(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 22 de junho de 2015)
Três vezes ao amanhecer, como o título indica, divide-se em três episódios distintos (que poderiam ser momentos da vida de um mesmo indivíduo), todos eles iniciando-se num hotel.
No primeiro, um quarentão está sentado no hall. Chega uma mulher a qual, embora se dizendo hóspede, pede que ele a leve para o seu quarto. A todo instante, o homem reitera que precisa partir, pois tem um compromisso, no entanto fica, como se sua vontade “amolecesse” junto àquela estranha. Amanhece. Saberemos que seu o nome é Malcolm Webster quando a polícia bater à porta para levá-lo; no segundo, um velho porteiro noturno observa a chegada de um casal: deplora que a moça, adolescente de encanto irresistível, embruteça-se e se desperdice com um parceiro violento e barraqueiro. Consegue convencê-la a sair do hotel em sua companhia, após revelar que passou anos na prisão. O amanhecer os surpreende em fuga: «Seria uma trabalheira compreender a história deles, ao vê-los…Talvez um pai e uma filha, mas nem isso». Acabam separando-se, e quem alcança o porteiro é o parceiro dela; no terceiro, uma policial cinquentona decide ser um pardieiro inaceitável o hotel para onde foi levado um garoto (chamado Malcolm) que perdeu os pais num incêndio criminoso; contrariando ordens superiores, coloca-o num carro e dirige noite afora para deixá-lo, ao amanhecer, junto a um homem que constrói barcos e com quem tem uma longa história de idas e vindas…
Três vezes ao amanhecer já seria notável pela intensidade dramática que todos os episódios alcançam. Que filme ou peça poderiam ser extraídos das situações, no deslocar da impessoalidade que o próprio espaço—os hotéis—sugerem para uma intimidade perturbadora e lancinante! Todavia, para mim o supremo encanto da leitura foi a “janelinha”, por assim dizer, que ela abre com relação ao romance anterior desse talentoso escritor da atualidade que é Alessandro Baricco: Mr. Gwyn (também lançado pela Alfaguara[1]), contra o qual a única queixa era de que ele nos deixa na mão num ponto crucial, o experimento dos “retratos em palavras” de seu protagonista. Eles permanecem mais um conceito do que uma experiência narrativa, apesar de tudo o que o relato tem a nos oferecer em matéria de fabulação e reflexão (e é pródigo em ambos).
Pois Jasper Gwyn, um cultuado escritor, anuncia o encerramento da sua carreira. Dedica-se, então, a um inusitado experimento: observando uma pessoa, como um “quadro vivo”, num cenário totalmente controlado, compromete-se a entregar a ela (e tão somente a ela, sem publicidade) o resultado verbal dessa longa contemplação («Era como fazer-lhes uma mesa, ou lavar-lhes o carro. Um ofício. Escreveria o que eram, só isso»). Até que a discrição com que exerce essa arte de “copista” (como a denomina) é comprometida e transformada em escândalo. Ele desaparece. Sua colaboradora e modelo inicial, Rebecca, lê um livro chamado “Três vezes ao amanhecer”, de Akash Narayan, dando-se conta de que ali está reproduzido um dos quadros de Gwyn. Como eles nunca foram divulgados, suspeita que Narayan é o escritor trânsfuga, ainda assombrado pelas palavras.
A princípio, o leitor pode achar que, à moda de um Paul Auster, Baricco se compraz em jogos de espelhos ao escrever o romance que Rebecca leu. No prefácio, o italiano afirma que o fez «um pouco para dar uma leve e distante sequência a Mr. Gwyn e um pouco pelo simples prazer de perseguir certa ideia que eu tinha na cabeça».
Não sei qual ideia ele tinha na cabeça e perseguia. O que ele realizou, de maneira alguma leve e distante, foi justamente criar “quadros escritos”, concretizar, enfim, o projeto de seu peculiar herói. Afirmei que Três vezes ao amanhecer funcionaria no palco ou nas telas. Mas sua leitura é muito mais a experiência de ter quadros (como os de Edward Hopper, por exemplo, que se prestam muito a um olhar narrativo) metamorfoseados em palavras. Cem páginas que valem por três imagens.
VER AQUI NO BLOG:
NOTAS
[1] Ambos traduzidos por Joana Angélica D´Ávila Melo (o título original de Três vezes ao amanhecer é “Tre volte all´alba”, 2012—Mr. Gwyn foi publicado no ano anterior).
Alfredo, obrigado pela resenha sobre livros de um autor fabuloso, que particularmente para mim foi mais uma descoberta incrível baseada nos seus comentários. Para quem gosta realmente de literatura, ler regularmente o blog do Alfredo é sempre um prazer e um local de surpresas e de descobertas! Baricco é fantástico. Uma possibilidade seria de que em Tres Vezes ao Amanhecer a história começa do fim: Malcolm Webster é o menimo que vai morar com o homem que constrói barcos na terceira história, depois torna-se um rapaz violento na segunda história e encontra seu fim quando a policia o prende num hotel na primeira história. Tudo sob os dominios da deusa Eos (Aurora) e sob a observação de Mr Gwyn presente nas histórias como sendo ele mesmo o lobby dos hotéis. Retratos escritos de Mr Gwyn!
Alfredo, desejo que você esteja se recuperando bem rápido! Abraços.
Comentário por Miguel — 25/06/2015 @ 15:38 |
Já eu, caro Miguel, penso que ele é o porteiro do hotel da segunda história. Mas o Baricco também foi uma descoberta recente e fico feliz de tê-la multiplicado para outros leitores apaixonados. Obrigado, abração.
Comentário por alfredomonte — 28/06/2015 @ 9:50 |