(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de setembro de 2016)
Há cem anos, no coração do Modernismo, Virginia Woolf revolucionava, em seus textos curtos (para não dizer, em romances como Senhora Dalloway), a percepção dos objetos, das ruas, das novidades tecnológicas. Seus protagonistas eram “eus” quase evanescentes, os quais envolvidos na introspecção, mesmo assim nos revelavam o mundo que as cercava.
Por incrível que pareça, guardadas as devidas proporções, é o que acontece nos contos de ROTEIROS PARA UMA VIDA CURTA (Editora Reformatório). Os personagens de Cristina Judar esbarram o tempo todo com as pessoas que passam pelas ruas, pelas noitadas, por objetos e fenômenos da natureza, pelos ritos cotidianos (“essa coisa de portas que abrem e fecham continuamente. que, por sua vez, dão para as ruas e projetam na sala a presença maciça do trânsito e traços de conversa vindos do cômodo ao lado até aqui, onde estou sentada, nesta casa – com mesa, cadeira, pés juntos em sapatos com fivelas, meus olhos contraídos pela luz”, lemos em Fotofobia), aparentemente alheias ao seu redor, mas nos trazendo uma poderosa sensação de realidade. Mesmo aqueles que se isolam do mundo, em seu autismo e alienação, são confrontados com as exigências de existir (“Para a fobia social, cloridrato de venlafaxina; ranitidina para o estômago fraco; para o desânimo, estrasse; gordura para o fêmur em evidência”, lemos em Ótimas em Humanas). Contudo o “eu” parece mais insubstancial, mais líquido (para seguir o pensamento de Bauman), do que os de Virginia Woolf (“Vitorino não se via refletido, confortável ou identificado, apenas paralelo de sua própria imagem em baixíssima definição. dele, não havia vapores condensados, que viriam, possivelmente, do exalar de suas narinas. na insistência, ele não parava de respirar, tomava goles imensos de ar”, lemos em Blue Train).
Insubstancialidade e hiper-realidade, uma alquimia paradoxal, e perigosa também. Todos os textos de ROTEIROS PARA UMA VIDA CURTA têm momentos brilhantes e, em geral, Cristina Judar consegue finais surpreendentes e admiráveis, quase como se fossem as “chaves de ouro” dos sonetos antigos. É preciso dizer, todavia, que às vezes a “literatice” artificiosa prepondera sobre a literatura contundente (dentro da linhagem de Julio Cortázar, aliás, homenageado num dos melhores momentos do livro Certa Diversão).
Mas como não tira o chapéu para a criadora de uma Alice pós-moderna que perambula alucinoriamente pela cidade (“O vento condensado em novelos de lã amarela. Essa era a moldura de mim que ali havia. Foi em um sopro quando caí em mim. Cair em si é um daqueles exercícios difíceis de engolir, embora necessários e suscetíveis aos bueiros destampados da cidade. Então, nesse pedaço de mundo em que tudo é variável e relativo tornaram-se gigantescos os homens das calçadas ao meu redor”), para terminar de forma deliciosamente cotidiana e irônica: “No embalo practpract dos sapatinhos de verniz, chego em casa, mamãe me aguarda. No ar, cheiro de coelho assado. O jantar está servido”?
ROTEIROS PARA UMA VIDA CURTA é mais uma prova de que a nossa prosa de ficção, especialmente a publicada por editoras independentes, atravessa uma grande e estimulante fase.
Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.
Comentário por anisioluiz2008 — 27/09/2016 @ 15:05 |