(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA em 17 de julho de 2018)
“Estou parado na plataforma do bonde e completamente inseguro no que diz respeito à minha posição neste mundo, nesta cidade, em minha família. Nem mesmo de passagem eu seria capaz de indicar quais as exigências que eu poderia fazer com algum direito em uma direção qualquer. Não consigo sequer defender o fato de estar parado nesta plataforma, me segurar nesta alça, me deixar levar por este vagão, o fato de as pessoas desviarem dele ou caminharem em silêncio ou descansarem diante das vitrines… Ninguém o exige de mim, ademais, isso pouco importa”, (trecho de “O Passageiro”).
Sou apaixonado por Kafka. De quando em quando mergulho em sua obra. A portentosa antologia “BLUMFELD, UM SOLTEIRÃO DE MAIS IDADE E OUTRAS HISTÓRIAS”, a mais ampla, salvo engano, já lançada no Brasil, traduzida por Marcelo Backes, reavivou essa paixão.
Um prazer estranho. O mais original dos escritores joga o cotidiano e a razão lógica no absurdo, naturalizando o insólito, desmascarando as imposturas que chamamos leis: “ ‘Bom dia… O céu está pálido… Eu estou vendo muitos panos nas cabeças… Sim, a guerra. ’ Eu salto para dentro do lugar e, depois de levantar temerosamente várias vezes a mão com o dedo dobrado, bato, enfim, na janelinha do zelador. ‘Caro senhor’, digo amistosamente, ‘um homem morto foi trazido até aqui. O senhor pode mostra-lo a mim? Eu lhe imploro. ’ E, quando ele sacode a cabeça como se estivesse indeciso, eu digo com firmeza: ‘Caro senhor. Sou da polícia secreta. Mostre-me o morto logo de uma vez. ’ ‘Um morto? ’, ele pergunta então, e se mostra quase ofendido. ‘Não, não temos nenhum morto aqui. Este é um prédio decente. ’ Eu o saúdo e vou embora. Mas então, quando acabo de atravessar uma grande praça, esqueço de tudo. A dificuldade dessa empresa me deixa confuso, e eu penso comigo muitas vezes: ‘Caso se construam praças tão grandes assim apenas por petulância, por que não se constrói também um parapeito de pedra que poderia atravessar a praça? Hoje o vento sudoeste está soprando. O ar na praça está excitado. A ponta da torre da prefeitura descreve pequenos círculos. Por que não se fica em silêncio no meio do empurra-empurra? Todas as vidraças das janelas são barulhentas, e os postes da iluminação pública se dobram como bambus. O manto da Virgem Maria se enfuna sobre o pedestal, e o vento tempestuoso lhe dá arrancos. Por acaso ninguém vê isso? Os senhores e senhoras que deveriam caminhar sobre as pedras pairam. Quando o vento volta a respirar, eles ficam parados, dizem algumas palavras uns aos outros e fazem reverências, se saudando, mas quando o vendo volta a se mostrar tempestuoso, eles não conseguem resistir a ele, e todos erguem seus pés ao mesmo tempo. Embora tenham de segurar seus chapéus com firmeza, seus olhos estão divertidos como se o tempo estivesse agradável. Só eu é que sinto medo’”, (Trecho de “Conversa com um Devoto”).
Presente na coletânea, o texto mais perturbador que já li. Eis um trecho de “O Abutre”: “O abutre ficou ouvindo em silêncio durante a conversa, deixando seu olhar passear entre mim e o homem. Agora eu via que ele compreendera tudo, levantou voo, recuou bastante para conseguir impulso suficiente e em seguida golpeou com o bico como um lançador de dardos através de minha boca bem fundo dentro de mim. Caindo para trás, senti, liberto, como ele se afogava de modo irremediável no meu sangue, que enchia todas as profundezas e inundava todas as margens”. (Continua na próxima semana).
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