(publicado originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 02 de setembro de 2014)
“E o que sei são os dons primordiais/que não explicam, e é amor” (versos de Estudo Corporal).
Como verificamos ao nosso redor, há quem tenha um raciocínio lógico entranhado, e é natural que isso acabe por moldar toda uma concepção da realidade. Também há diversos poetas no mundo (nem que seja por autoproclamação), parte deles com considerável talento. Mesmo entre os verdadeiros poetas, entretanto, André Ricardo Aguiar, 45 anos, revela-se uma raridade: poucas vezes vi inteligência lírica tão notável.
Não, não se trata de aplicar a racionalidade ao poema ou equacionar engenho-engenharia no exercício do gênero. Já tivemos nosso espécime quase quimérico nesse sentido, João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Trata-se, no tocante ao escritor paraibano, de um lírico no mais intenso sentido da palavra, ainda que ele (como tantos na pós-modernidade) se valha da ironia, dos jogos com os significantes da palavra; ainda que tenha consciência aguda e da linguagem e de suas crises. Nos momentos mais plenos (e eles pululam) dos 73 poemas de A Idade das Chuvas, fica-se assombrado porque, com os meios mais comuns e corriqueiros do fazer poético, ao alcance de qualquer praticante fortuito ou dedicado — o ritmo e as figuras de linguagens básicas (a metáfora, o símile, a metonímia)— Aguiar consegue extrair imagens de cabal, quase aterradora, precisão, como um cirurgião operando na página, com um mínimo de recursos, mas resgatando relances e percepções moribundos para a vida.
Por falar em página, não há praticamente uma, nesse inspirado e invulgar A Idade das Chuvas, em que não encontremos o momento “vivo” que descortina a exatidão quase inacreditável do lirismo do seu autor. A pólvora do instante: afinal, “o lume do poema” está aí para ruminar a escuridão; uma bicicleta circula pelas ruas “até que uma esquina/engatilha o ciclista/ e dispara”.
O lume do poema engatilha objetos, seres e palavras disparando significados que, por serem “líricos”, não são menos matematicamente (pelo menos, numa matemática insólita) definidos e definitivos: “este aquário tem um quê/de sonâmbulo noite adentro:/ os peixes varam as horas/ que não se pescam no tempo”. Se no dicionário, a palavra “entra nos teus brios/de represa”, ao ser manejada pelo exímio Dr. Aguiar, esse cirurgião de uma especialidade em que a perícia e a delicadeza têm que operar com os instrumentos do assombro tanto quanto com os desalinhos das contingências, vira, como o gato (o animal exato-fugidio eleito pelo nosso poeta, e como podia ser diferente?), “uma biblioteca esquiva de sinais”: “De relance/qualquer realidade/é um folhear/inquietante”. Ou então: “dá para vestir/um poema/se uma imagem/souber o caminho/mais curto/entre a coisa em si/e o dizer espantado”.
Já me foi dito que resenhar livro de poema, costurando o texto com citações de versos esparsos, tal como estou fazendo, é um modo fácil e cômodo (quase como quem diz: preguiçoso), pouco revelador. Verdade seja dita, esta minha estratégia, neste caso específico, está mesmo fadada à inglória derrota, independentemente da validade ou não da reprimenda. Pois, embora seja também um supremo frasista, capaz de millôrmente nos dar todo o encanto da manipulação do senso comum (não constam de A Idade das Chuvas, mas servem de exemplo: “Não tenho medo de gastar meu latim. Já não é uma língua morta?”; “Sempre que termino de ler um conto de fadas, ouço um farfalhar e um baque. Caiu mais um fruto de minha imaginação”), é até pecado extrair versos lapidares, pois eles são o que há de mais vistoso nessa disciplina da inteligência poética extrema, de forma que é o maior prazer é ver toda a preparação, em seu ruminar de escuridão, para o ponto de lume: “reter da palavra/ (mel embebido) /o sonho do/engenho://refinar-se”.
Uma poesia que espacializa seres e afetos: “As coisas crescem, quintais/e respiram verdes ou maduras”. A “voz varanda” da amada, “quase um pátio de intenções”. Até a memória se objetifica em espaço, no caminho mesmo do seu processo: “nasce/como um casulo que nos observa/ a pele da memória”. Pois é assim que somos, como ele também o é, uma “fábula de carne”, espaço-ser (ou não-ser, ou um interstício entre ambos) que se debate na transitoriedade: “vivo com o tempo/como quem inaugura/ uma sombra: // essa que me acompanha/até a morte”.
Não saberia dizer a quantidade de seres e coisas que são redefinidos pelo justo cálculo verbal de Aguiar: fora os gatos (merecedores de passagens magníficas), caracóis, peixes, pirilampos, pássaros, o cupim; não menos, os gestos do amor e os jogos de sensualidade (mesmo que a cama seja “uma ilusão de náutica”): “esse gosto de amor que me repete/dentro de ti, que te penetra”.
“Armazenei algo de mim/fora de mim”. Sim, o lirismo exato a nível quântico de A Idade das Chuvas mostra que tudo à nossa volta ainda está à espera de ser recodificado pelo poeta legítimo: “…o mundo lá fora/sempre às vesperas/de ser novamente lido”.
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ANEXO
DAS IMPOSSIBILIDADES DARWINIANAS
Tubarão-martelo caçando macaco-prego.
(…)
Vovó dizia: cuidado com o mormaço. Eu não sabia que esse era o nome quando o chão ardia em febre.
(…)
a lâmpada envelhece
– quem sofre da vista
é a gente
(…)
PROMETEU
essa coisa louca
de tentar roubar o fogo
não é pro teu fígado
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