«…e desses panos dependurados das janelas,
pendendo dos vãos das áreas de serviço,
esses tapetes voadores inválidos,
catalépticos, memoribundos,
saudosos das arábicas peripécias,
esses lençóis voláteis como véus
que sobreviveram às dançarinas,
odaliscas de remotas épocas,
impregnados de sua arte,
[…]
e dessas janelas indiscretas,
mesmas dos panos pendurados,
que à noite se acenderão manteigosas
e quem sabe nos presenteiem
com alguma silhueta sinuosa
da qual se possa dizer pelo peso
e liberdade de movimento dos seios
que pertence a uma mulher nua em pelo,
ou quem sabe ao fantasma de uma daquelas
memoráveis odaliscas de remotas épocas
às quais os lençóis sobreviveram»
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 13 de outubro de 2015)
O eu lírico de Esculturas Fluidas enxerga-se, geométrica e existencialmente, “obtuso” («É tão estranho ser alguém»): «onde/todos veem fronteiras físicas/montanhas, rios e abismos/ eu enxergo apenas meridianos/ linhas imaginárias determinadas/por nossas bússolas semânticas… ».
Perdido na megalópole, labirinto moderno, arena incongruente, espetáculo de contrastes com arquibancadas vazias, ele escreve (e será lido com mais proveito) de soslaio, recorrendo a enumerações caóticas, encasulando versos-esporos, com vocação de aforismos; criando, enfim, um bricabraque, um conjunto poético cuja força maior (às vezes, fraqueza, certas páginas e partes de poemas parecem francamente dispensáveis[1]) é esse diálogo entre o óbvio e o inusitado («Nunca concluí um pensamento/Minha contribuição definitiva/serão meus pressentimentos»), entre a formulação banal e um moto contínuo de lapidaridades[2]. Aliás, João Paulo Parisio não se faz de rogado no uso de palavras e expressões sonorosas, retumbantes: memoribundos, belengodengos, manteigosas, arcaicófilo, intelectotegumento, labirintado, harênico, humonetárias, meta-aranha, pundonor, insabíveis, pessoilhas, descomposturou, lispectroscópica, maceteamento, pamnésia, parnasioide, bricabraque, platelmintos, Belle Épocalipse, invagina, coconsomem, homeostase…
A isso se agrega também o recurso à quebra irônica de lugares-comuns: «mansão de inumeráveis incômodos»; «frases-defeito»; «a pressa é inimiga da refeição». Não por acaso, no ato sexual, homem e mulher «ocupam o mesmo não-lugar». Pois o usual se torna incomum, quando vivenciado.
No centro do livro, fênix e mariposa se opõem-complementam («Renasceu das cinzas como uma fênix/e como uma mariposa desnorteada/se deixou atrair por um novo amor/que acendia ao longe»). A segunda nunca deixa de cair na armadilha das «magias contingenciais», o sorvedouro cotidiano («São quatro e dezessete da tarde/e que sei eu da vida?»); a segunda, ao renascer incessantemente, nos coloca no rastro de um halo («Os fatos não comportam a felicidade/Eles precisam de ajuda»[3]), talvez daquilo que chamamos alma: «Qual é o tamanho da minha alma?/Alma, alma, alma/ressoa o eco/no interior do deserto/sem o menor sinal de paredes»; ou, no mínimo, do sonho (tendo em vista que «Todo dia a realidade se imola»): «Fecho os olhos/à espreita do rumor crescente/ do petróleo que mina dos sonhos».
Já na sua expressiva estreia, a coletânea de contos Legião Anônima (2014)[4], eram evidentes os dotes de Parisio como escritor e seus recursos de linguagem, nada imaturos ou modestos[5]. Ainda assim, como ato de fé na poesia, Esculturas Fluidas é uma surpresa emocionante. Como afirmei, há algumas quedas nesse alto voo no território do verso, mas no geral o quadro é tão luminoso quanto este verso: «Atear é tecer o fogo»[6].
Contra o «orgasmo da comiseração», o maravilhosamente obtuso gume lírico parisiano golpeia o declínio da perplexidade com o mesmo punhal do espanto com o qual mata a familiaridade e os tentáculos da autoajuda; daí as crianças serem as guardiãs do encanto-fênix: «levam os pais para passear/e devolver-lhes os animais e as plantas/ que já tinham se transformado em nomes». Mesmo que, ser-mariposa enredado na teia mágico-perversa urdida pela meta-aranha: «Todas as manhãs acordo/com a igual esperança/de vislumbrar a eternidade/Sei que é como a um peixe/tentar enxergar a água/em que vive mergulhado/através dela é que enxerga a realidade».
Difícil é imaginar qualquer lista de destaques nacionais de 2015 sem a presença de Esculturas Fluidas.
NOTAS
[1] Por exemplo, são inexpressivos os poemas das págs. 32-33-34-35 e 76; e nem sempre o acúmulo aforismático se equilibra na corda bamba. Dito isto, é preciso ressaltar que os momentos inspirados superam em larga medida os menos felizes.
[2] «Fantástico é o real que não aconteceu»
«As ideias nunca são filhos planejados»
«A felicidade não se reconhece no espelho/só no escuro se rememora»
«Para quem olha de dentro/a hora do parto/deve parecer a da morte»
[3] Um dos vários momentos “lispectroscópicos”, indicando a forte presença de Clarice Lispector.
[4] VER AQUI NO BLOG: https://armonte.wordpress.com/2014/12/30/livros-de-2014/
[5] O movimento pendular entre prosa e verso, narrativa e lirismo, é explicitado num belo momento de Esculturas Fluidas:
BIGAMIA
«Se a prosa é minha consorte,
a poesia é a minha amante,
mas elas amiúde se comutam
ou dividem com liberalidade
o mesmo leito desconjunto;
direi que são dos meus olhos
as duas meninas,
minhas concubinas,
embora saiba muito bem
quanto esse matrimônio é ilusório:
eu é que sou mais um escravo
de seu harém compulsório,
e essas duas inimigas,
embora ubíqua,
uma mulher só »
[6] Em contrapartida, «e tudo que meu coração arde/erguido no alto como uma lamparina/meus pés mal ilumina».
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