MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

08/09/2015

As luzes do capitalismo e as sombras humanas: “Navios iluminados”, de Ranulfo Prata


ranulfo pratanavios iluminados

«__ Posso morrer debaixo do pesado, que me importa, mas quero ganhar.

__ Se morresse logo de uma vez era bom, acabava-se com a lida sem mais aquela. Mas custa. A gente vai se arrebentando por dentro aos bocadinhos…»

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 8 de setembro de 2015)

Santos (mais especificamente a zona portuária e o Macuco) é o cenário de um clássico da literatura de cunho proletário, Navios Iluminados. Quarto (e último) romance de Ranulfo Prata[1], publicado em 1937 pela então editora de maior prestígio no país, a José Olympio, acabou resvalando numa trajetória de reedições escassas e obscuras, até agora, quando ganha sua inclusão na bem-cuidada coleção Reserva Literária (Com-Arte/Edusp)[2].

O romance se inicia em 1927 e a trajetória do baiano José Severino coincide com a virada da República Velha para a Era Vargas (pré-Estado Novo). Fugindo da proverbial miséria nordestina, ele tenta a custo conseguir uma das disputadas vagas nas docas, conseguindo-a com a ajuda de um pistolão, ao tornar-se seu “eleitor”. São memoráveis as páginas em que Prata mostra a perplexidade de Severino ante a burocracia necessária para “existir” oficialmente (ele nem sabe o dia em que nasceu[3]) e ocupar um emprego, em meio a tantos outros migrantes e estrangeiros, os quais acabaram por moldar a feição da cidade.

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Embora seu protagonista seja mais para passivo e conformado, ao relatar seus anos como estivador, o autor sergipano (radicado boa parte de sua vida aqui na região), traça sutis pinceladas das lutas sindicalistas ao seu redor, e cria também uma galeria de personagens secundários, entre colegas de serviço e vizinhos (além da futura esposa de Severino, Florinda), que trazem ao primeiro plano romanesco o mundo do trabalho —numa literatura predominantemente burguesa como a nossa, muito focada na ascensão social, mesmo no romance social dos anos 1930, com seus coronéis ou funcionários públicos intelectualizados—; em contrapartida, a escassez de demanda de mão-de-obra, fenômeno que se repete e confere inesperada (para não dizer agourenta) atualidade a Navios Iluminados;  nele, os personagens vivem sem o anteparo das leis trabalhistas (consolidadas sob o governo getulista), agora vivemos um momento dramático em que elas são ameaçadas, postas em xeque. E a vaga nas docas como sonho empregatício ganhou, com o desenrolar da História, uma pátina de ironia. Aliás, um dos melhores episódios é o da revolta daqueles que dobram a jornada na estiva contra uma máquina cuja função é modernizar e acelerar as operações de desembarque («Bom negócio este da gente cortar o dia pelo meio, por causa da peste de uma máquina que não tem filho nem mulher pra sustentar…»).

A parte final, mais dramática, nos apresenta um Severino tuberculoso e desempregado, segregando-se inclusive da família e internando-se na Santa Casa (onde Prata trabalhou como médico). Creio que foi essa miséria humana e, de roldão, o empobrecimento e precariedade de moradia cada vez mais acentuados, a causa para a comparação recorrente e exagerada do autor de Navios Iluminados com Graciliano Ramos. Falta ao primeiro a visceralidade psicológica que torna geniais os painéis sociais do autor alagoano, a paisagem íntima tão marcante quanto a externa. Severino não é páreo para nenhum dos seus anti-heróis[4].

Mesmo assim, o livro resistiu bem ao tempo, entre outros motivos pelas cenas em que justifica seu belo título. Calo-me sobre a última, deixando que o leitor a descubra. Mas logo no primeiro capítulo, a visão dos grandes e prósperos navios de passageiros a ganhar o vasto mundo a partir do cais santista contrasta com a descrição da condição abafada, amesquinhada e tacanha em que coabitam Severino e seu conterrâneo Felício; mais adiante, já como estivador, coberto de carvão da cabeça aos pés, ele tem a visão da partida de uma daquelas “embarcações de sonho”, um luxuoso vapor: «De longe estava mais enfeitado de luzes[…]O trecho de cais que ele ocupava tornou-se repentinamente deserto. Só os carvoeiros, sentados no chão, como sombras. A Severino tudo se lhe afigurava sonho. Há poucos instantes tinha diante dos olhos um palácio encantado que desaparecera, num relance, ficando no seu lugar uma tristeza que se espalhava por todas as coisas. No vazio deixado pelo vapor, via, apenas, as águas escuras e sujas».

imagem de resenha

TRECHO SELECIONADO

«Que longos os dias no hospital, santo Deus! Severino sofria doença e saudade de Florinda e dos filhos.

   Não tirava o pensamento deles.

   A distração ali era olhar o panorama da cidade, estendida na planície. Lá estava o canal abraçando-lhe a cintura. Via-se bem o limite do casario, as filas de armazéns, internos e externos, os vapores alinhados no cais, a ponta dos guindastes, o fumo das locomotivas e, mais além, transposto o canal Itapema, a Ilha Barnabé, Bocaina, Guarujá, o verde rasteiro do mangue, o Monte Cabrão, o Morro das Neves, a Serra do Quilombo. Depois era o mar, as praias com os seus jardins, hotéis e pensões de luxo. Duas cidades diferentes: a de cá, escura, poenta, cheia de movimento e barulho, suada de trabalho; a de lá, clara, limpa, alegre, refrescada pelo sopro do mar, com gente ociosa no hall dos hotéis, bebendo, tomando banho, espiando as mulheres.

   Ao lado do pavilhão, o Monte Serrat, com a sua ferida no flanco e o cassino trepado no cocuruto, tapando a vista da velha igrejinha que Severino tanto queria olhar, sabedor dos seus milagres…»

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NOTAS

[1] Nascido em 1896, ele morreu precocemente, em 1942. Os anteriores são O triunfo (1918); Dentro da vida (1922); O lírio na torrente (1925).

[2] Essa edição (a quinta do romance) tem apresentação de Marisa Midori Deaecto, com posfácio de José de Paula Ramos Jr, que fez o estabelecimento de texto.

[3] «__ Em que dia e ano nasceu?—perguntou  o escrivão.

   Severino atarantou-se, não sabendo o que responder.

__ Este papel diz que tenho 23 anos—e estendeu ao escrivão o atestado do delegado de Patrocínio.

__ Estamos em 1927, logo foi em 1904. E o dia?

__ O dia não me alembro agora.

__ Bote 13 de maio—sugeriu seu Faustino, com ares de pilhéria e debique».

[4] A meu ver, o único candidato a se ombrear com Graciliano, na época, era Dyonélio Machado, autor de Os ratos (1935).

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