MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

24/04/2013

O ESCRITOR LIMITE (III): QUATRO ASES E UM CORINGA DE TOLSTÓI

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 I

Por que terá calhado ao destino fazer viver como contemporâneos, e no mesmo país,os dois maiores gênios literários do século XIX  (junto com Flaubert): Fiódor Dostoiévski (1821-1881)e Lev Tolstói, o qual viveu um pouco mais (1828-1910) e terminou seus dias como uma espécie de Rei Lear?

Tolstói é um autor perigos para os demais. Sempre que o lemos parece que não se precisa ler mais nenhum outro escritor. Ele parece ser o limite do que pode ser dito e representado através das palavras.  O leitor pode verificar essa minha afirmação através da edição conjunta de cinco textos curtos que a Ediouro está lançando, As obras-primas de Leon Tolstói: A morte de Ivan Ilitch; Senhores e servos; Sonata a Kreutzer; A felicidade conjugal; Onde está o Amor, Deus está também, com traduções de Marques Rebelo, Boris Schnaiderman e Ruy Jungman.

O primeiro da coletânea, A morte de Ivan Ilitch (1886),  é também o melhor.Na verdade, é o texto mais cruel e terrível já escrito, uma assustadora reflexão sobre a mortalidade. Também assustador é o descuidado trato editorial da Ediouro. Não há uma única nota de rodapé, os termos e frases em francês (comuns em qualquer obra russa do século passado) não são destacados em itálicos; em compensação, há pedaços de palavras que estão assim incompreensivelmente grifadas, sem nenhuma razão aparente que não o mero desleixo. E o acento que o pronome tu ganhou várias vezes: Lindo, esse criado pela editora para,talvez,fazer brilhar mais o estilo de Tolstói, talvez fazê-lo competir com o Finnegans Wake de Joyce. E na pág. 73, a palavra decência (uma palavra-chave no texto)foi trocada por decadência. Será que a Ediouro queria ajudar a matar Ivan Ilitch mais depressa?

Mas do que morre Ivan Ilitch? Calma,leitor, a edição brasileira tem pouca participação nesse destino terrível. Ele é um juiz, um cidadão que leva sua vida comme il faut, isto é, dentro do convencional,do decente, do respeitável, apesar de alguns aborrecimentos domésticos. Um dia, sofre uma queda e machuca a ilharga. A partir daí, desenvolve uma doença misteriosa que lhe provoca dores lancinantes, as quais depois de certo ponto não são aplacadas com ópio nem com morfina.

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“Por favor, queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da solidão dessehomem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós”. Nessas palavras de A obscena senhora D (1982), grande momento da sua obra, Hilda Hilst coloca o dedo na ferida: ao se perceber como moribundo, uma pessoa que já é considerada morta, mesmo em vida, Ivan Ilitch tem de enfrentar a solidão que, em última instância, é a nossa condição. E ao enfrentar essa solidão, faz uma descoberta mais aterrorizante ainda:a mentira do dia a dia(esses nadas que vão consumindo a melhor parte de nós), que, inclusive, quer varrer a idéia da morte para debaixo do tapete e vê no agonizante uma lembrete incômodo.Chega um momento em que o outrora juiz se vê reduzido à mesma condição de Gregor Samsa, de A metamorfose: é o monstro que tem que ser escondido para não horrorizar os outros.

É avassaladora a maneira como Tolstói faz Ivan Ilitch defrontar-se com a morte a partir da reminiscência do silogismo filosófico básico que aprendera quando jovem: “Caio é um homem, os homens são mortais; logo, Caio é mortal”. Como abstração, pairando no reino das generalidades, que coisa bonita e lógica!, só que, quando a sentimos na carne, nenhuma angústia é maior: “Que Caio,o homem abstrato, fosse mortal, era perfeitamente certo; ele, porém, não era Caio, não era um homem abstrato, era um ser completa e absolutamente distinto dos demais”. E, de repente, de idéia, a morte se torna uma evidência; mais ainda, uma vivência: “Ia para o escritório, deitava-se novamente ficava a sós com ela. Cara a cara, e sem nada poder fazer,salvo encará-La, enquanto o coração gelava-se no peito”. Radicalizando o processo de idéia e vivência, a Morte se torna um aprendizado, uma tabula rasa que mostra que, de fato, a verdadeira morte estava na vida alienada e medíocre que levara. Ao morrer, pensa: “Acabou a Morte, a Morte já não mais existe”.

Tal desfecho passa longe de ser otimista. Muito pelo contrário, é desolador. Porque joga uma luz negra sobre a existência que nós levamos, assemelha-se a um veredicto inapelável sobre a nossa maneira de viver. Lendo a obra-prima de Tolstói é que podemos ver como são acertadas as palavras de Harold Bloom em O cânone ocidental sobre a função da obra literária (e da obra de arte em geral).A alta literatura não torna ninguém melhor ou pior, mais útil ou mais nocivo. O que nos faz e nos traz é “o uso correto de nossa solidão, essa solidão cuja forma final é nosso confronto com nossa mortalidade”.

