MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

08/01/2015

O LIVRO DE HENRIQUE: um grande romance de Heinrich Mann (1871-1950)

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“Ele avança imperceptivelmente. Tudo lhe serve, seus esforços e os dos outros que o querem expulsar ou matar. Certo dia perceberão que ele é famoso, e marcado pela sorte. Mas sua verdadeira sorte é sua determinação natural. Ele sabe o que quer, por isso distingue-se dos indecisos. Especialmente, ele sabe o que é bom, e o que a consciência dos seus iguais considera certo. Isso lhe dá, claramente, uma posição singular. Nenhum daqueles que fazem seu jogo nesse ambiente denso está tão seguro das leis morais quanto ele. Não se deve buscar em outra parte a origem de sua fama, que jamais empalidecerá…”

(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 14 de dezembro de 1993)

Thomas Mann é o maior escritor do século. Seu irmão Heinrich, embora mais conhecido por causa de O anjo azul (Der Blaue Engel, 1930), a clássica adaptação de Josef von Sternberg de seu Professor Unrat (1905), também era grande, como prova A juventude do rei Henrique IV (“Die Jugend des Königs Henri Quatre”, 1935 — que comento em versão de Lya Luft). O lançamento da Editora Ensaio certamente é uma das traduções mais importantes deste ano.

Henrique foi um dos protagonistas da guerra religiosa que dividiu e empobreceu a França nos séculos XVI e XVII, envolvendo os grandes clãs nobres da Europa. Morta Jeanne, sua mãe, fanática huguenote (como eram chamados os protestantes franceses), ele é atraído para a Corte parisiense pela rainha-mãe, Catarina de Médicis (que envenenou Jeanne), com cuja filha — Margarida de Valois — se casa. Dias depois ocorre a famosa Noite de de São Bartolomeu, na qual os protestantes são massacrados. Henrique é mantido prisioneiro na Corte. Os filhos de Catarina vão se sucedendo no trono, e o reinado de Henrique III transforma o Louvre num palácio gay, com orgias e disputas de favoritos…

A teia de acontecimentos é contada com vivacidade ímpar, com discretas participações de Nostradamus e de ninguém menos do que Montaigne, que se torna amigo do futuro rei e influencia seu modo de pensar, baseado na tolerância e no conhecimento empírico das motivações humanas.

Tal resumo asséptico e praticamente insípido não dá conta do romance riquíssimo que é Henrique IV. Heinrich Mann surpreende um momento histórico em que as massas eram manipuladas via fanatismo religioso, como acontece em épocas de insegurança e miséria (a nossa, por exemplo). Por detrás dessas disputas intolerantes há sempre o espectro do poderio econômico e político (as outras potências europeias, Espanha e Inglaterra, fomentam a maldade de Catarina porque lhes é útil e conveniente). Cada seção do livro se encerra com uma moral dos acontecimentos e da evolução pessoal de Henrique, a quem conhecemos desde a infância. Sua maturidade e morte são narradas em outro volume, publicado em 1938.[1]

Sem o impacto que causou nos anos 1930, ainda assim é enorme a impressão que causa no leitor de hoje (malgrado o espinhoso e desajeitado texto em português, que parece aspirar a que concordemos com a opinião de Nigel Hamilton de se tratar de um empreendimento linguístico intraduzível), pela irreverência paródica de certos trechos, mas em especial pelo seu lado bem-humorado, cheio de vida. Elíptico, Mann realiza um fabuloso tour-de-force com a narração em terceira pessoa, que desliza para a própria fala ou pensamento dos personagens, quer individualizados, como Henrique ou Margarida, por exemplo, quer em momentos coletivos (como o pensamento do povo em momentos culminantes da narrativa: as núpcias, o massacre).

Um empreendimento cada vez mais difícil, só tentado vez em quando por alguém da estatura de uma Susan Sontag (em seu O amante do vulcão, outra grande tradução de 1993): o casamento entre o prazer de contar fatos passados e o prazer de ser significativo. Um raro prazer.

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TRECHO SELECIONADO

Henrique virou-se bruscamente. Não ouvira nada, mas entrementes Catarina de Médici entrara bamboleando, e fora até o centro do quarto. Ele reconheceu apenas seu contorno, pois estava ofuscado pela luz, mas ela avistara o rapaz e o examinava. As mãos dela estariam escondidas nas pregas do vestido? Vestia preto, e começou a falar com ele, na sua voz gasta.  “Mas ela está viva!” pensou o amargurado filho da morta. Com ódio ouvia-a protestar sua grande dor pela perda de sua boa amiga Jeanne, e que estava feliz por finalmente tê-lo ali consigo. Ele acreditou, mas decidiu: sua chegada não seria um bem para ela. Seus olhos tinham-se acostumado à claridade mais débil. Realmente, ela ocultava as mãos! Então ainda meteu a mão de Deus na sua fala. O filha da morta segurava a língua com os dentes, do contrário teria exigido: madame, deixe-me ver suas mãos! Mas ela fez isso! Tirou de seu vestido as mãozinhas gordas que ele queria ver, e depositou-as sobre a mesa diante da qual se sentou.

    Henrique deu uns passos irados, rápidos e impensados. A velha rainha tinha à sua frente a imensa mesa larga, atrás dela quatro fortes suíços com longas lanças. Era fácil ficar calma, a voz bonachona:

__ Como tenho pena de você, meu rapaz! Dezoito anos, não é, e já duplamente órfão! Pois encontrará em mim sua segunda mãe, que orientará seus passos, os passos dos jovens muitas vezes são apressados demais. Eu sei que vai me agradecer, meu jovem, sua natureza é viva e natural. Nós dois merecemos nos darmos bem.

     Era cruel. Sobre a mesa adivinhava-se um invisível copo de veneno, os dedinhos da velha esgueirando-se até ele, enquanto o abismo falava através dela. Era um feitiço, era preciso rompê-lo! Certas palavras e sinais teriam talvez feito aquele rosto cor de chumbo com as bochechas caídas rebentar e desmanchar-se no ar. Mas Henrique naquele instante tenso fez coisa diferente: descobriu que a assassina de sua mãe era digna de comiseração- como no fundo do poço do Louvre, o resto da torre que sobrava sobre os séculos soterrados. Mas em breve será removida. Talvez afinal ela faça a mesma coisa. Ela ou sua linhagem construíram a fachada bonita do palácio ao sol do meio-dia. E ela pessoalmente ainda está aí, como o passado louco e mau. O que é ruim mas muito velho acaba sendo ridículo, ainda que deseje matar. Apesar de seus tardios crimes, desperta misericórdia pela sua impotência, e decadência!

     O jovem Henrique exclamou em voz clara e confiante:

__ Como são verdadeiras suas palavras, madame! Um dia lhe agradecerei, certamente.  Que meus atos sejam sempre da mesma naturalidade que os seus! Farei esforços para agradar a uma tão grande senhora…”

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NOTA

[1] “Die Vollendung des Königs Henri Quatre”, ainda inédito em português.

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