(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos em 06 de junho de 2017)
Assim como Clarice Lispector, que no ano de sua morte publicou um dos seus mais relevantes romances, João Guimarães Rosa, ao morrer em 1967, deixou uma obra-prima, TUTAMEIA. Colaboravam para a sensação de estranheza despertada por TUTAMEIA: o título peculiar (um vocábulo com o significado de “coisa de pouco valor”), os quatro prefácios com títulos abusadamente esdrúxulos (“Hipotrélico”; Nós, os temulentos, por exemplo); e, sem contar os títulos de várias estórias (“Antiperipléia”; “Droenha”; “Rebimba”, “O Bom”; “Tapiiraiauara”), os textos herméticos e quase impenetráveis.
Hoje percebe-se melhor ter ele tão somente condensado ao extremo as características que se “espalhavam” nos amplos espaços épicos de “Grande Sertão: Veredas & Corpo de Baile”, fazendo de cada texto de TUTAMEIA a coisa mais similar à poesia que já se criou na ficção: impossível mexer numa palavra sequer. Além disso, investindo nas “anedotas” do sertão mineiro, ele tenta atingir uma realidade “mais verdadeira”. Para isso, é importante “contar” mais do que “viver”.
Quanto à acusação de hermetismo, mesmo se levando em conta a linguagem peculiaríssima de Rosa, nada mais delicioso do que as “anedotas” (tenho minhas dúvidas e ressalvas quanto aos prefácios) da coletânea. Nem por isso, nos “desenredos” tramados pelo autor de Sagarana, deixamos de entrever as linhas tortas pelas quais lemos a vida.
Por exemplo, temos o guia de cego que ajuda o patrão a se envolver num caso adúltero e que termina suspeito da morte dele, para a qual, como em “Rashomon”, há várias versões (“Antiperipléia”). Esse guia pode ser o anão que aparece na última estória do livro, “Zingaresca” (sim, as histórias são dispostas em ordem alfabética), aquele que “vigia o que não há”. Como Riobaldo, ele conta sua história para um interlocutor citadino.
Em Lá, nas campinas, Drijimiro não consegue lembrar o local da sua infância, só restou na memória as palavras que dão título à estória, “o que guardado sempre sem saber lhe ocupara o peito, rebentado: luz, o campo, pássaros, a casa entre bastas folhagens, amarelo o quintal da voçoroca, com miriquilhos borbulhando nos barrancos.
Esses são alguns pontos altos do livro. E sempre, em qualquer uma delas, as frases genialmente únicas: “as coisas começam deveras é por detrás, do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas”; “calava-se a ternura, infinito monossílabo”; “memória, que é o que sem arrumo há, das muitas partes da alma”; “a gente tem de existir—por corpo real, continuado—condenado”; “o mundo se repete mal é porque há um imperceptível avanço”; “de onde vem o medo? Ou este terráqueo mundo é de trevas, o que resta do sol tentando iludir-nos do contrário”… E assim, Guimarães Rosa iluminou a nossa literatura como a borboleta que (ele mesmo diz, raiando pela indescrição) “sai do bolso da paisagem”.
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Comentário por anisioluiz2008 — 07/06/2017 @ 5:30 |