(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 08 de maio de 2018)
Há 40 anos perdíamos um de nossos maiores escritores, Osman Lins. Morte precoce, mas pouco antes ele publicara sua obra-prima, “A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA”.
Num país bloqueado (estamos nos anos “barra pesada” da ditadura militar), o narrador refugia-se num diário no qual procura analisar o romance inédito “A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA”, deixado pela sua falecida amante, Julia Enone, a respeito de uma “irmã em destino” da Macabéa de “A hora da Estrela” (1977), de Clarice Lispector, também nordestina e miserável, chamada Maria de França, a qual passa anos da sua vida pleiteando um benefício do antigo INPS, em vão, não conseguindo romper a temível malha burocrática, mesmo porque não tem instrução ou equilíbrio psicológico (passa por períodos de loucura e internação): “Fazem-lhe, ainda na Riachuelo, nova sugestão: recorrer à Assistência Judiciária, antes obtendo atestado de pobreza. Ela ouve o conselho, desce as escadas, as escadas sujas, repetindo-o. Ao chegar embaixo, já se esqueceu de tudo. ”
Tanto quanto o jogo metalinguístico fascinante, “A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA” impressiona por sua dimensão política, apesar da sombria constatação do seu protagonista: “Assim, coincide melhor com as linhas gerais do romance outra visão –mais chã—do isolamento do escritor, não voltada para ele, e sim para a sociedade, que o recusa. ”
Inseto cavando sem alarme, perfurando a terra, escavando na obra de Julia Enone, sua orquídea antieuclidiana para desatar o labirinto (mito arquitetônico que foi um dos vários legados da civilização grega), o narrador comenta e transcreve notícias de jornal, nunca se referindo diretamente ao regime militar. Nenhuma obra dos anos 70, entretanto, captou tão poderosamente o clima opressivo da época e a degradação da informação enquanto valor na nossa sociedade, pois a maioria dos ficcionistas optou pela simplificação do “romance-reportagem” (“Infância dos Mortos”, “O crime antes da Festa”, “Lúcio Flávio”, “Acusado de Homicídio”, alguém lembra desses títulos?), onde, na tentativa de driblar a censura e oferecer um “retrato” da realidade nacional, o supostamente factual e referencial sufocava a narração e acabava-se reconfortando o leitor, mais do que o levando a uma atitude crítica, ao perseguir uma impressão de veracidade absoluta.
Flora Süssekind radiografou muito bem essa perspectiva naturalista e redutora no seu memorável estudo “Tal Brasil, qual romance? ” Ora, ao eleger a distorção dos fatos, até do espaço narrativo (Julia Enone funde Recife e Olinda como se fossem uma cidade só), o narrador de “A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA” dinamita essa mentira referencial, do que é “baseado na vida real”, e firma com o leitor um pacto ficcional, em que se finge a dor que deveras se sente. Ao descascar camadas e camadas de artifícios narrativos, ele nos transmite muito mais realidade (transbordante, simbólica, delirante que seja) do que qualquer medíocre relato de casos da época. É o triunfo do romance, mundo imerso no mundo, e, em última instância, da verdadeira literatura, sobre a reportagem que se disfarça (mal) de ficção.
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