Tolstói) e acontecerá com o Bentinho de Dom Casmurro e com a governanta de A volta do parafuso, entre tantos outros.
O estranho é que Tolstói não se tenha apercebido disso e caído no ridículo de coincidir com as conclusões do seu maníaco: “A união com uma mulher, no casamento ou fora deste, é uma finalidade indigna de um homem. Apesar de tudo quanto dizem os poetas, é tão indigna quanto aspirar a engordar com uma superalimentação, coisa que alguns consideram o bem supremo… É isto a essência daquilo que pensei e que quis exprimir na minha narrativa. Acreditei que se podia discutir a maneira de remediar a situação atual…”O conde evangelizador procurava sanear os costumes com suas narrativas. Não importa: Sonata a Kreutzer é genial apesar da intenção moralizante e edificante que o seu autor pretendia, é uma das melhores histórias de adultério num século que era obcecado pelo assunto.
Muito antes, em 1859, aos 31 anos,ele escrevera uma belíssima novela sobre o casamento, instituição que ele anatematiza tão apocalipticamente em Sonata a Kreutzer: A felicidade conjugal, um tour de force em que ele exercita uma narrativa em primeira pessoa sob o ponto-de-vista da esposa, a jovem Macha, que se apaixona e se casa com um homem quase vinte anos mais velho. É através das impressões e reflexões de Macha que o leitor vai acompanhando uma profunda e alquímica transformação de sentimentos, mas que ocorre em filigrana: temos as diversas nuances que constituem a “realidade” dos sentimentos. O amor romântico de Macha e Sierguei Mikhálitch morre e, como ela diz, “não tem mais força nem suculência”. O que sobrou? “Sobrou o amor” , isto é, a felicidade conjugal,como conclui a narradora num dos mais belos finais já escritos: “…terminou o romance com meu marido; o sentimento antigo tornou-se uma recordação querida, algo impossível de trazer de volta, e o novo sentimento de amor aos filhos e ao pai dos meus filhos deu início a uma nova vida, de uma felicidade completamente diversa e que ainda não acabei de viver”.
As obras-primas de Leon Tolstói ainda reserva um grande texto, Senhores e servos (o título seria melhor traduzido no singular, Senhor e servo ou Amo e criado), uma espécie de contraponto ao tenebroso Ivan Ilitch ao abordar a morte de uma forma mais redentora. Trata-se da história de um ganancioso proprietário que deseja fazer um negócio da China e sai num dia de nevasca com seu servo para efetivá-lo. Perdem-se no caminho e, com a chegada da noite e o frio intenso, a morte é certa. Temos, mais uma vez, uma situação-limite: Vassilii, o senhor, morre aquecendo com seu corpo Nikita, o servo: “Compreende que é a morte e não se sente desolado. Lembra-se de Nikita, que está debaixo dele, aquecido e vivo! Parece-lhe que ele, Vassilii Andréitch, é Nikita, e que Nikita é ele, e que sua própria vida não está com ele e sim Nikita… E lembra-se do seu dinheiro, do seu armazém, da sua casa, das vendas e compras…É incompreensível como aquele homem que se chama Vassilii dava tanta importância a tais bagatelas”.
Onde está o Amor,Deus está também destoa na seleção. É uma historinha curta e edificante sobre um sapateiro que espera a visita de Cristo (anunciada num sonho) e que ajuda várias pessoas ao longo de uma jornada de trabalho, descobrindo, no fim, que todas elas eram avatares de Cristo. Ao invés dessa baboseira evangélica, que representa o lado pior de uma obra monumental, por que não colocaram Hadji Murat ou A cédula falsa, que são equivalentes em extensão e qualidade às outras quatro? Ou então, se havia necessidade de algo mais curto, contos mais expressivos como, por exemplo, Três mortes ou Kolstomer?
(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de novembro de 2000)