Com relação a isso, A morte de Ivan Ilitch adquire quase um caráter cósmico, é um texto-limite. Eu só lembro de uma outra obra que conseguiu quase o mesmo efeito, o lindíssimo filme de Bergman,  Gritos & sussurros (1972), que também desmascara os nadas do dia a dia que vão consumindo a nossa melhor parte: “Aquela mentira que lhe era pregada nas portas da morte, aquela mentira que rebaixava o solene e terrível desenlace ao nível das visitas sociais, das cortinas, do esturjão que se comera no jantar… O monstruoso, o horrendo ato da morte era por todos rebaixado ao nível de um acidente fortuito, desagradável, quase inconveniente(mais ou menos como se trata  alguém que entrasse numa sala fedendo a catinga),e tudo era praticado em nome daquela decência que ele tanto defendera durante toda a sua vida”.

(resenha publicada  originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de novembro de 2000)

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II

Na seção anterior, foi colocado em evidência A morte de Ivan Ilitch porque ele está para a ficção do século XIX como A metamorfose, de Kafka, está para a do século XX.

Outro momento extraordinário incluído na seleção é Sonata a Kreutzer (1889): numa viagem de trem, no decorrer de uma conversa mundana, um dos passageiros, Pozdnichev, conta como assassinou a esposa, amante de um músico. Na verdade,o truque utilizado para apresentar a narrativa de Pzdnichev, o debate dos passageiros, cria de antemão a sustentação para o tom polêmico e provocativo de Sonata a Kreutzer, tom que se prolonga no famoso pós-escrito do auto, inexplicavelmente excluído da edição que ora se comenta (um dos seus inúmeros pecados). Como acontece sempre, quando um personagem tende a ser um pouco maníaco, na sua ânsia de provar a sua causa, ele acaba se revelando pelo avesso. Isso já acontecia com os personagens de Dostoiévski(e esse talvez seja o texto mais dostoievskiano de Tolstói) e acontecerá com o Bentinho de Dom Casmurro e com a governanta de A volta do parafuso, entre tantos outros.

O estranho é que Tolstói não se tenha apercebido disso e caído no ridículo de coincidir com as conclusões do seu maníaco: “A união com uma mulher, no casamento ou fora deste, é uma finalidade indigna de um homem. Apesar de tudo quanto dizem os poetas, é tão indigna quanto aspirar a engordar com uma superalimentação, coisa que alguns consideram o bem supremo… É isto a essência daquilo que pensei e que quis exprimir na minha narrativa. Acreditei que se podia discutir a maneira de remediar a situação atual…”O conde evangelizador procurava sanear os costumes com suas narrativas. Não importa: Sonata a Kreutzer é genial apesar da intenção moralizante e edificante que o seu autor pretendia, é uma das melhores histórias de adultério num século que era obcecado pelo assunto.

Muito antes, em 1859, aos 31 anos,ele escrevera uma belíssima novela sobre o casamento, instituição que ele anatematiza tão apocalipticamente em Sonata a Kreutzer: A felicidade conjugal, um tour de force  em que ele exercita uma narrativa em primeira pessoa sob o ponto-de-vista da esposa, a jovem Macha, que se apaixona e se casa com um homem quase vinte anos mais velho. É através das impressões e reflexões de Macha que o leitor vai acompanhando uma profunda e alquímica transformação de sentimentos, mas que ocorre em filigrana: temos as diversas nuances que constituem a “realidade” dos sentimentos. O amor romântico de Macha e Sierguei Mikhálitch morre e, como ela diz, “não tem mais força nem suculência”. O que sobrou? “Sobrou o amor” , isto é, a felicidade conjugal,como conclui a narradora num dos mais belos finais já escritos: “…terminou o romance com meu marido; o sentimento antigo tornou-se uma recordação querida, algo impossível de trazer de volta, e o novo sentimento de amor aos filhos e ao pai dos meus filhos deu início a uma nova vida, de uma felicidade completamente diversa e que ainda não acabei de viver”.

[imagem 2] A morte de Ivan Ilitch [capa]59108_418

As obras-primas de Leon Tolstói ainda reserva um grande texto, Senhores e servos (o título seria melhor traduzido no singular, Senhor e servo ou Amo e criado), uma espécie de contraponto ao tenebroso  Ivan Ilitch ao abordar a morte de uma forma mais redentora. Trata-se da história de um ganancioso proprietário que deseja fazer um negócio da China e sai num dia de nevasca com seu servo para efetivá-lo. Perdem-se no caminho e, com a chegada da noite e o frio intenso, a morte é certa. Temos, mais uma vez, uma situação-limite: Vassilii, o senhor, morre aquecendo com seu corpo Nikita, o servo: “Compreende que é a morte e não se sente desolado. Lembra-se de Nikita, que está debaixo dele, aquecido e vivo! Parece-lhe que ele, Vassilii Andréitch, é Nikita, e que Nikita é ele, e que sua própria vida não está com ele e sim Nikita… E lembra-se do seu dinheiro, do seu armazém, da sua casa, das vendas e compras…É  incompreensível como aquele homem que se chama Vassilii dava tanta importância a tais bagatelas”.

