MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

13/02/2018

O “VOCABULÁRIO INTIMISTA” DE TIAGO GERMANO


 

 

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 13 de fevereiro de 2018)

“Houve um tempo em que as pessoas iam a restaurantes pela simples razão de ter fome. Hoje se vai a restaurantes por qualquer outro motivo, todos comprovadamente legítimos, menos esse. Eu mesmo já estive em alguns com o mesmo apetite de um doente de hospital. Não pretendia comer nada, até que me caiu em mãos o cardápio e logo descobri o recôndito sentido da sua existência: longe de lhe dar liberdade de opção, o cardápio lhe impõe uma escolha”. É um trecho de “Cardápios”, uma das maravilhosas crônicas de “DEMÔNIOS DOMÉSTICOS”. Na linha dos cronópios de Julio Cortázar, dos textos curtos de Robert Walser e da insustentável leveza de boa parte da obra de Italo Calvino, Tiago Germano faz sutis rasgos no tecido da realidade, desde estabilizando o senso comum. Ele mesmo o diz em “A coleção de palavras”: “E como um escritor coleciona palavras? Respondo exibindo uma parte do acervo que venho coletando desde a infância, quando as palavras que ouvia pareciam estar divididas entre aquelas que expressavam com a exatidão a ideia que pretendiam expressar e aquelas cujo sentido parecia não bater, como se tivessem sido inventadas só para não ficarem anônimas… ‘Poverty’ é uma palavra nobre, tanto quanto ‘andrajo’, que não pode ser listada no Aurélio como sinônimo de ‘trapo, farrapo’, porque absolutamente não se associa à miséria no meu vocabulário intuitivo”.

“DEMÔNIOS DOMÉSTICOS” é dividido em blocos: “A infância, seus modos e seus medos”, “O amor, seus gestos e seus gostos”, “A rua, suas bocas e seus becos” e “O oficio, seus mitos e seus mundos”. Do primeiro destaco “Malamen e o Extrato”: “A primeira aparição do Extrato se deu numa noite de quarta-feira, quando faltou dinheiro em casa e minha mãe perguntou a meu pai: ‘Você viu o Extrato? ’”. Do segundo bloco “Comendo paçoca”: “De repente, daquelas duas bochechas cheias de amendoim, vi brotar o único sorriso que restava de inédito no mundo”. Do terceiro bloco “Slogans de funerárias”: “O dilema de uma propaganda de caixão, entretanto, é bem mais profundo, está na essência do ser humano, no que há de mais inerente: a certeza de uma morte duvidosa. Como promover um produto que o cidadão não vai usar quando vivo? ”. Do quarto bloco “A crônica que jamais escreverei”: “Ela não está em lugar algum. E não estando em lugar algum, não sei ao certo onde procurá-la. E não sabendo onde procurá-la, procuro-a em todos os lugares, e às vezes, quando a noite se faz maior que o silêncio, eis que me deparo com suas palavras, mas ao me deparar alguma coisa dela me escapa, e tanto mais me escapa quanto mais me deparo, e é inútil tentar retê-la, porque dela não me é dado saber nada, nada além do fato de que jamais a escreverei”.

Mas a verdade é que não há nenhuma crônica que não tenha uma passagem memorável. Um dos melhores livros dos últimos anos: “No carro, quando era minha família que voltava da praia, fingia muitas vezes dormir para ouvir a conversa dos meus pais. Falavam de Claudia. Claudinha. ‘Morte estúpida’, diziam. E eu tentando imaginar como se podia morrer de maneira inteligente”.

 

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