«O garoto está no quarto ouvindo os risos da mãe. Deita na cama e tapa os dois ouvidos com as mãos que ardem. Sente vergonha de tudo. Ainda não sabe qual foi seu erro. Não sabia que não podia desenhar na mão, não sabia que não podia desenhar caveira, não sabia que não podia desenhar pintos. Fica com raiva de todo mundo. Observa os brinquedos na estante branca. Todos estão virados para sua vergonha. Sorriem com suas caras escrotas de brinquedos».
«As crianças brincam na prainha da ilha e apontam para mim. Dão com a mão dizendo tchau. Fazem uma algazarra danada jogando água para cima. Também quero dizer tchau e sorrir como elas e ver que sorrindo eu posso desfazer esse sentimento ruim. Todos eles. Muitos».
«Ele guarda as fotografias dos mortos na sua imensa parede do quarto, bem em frente a sua cama. Gosta de dormir assim. Chama de “meus mortos”. Olhar suas caras azuladas, seus últimos registros. Eram tantas fotos coladas na parede que nem sabia mais quem eram seus pais, que foram os primeiros no painel e agora eram apenas a mesma massa de perdição».
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de dezembro de 2015)
Numa canção que marcou época (Brincar de Viver), Maria Bethânia nos fala da «arte de sorrir/cada vez que o mundo diz não». Um “não” contínuo e acachapante se infiltra, ao longo dos treze contos de O Contrário de B., nos interstícios de todas as relações humanas, corroendo casamentos, vínculos geracionais, laços com bichos de estimação[1], a ligação com a natureza («Procura um abraço na escuridão, uma segurança, um último refúgio. O vento cria um sussurro alongado na fração de tempo de uma respiração profunda. Ela treme acocorada, sentindo no chão as pedras machucarem os pés descalços. O que encontra é a feiura de tudo no mundo», lemos no aflitivo Dente de Cachorro); até mesmo nas noções de caráter e personalidade.[2]
São situações de abuso, opressão, miséria, violência, estupro, culpa, doença, indiferença, e mesmo o que nos é mais íntimo se reveste de repugnante e aversiva estranheza: «O velho lembra de ver a mulher deitada na cama, dormindo com a boca aberta. Não é uma imagem bonita. Lembra de ter achado ela velha. Lembra que foi o último dia que viu sua esposa dormindo. Depois disso a largou e foi aquela confusão toda» (Pater Familias[3]); ou então: «Ela me beija como se beijasse a testa de uma velha e desce do carro animada. Vê-se que muda instantaneamente o semblante: está sorrindo. No carro franzia a testa e olhava pela janela distante, evitando olhar para mim. Eu via apenas seu reflexo na janela de vidro. Era um fantasma ali presente. Parece que minha ausência faz sentido e esse distanciamento toda noite é importante para ela. Sinto isso, que ela gosta cada vez mais de ficar longe de mim» (Nós contra Eles).
E a arte de sorrir? Nesses inóspitos coágulos ficcionais, seja de momentos efêmeros, seja de longas convivências, explorados por Bruno Liberal, ela é exercitada na desfaçatez, no delírio ou no cinismo cafajeste. Como o dos pais sorridentes e odiosos, sob a ótica ressentida dos protagonistas, de dois pontos altos do livro, Reza de Gato Morto (que faz um arco entre o célebre gato preto obsedante de Poe com a obra radical de uma Hilda Hilst — por exemplo, A Obscena Senhora D: «Os vizinhos a chamam de velha dos gatos. Velha doida. Velha do amarelo. Velha da morte[…] exala um cheiro de excremento. As crianças mijam no seu muro por conta disso. Dizem que a velha é porca») e Esse Último Sorriso: «Eu lembro da cara de papai sorrindo no caixão. Com aquele bigodinho safado dele. Aquela cara de eterno piadista»[4].
Outro momento muito forte é Distante, com o quadro da mulher devastada pelo câncer e levando uma surra do marido truculento, entrevisto por mais um filho dilacerado entre o atavismo, a perplexidade e a revolta, «…sofrendo, sorrindo, sangrando, agarrada nele e fazendo carinho no cabelo do pai»[5].
O jovem contista (nasceu em 1981) consegue fazer uso tanto de uma prosa crua quanto de imagens e formulações de uma exatidão atordoante (quando B., adolescente sem-teto e faminto, surta, comete um crime, quase é linchado: «Gritavam várias coisas. Tudo que já ouviu. Tudo que eles queriam que B. fosse»[6]).
Essa fusão oferece grande dinamismo, mas também o virtuosismo pode trazer desequilíbrios, como no conto-título, onde a tessitura visceral do conjunto é prejudicada por frases excessivamente retóricas («Um redemoinho de esperanças. Anéis superficiais que se esvaem na incerteza das horas»); isso acontece inclusive num texto curto e cortante como Dente de Cachorro («E sente que os espinhos também choram. E que seus olhos são cristais em queda livre»); por vezes, a estrutura de um conto é que soa artificiosa demais, como em Não precisa gritar (o qual me parece mais a justaposição de dois textos, com nítida desvantagem do segundo, uma alternância de vozes de pais e mães, com relação ao acabamento do primeiro[7]).