Onde está o Amor,Deus está também destoa na seleção. É uma historinha curta e edificante sobre um sapateiro que espera a visita de Cristo (anunciada num sonho) e que ajuda várias pessoas ao longo de uma jornada de trabalho, descobrindo, no fim, que todas elas eram avatares de Cristo. Ao invés dessa baboseira evangélica, que representa o lado pior de uma obra monumental, por que não colocaram Hadji Murat ou A cédula falsa, que são equivalentes em extensão e qualidade às outras quatro? Ou então, se havia necessidade de algo mais curto, contos mais expressivos como, por exemplo, Três mortes ou Kolstomer?

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de novembro de 2000)

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23/01/2011

A ESCOLA DA POSSIBILIDADE

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Já afirmei que Tolstói é um escritor perigoso de se ler, pois parece demarcar o limite do que se pode dizer com palavras. Por isso, a sensação (exagerada, é claro) de que qualquer outra leitura fica sem graça, empalidece, diante da obra desse que talvez seja o autor supremo. Um dos exemplos cabais dessa afirmação é A morte de Ivan Ilitch, que a 34 lançou recentemente, o que se mostra bem conveniente no momento em que a Record reedita o importantíssimo A negação da morte, de Ernest Becker.

É quase chocante ver a ausência da novela de Tolstoi num ensaio tão abrangente sobre o terror da morte que embasa a nossa existência. Aproveitando o ensejo, o único reparo grave que pode ser feito a um livro admirável é a mediocridade das referências literárias ou filosóficas, revelada por citações de segunda mão ou observações empobrecedoras.

Dentro da perspectiva de Becker (de que até o caráter é uma construção mentirosa destinada a fazer esquecer um terror que poderia nos enlouquecer), o pai da psicanálise é o grande pensador dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855). Este opunha possibilidade (ou seja, um universo basicamente apavorante e esmagador) e necessidade (o mundo que construímos à nossa volta, mentiroso e trivial). A vida “normal” seria o filistinismo, a acomodação. Becker: “Kierkegaard teve um vislumbre da liberdade para o homem. Não tinha uma idéia fácil do que a ‘saúde’ é. Mas sabia o que ela não era: não era um ajustamento norma. Ser um indivíduo normal é, para Kierkegaard, ser doente. A saúde mental é algo muito além do homem, algo a ser atingido e pelo qual se deve lutar, algo que leva o homem para além de si mesmo.”

O homem é o animal paradoxal, consciente de si mesmo, ridiculamente emparedado na condição de criatura mesmo possuindo uma vida simbólica: “Este é o horror: ter surgido do nada, ter um nome, consciência de si mesmo, profundos sentimentos íntimos e apesar de tudo isso, morrer. Parece uma mistificação. Que tipo de divindade iria criar um alimento para vermes tão complexo e caprichoso?”

Esse “impasse” é o elemento crucial para que se entenda que há uma “escola da angústia”, na qual o currículo é a desaprendizagem da repressão, de tudo aquilo que ensinamos a nós mesmos a negar para podermos viver na necessidade sem os perigos da possibilidade. Esse reaprendizado nos salvaria também dos distúrbios que resultam de um desajustamento a essa máscara social (esquizofrenia, depressão, psicose).

Educação, nesse caso, significa enfrentar nossa impotência natural e a finitude. É a salvação pelo desespero, o morrer para renascer, a transcendência, enfim (e, no caso de Kierkegaard & Becker, há o salto para a fé, a ligação entre esse profundo desmascaramento da psicologia da humanidade com a religião).

E é na escola da angústia que Ivan Ilitch acaba matriculado, graças a uma doença que se desenvolve misteriosamente e que o segrega da sociedade. Ele, que sempre procurara viver comme il faut, ou seja, dentro da conveniência e decência, descobre a mais terrível solidão: a consciência de que morrer também acontece com a gente, que não adianta nenhuma racionalização ou sentimentalismo. Mas ao se deparar com a verdade, descobre que a morte, ao fim e ao cabo, era a vida que ele vivia.

A obra-prima de Tolstói não consola, não aplaca nenhum terror ou angústia. É uma lição concisa do máximo que a literatura pode fazer por nós: confrontar-nos com nossa mortalidade e abrir nossos olhos. Ou seja, tirar-nos da necessidade e nos jogar no meio da possibilidade.

(resenha publicada em três de fevereiro de 2007)

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