(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de março de 2017)
Na semana passada, comentei Ao Farol, de Virginia Woolf, por conta dos 90 anos de sua publicação original. Outro clássico do modernismo, também surgido em 1927, ainda mais influente (marcou profundamente a época da contracultura, nos anos 60), é O LOBO DA ESTEPE, a mais conhecida obra do grande Herman Hesse.
Harry Haller, o protagonista, está chegando aos 50 anos obcecado pela ideia de degolar-se com uma navalha, para fugir da angustiante divisão do seu ser em duas personalidades: uma burguesa, que deseja calor, companhia (ele, um errante, sempre se hospeda em casas que lembram sua infância); outra, que ele denomina de “lobo da estepe”, misantropa e desadaptada, destinada à solidão e orgulhosa dessa condição.
Doris Lessing, a respeito de O Carnê Dourado (1962), romance que tem muitas afinidades com O LOBO DA ESTEPE, inclusive por causa da estrutura ousada e complexa, afirmou que às vezes pirar é uma forma de autocura, uma maneira de nosso eu interior eliminar falsas dicotomias e divisões. É o que acontece com Harry Haller: ele é convidado a participar de um Teatro Mágico, “só para raros e loucos”.
Esse teatro é sua própria personalidade. Hesse investe contra a pretensa unidade do eu. Na verdade, somos um feixe de eus: “Não há nenhum eu, nem mesmo o mais simples, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas”.
E Harry, ao longo do romance, irá experimentar algumas das suas outras almas, numa saudável esquizofrenia, por assim dizer, tendo como guias Hermione e Pablo. Hermione é seu duplo feminino, a cortesã que o obriga imperativamente a usufruir da vida, a dançar, a praticar intensamente o sexo, a se dissolver “na festa”.
Pablo, por sua vez, é o belo músico aparentemente burro e tolo, mas que se revela o guia para os mais recônditos cenários do Teatro Mágico, aqueles onde Harry terá que se deparar com suas almas mais sombrias. Pois uma das “lições” da história de Harry Haller é que se precisa do humor, acima de tudo; para se encarar a vida a sério é necessário não se levar a sério. Como o Mozart do Teatro Mágico diz a Haller: “Aprenda a levar a sério o que merece ser levado a sério, e a rir de tudo o mais!”.
Contudo, o melhor de O LOBO DA ESTEPE é que não há soluções ou verdades definitivas, nem o personagem acaba bem, apaziguado, conciliado. Esse livro, na terceira leitura, como na primeira (e provavelmente numa quinta ou décima) é um duro e perturbador reaprendizado da sensibilidade e da percepção do mundo. E sempre restará ao leitor a esperança de, na próxima leitura, ter aprendido a jogar melhor o jogo da existência, desejo formulado por Harry nas frases finais.
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