Uma coisa é certa, porém: mesmo com alguns acordes estridentes, desafinados mesmos, não há tempos fracos ou desinteressantes, entre os parênteses obsessivos e focos ziguezagueantes, na música verbal de O Contrário de B.: a arte de narrar, cada vez que este mundo renitentemente patrimonialista, patriarcal e preconceituoso diz não: «No fundo do rio, com todo esse silêncio desesperado, a mãe pensa que fez tudo certo na vida, que ama demais o marido, a família, a farra, as brincadeiras dele. Eles dançavam juntos, bebiam juntos, se amavam o tempo todo. Olhando os vultos dos mortos sendo arrastados por essa correnteza espinhosa, lembrou que foi feliz. E caída no rio era um pontinho escuro vazio. Ela pensou também: “me solta, filho da puta!”».
TRECHO SELECIONADO
«Mãe tá doente.
Fala assim com um desprezo palpável. A menina nem levanta a cabeça. Continua criando seus buracos, seus abismos. Depois ela pega um punhado de farinha na cozinha e vai tapando. São agora manchinhas brancas no chão.
Ela sorri um pouco e olha nos olhos de Ícaro.
Tá vendo? Tá vendo? É a cara de mainha…
Na verdade a doença da mãe é um câncer. Foi diagnosticado por uma médica em Juazeiro. A médica estava falando ao celular com o filho, fez assim com a mão para dizer aguarde um pouquinho.
Que legal filhão, olha, mamãe tem que ir trabalhar. Beijão. Pede para Francisca fazer a carne que tirei do congelador tá bom? Beijão.
Desliga o telefone. O pai e a mãe esperando sentados na cadeira o atendimento que haviam marcado há quatro meses.
Dona Mariana, as notícias não são boas. A senhora está com câncer.
Oxe, quié isso?
E a doutora explicou de uma forma que dona Mariana entendesse apenas o principal: seu estado era terminal. Não havia tratamento. Despachou-a e chamou o próximo paciente pensando que Francisca nunca faz o almoço direito, sempre coloca óleo demais na carne».
NOTAS
[1] Como constatamos no cruel Hoje Não:
«Imagine se levo o dourado e chego para ele no meio do shopping, na frente de todo mundo e estendo um filhote tão lindo.
Ele ficaria maluco!
Imagine todo mundo me olhando e dizendo que puta pai que eu sou. E as crianças todas dizendo que também querem um daquele e os outros pais todos putos comigo. Rá. Eles iam ficar putos com o melhor pai do mundo».
[2] Há um conto chamado Possibilidade de Estar Incompleto.
[3] Os dois primeiros contos têm esse título, ambos muito bons (embora eu tenha ficado confuso com o uso dos nomes dos personagens no segundo deles, do qual retirei a citação acima). Segundo o próprio autor, respondendo-me gentilmente, “os dois contos são como um universo paralelo, algo que poderia ter acontecido se alguma variável fosse alterada…”.
[4] Nesse conto, o meu predileto, há um diálogo explícito com a obra de Raduan Nassar.
Em Reza de Gato Morto, lemos:
«Achei a senhora feia no enterro, até comentei com sua irmã. Disse que a maquiagem estava horrível. Papai escolheu o caixão mais barato, o serviço mais porco. Sempre foi assim conosco, tudo do mais barato. Senti pena da senhora. Ave Maria, me perdoe. Não sei rezar. Fico com esses lamentos o tempo todo. Lembro do papai rindo com os amigos no enterro» .
[5] Outra visão dos pais juntos é uma das passagens mais intensas do lado “cru” de Liberal, no ótimo Obedeça Seu Pai (cujo início é justamente a repreensão e punição a um menino que desenhou um pênis):
«Está em cima da esposa agora, os dois nus, suados. Seu filho ouve um barulho estranho e abre a porta. Vê os dois se mexendo com um ritmo muito específico. Não entende aquilo, acha que você está matando sua mãe.
Papai?
Você dá um salto de cima da mulher com um reflexo fantástico. Grita: sai daqui desgraça!
Sua esposa ainda está com as pernas abertas. Apenas estica o pescoço para ver a cena. Você vai em direção à porta com o pênis ainda duro balançando e batendo nos lados das pernas. Seu filho fica estático. É uma escultura de concreto. Você o empurra e fecha a porta com chave. Ele fica caído no corredor sem entender. Chora. Você retorna e sua esposa está de quatro, esperando continuar aquilo…».
[6] Outro exemplo: «Não dá para ser algo que não existe dentro».
[7] Onde encontramos algumas das melhores páginas da coletânea:
«Nas redes sociais isso é tão lindo que você parece a mãe mais cuidadosa do mundo, mais atenciosa, mais carinhosa. Mas você nem o escuta. Fica assim no celular o tempo todo rindo e mexendo os dedos nessa tela de vidro e rindo e mandando mensagens e tirando foto o tempo todo.
(Você nem vê que ele está com 39 graus de febre)
E no aniversário dele você parecia uma mãezona. Gritava o tempo todo “filhinho, filhinho”. E na hora dos parabéns você foi abraçá-lo e ele se esquivou. Correu para a avó.
(Não adianta chorar agora)
Ele correu para outra pessoa.
Isso abre uma ferida imensa. Um abismo entre seu filho e você. Cada um de um lado, se olhando mutuamente, tecendo suas armas um contra o outro. Ambos se protegendo. E essa dança nunca acabará, pode ter certeza».
Republicou isso em O SOL NASCERÁ….
Comentário por anisioluiz2008 — 29/12/2015 @ 9:55 |