VÁRIOS ROMANCES NUM SÓ: OS 150 ANOS DE CRIME E CASTIGO
Quem já leu CRIME e CASTIGO jamais consegue esquecer determinadas cenas desse magistral romance de Dostoiévski publicado há 150 anos. Sem contar atmosfera toda, permeada pelo assassinato da velha usurária e de sua irmã, temos por exemplo o momento em que o protagonista Raskólnikov, na primeira visita em que faz para a prostituta Sônia, inclina-se e beija seus pés, dizendo: “Eu não me inclinei diante de ti, eu me inclinei diante de todo o sofrimento humano”.
Algum outro autor que não fosse um Dostoiévski conseguiria partir o coração do leitor com uma cena tão potencialmente ridícula (e, aliás, não faltam elementos “ridículos” em todos os grandes textos do genial autor russo)?
O mesmo Raskólnikov, muito tempo depois, na Sibéria, sofre o impacto da revelação do seu amor por Sônia (a quem tratava tão mal, apesar de ela ser a “representante viva do sofrimento humano”), ao olhar pela janela do hospital da prisão: “Ela estava em pé e parecia esperar algo. Nesse momento alguma coisa cortou o coração de Raskólnikov”. E do leitor também, por mais que lute contra essa emoção quase masoquista.
E o suicídio do inesquecível vilão psicológico que é Svidrigáilov (apaixonado por Dúnia, irmã de Raskólnikov), estourando os miolos e dizendo: “Para a América”?
E as maravilhosas cenas que envolvem Catierina Ivánovna (madrasta de Sônia), a personagem feminina mais marcante de um livro onde não faltam personagens marcantes? A reunião de exéquias do marido dela, a sua loucura pelas ruas de Petersburgo, e a sua morte (ela é tuberculosa) são momentos indescritíveis, que mostram bem a diferença entre ler uma cena inesquecível e comentá-la.
É engraçado haver tanta gente que lê histórias “edificantes”, de “superação” (quando não religiosas), e CRIME e CASTIGO, essa obra-prima da literatura, é o livro mais edificante e religioso já escrito. Todo o processo narrativo consiste em humilhar o orgulho intelectual de Raskólnikov, que o levou a cometer um crime para verificar se pertencia à família dos grandes homens (a quem é “permitido tudo”), até que ele aceite com humildade a sua redenção através do amor cristão de Sônia. É duro de engolir, é piegas, leitor, é isso que você está pensando? Experimente, então, ler impunemente o romance. Todos os julgamentos desse tipo ficam suspensos diante de Dostoiévski.
Teatro, folhetim, drama psicológico e metafísico, parábola de redenção mística, debate de ideias, painel social. É isso CRIME e CASTIGO e a obra desse russo que viveu de 1821 a 1881: é apenas um pouco menos que a Bíblia: “Sim, mas como matei? Aquilo lá é jeito de matar? Por acaso alguém vai matar como eu fui naquele momento? Algum dia eu te conto como eu fui. Por acaso eu matei a velhota? Foi a mim que eu matei, não a velhota! No fim das contas eu matei simultaneamente a mim mesmo, para sempre”.
Muito bom Alfredo, Dostoiévsk é fantástico.
Comentário por Miguel — 12/04/2016 @ 11:53 |