(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 20 de março de 2018)
Numa entrevista que concedi a Herasmo Braga (em 2013), ele me fez a seguinte pergunta: “HB – Quais autores são imprescindíveis para um leitor qualificado em sua opinião?
AM – Mas o que importa mesmo é não ler ‘de orelha’, nem de ‘segunda mão’. Mesmo que através de traduções, é necessário conhecer a grande tradição de autores que foram ‘inventando o humano’ além do Shakespeare à Bloom. Outro dia li uma declaração de uma autora, da qual não direi o nome, que admiro. Ela disse que não tinha muito tempo de ler os clássicos porque tinha de ficar atenta à ‘cena atual’. Acho essa declaração não só uma bobagem imensa como também perigosa: o que é bom na literatura é sempre ‘cena atual’. Tem coisas de dois anos atrás e que já estão prontas pro disque-entulho. Enquanto Jane Austen é sempre ‘da hora’”.
Jane Austen é tão da hora que a nova novela da Globo, “Orgulho e Paixão” é baseada em “ORGULHO E PRECONCEITO” (com pitadas de “Emma”), seu mais famoso romance. Elizabeth Bennet é uma das personagens mais carismáticas da história da ficção, como digna sucessora que é daquelas heroínas inteligentes, mordazes e apaixonadas de Shakespeare. Como se sabe, ela pertence a uma família que tem muitas filhas (cinco), todas sem dote e cuja propriedade, com a morte do pai, deverá passar para um distante (e insuportável) parente masculino. Este, em certo ponto da narrativa, resolve pedir a mão de Elizabeth, mas ela está encantada com o forasteiro Wickham, desafeto de Mr. Darcy, melhor amigo de outro estranho ao lugar onde mora a família Bennet, Mr. Bingley, que se apaixona por Jane, irmã mais velha de Elizabeth (romance desaprovado pelo orgulhoso e preconceituoso Darcy). Aliás, Mr. Collins, o absurdo pretendente, toca na questão central da vida de mulheres como as Bennet: “A senhora deve levar em conta que apesar dos seus múltiplos atrativos, nada garante que outra proposta de casamento lhe seja feita algum dia. O seu dote infelizmente é tão pequeno que em todas as situações pesará contra a sua beleza e as suas louváveis qualificações”.
Com implacável precisão e lucidez, ficamos conhecendo aquela sociedade em que cada um é prisioneiro de sua condição social e sexual, em que o mais rasteiro cálculo materialista e comodista dita as regras, como mostra a melhor amiga de Elizabeth, Charlotte, ao aceitar Mr. Collins como marido: “Sem pensar muito nem nos homens nem no matrimônio, o casamento sempre fora o seu objetivo; era a única condição digna para uma moça bem-educada e de pouca fortuna e por mais incertas que fossem as perspectivas de trazer felicidade, ainda era a forma mais agradável de se preservar da necessidade”.
Mesmo assim, provavelmente os leitores apaixonados por Jane Austen, como eu, nunca cansarão de reler “ORGULHO E PRECONCEITO” é por causa mesmo da mudança de sentimentos de Elizabeth com relação a Mr. Darcy, depois que reconhece o caráter dúbio e escorregadio de Wickham (que seduzirá a irmã dela), percorrendo lentamente (em termos psicológicos, não narrativos) o arco que vai da antipatia ao amor. E isso através de diálogos ainda insuperados (a cena da declaração de amor dele é particularmente antológica).
Outro prazer adicional é o de retomar contato com um dos pais mais deliciosamente irônicos já criados, Mr. Bennet, sempre roubando a cena quando aparece e que, entretanto, não escapa à prodigiosa visão crítica da genial escritora inglesa: “Elizabeth, no entanto, nunca fora cega à impropriedade do comportamento do pai como marido. Aquilo sempre a fizera sofrer, mas, respeitando as suas qualidades e grata pelo seu tratamento afetuoso, esforçava-se por esquecer o que não podia fingir não ver e bania dos seus pensamentos aquela contínua quebra das obrigações e do decoro conjugal, expondo a esposa ao desprezo das próprias filhas”. Todavia, como resistir a um personagem que, quando sua tola esposa diz: “Você se diverte em me aborrecer, não tem compaixão pelos meus pobres nervos”, responde: “Está enganada, minha cara. Tenho um alto respeito pelos seus nervos. São meus velhos amigos. Ouço-a mencioná-los com consideração há pelo menos vinte anos”.
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