MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

18/04/2015

OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES: Agatha Christie para nerds


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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de janeiro de 2012)

Apesar da deplorável e escandalosa decisão editorial de traduzir o livro da versão francesa e não do original sueco[1], me envolvi muito com o mistério criado por Stieg Larsson  (1954-2004) no primeiro volume da série Millennium (nome da revista dirigida pelo protagonista, Mikael Blomkvist), Os homens que não amavam as mulheres: a investigação, décadas depois, do desaparecimento e possível assassinato de Harriet Vanger, em 1966, aos 16 anos, numa pequena ilha onde os moradores são  membros da sua família, que se odeiam e hostilizam entre si (e alguns deles têm um passado de engajamento nazista).

Mikael (condenado num processo de difamação jornalística, e que por esse motivo aceita o trabalho, afastando-se da Millennium) se reúne a uma parceira improvável: a hacker que preparou o dossiê a respeito dele para o empresário Henrik Vanger, o qual todos os anos recebe uma flor emoldurada como presente de aniversário, gesto que credita ao assassino da sobrinha.

Lisbeth Salander é uma figura disfuncional, com aparência anoréxica, toda tatuada, parecendo uma menina ainda, e um comportamento antissocial acentuado. Ela nunca baixa a guarda (e, pelo desenvolvimento da trama, não deve mesmo, pois sofre severos abusos sexuais de um tutor legalmente constituído, já que ela apresenta histórico psiquiátrico; aliás, diga-se de passagem, o diagnóstico de Stieg Larsson sobre a liberdade na Suécia, a violência contra a mulher e o estado de corrupção nas finanças do país parecerá desalentador a quem tenha ilusões com os países ultra desenvolvidos e civilizados).

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Conforme vai descobrindo novas pistas a partir da manipulação modernizada de fotos antigas, e também de uma associação entre passagens do Levítico bíblico anotadas pela desaparecida Harriet e brutais crimes contra várias mulheres, a dupla se sente cada vez mais ameaçada no microcosmo familiar da ilha onde os Vanger habitam.

Esse núcleo de mistério clássico foi muito bem adaptado na versão cinematográfica, que eliminou alguns elementos importantes do romance (como a ligação amorosa de Mikael com uma Vanger) sem grande prejuízo e alterou a solução do desaparecimento da Harriet de uma forma que considero muito mais eficaz e bem sucedida que a de Larsson.

Infelizmente, o competentíssimo e estiloso (embora nada pessoal) filme de David Fincher manteve o calcanhar de aquiles que compromete o resultado final de Os homens que não amavam as mulheres . Solucionado o  caso da família Vanger, Mikael volta à Millennium para ajustar contas com o corrupto empresário Wennerström, que o liquidara nos tribunais. Até aí tudo bem. Acontece que ele faz Lisbeth Salander virar uma heroína de romance de Robert Lundlum ou do seriado Alias (aquele do J.J.Abrams, onde Sidney Bristow-Jennifer Garner se disfarçava a torto e direito pelo mundo afora, acessando qualquer sistema ou área restrita): dando uma de loira fatal, turbinada e poderosa, limpará as contas do vilão pela Europa afora e fará dele um fugitivo arruinado e com a cabeça à prêmio. Ora, ora. Até Rooney Mara, indicada ao Oscar, e cuja caracterização é absolutamente perfeita, vacila nessa hora, tropeça e vira uma caricatura. Não dá para  para um leitor ou espectador verdadeiramente adulto não achar lamentável essa transformação de Agatha Christie em fantasia nerd.

A personagem, que era o grande trunfo de Stieg Larsson, transforma-se num elemento risível. E Os homens que não amavam as mulheres perde todo o seu encanto sombrio. Mas talvez já se devesse pressentir tal triste fim diante de passagens como a seguinte, ao longo do texto: “A mochila continha seu iBook Apple 600, branco, com o disco rígido de 25 gigas e memória RAM de 420 megas, fabricado em janeiro de 2002 e com tela de 14 polegadas. Quando o adquiriu, era o que havia de melhor na Apple (…) Fizera cópias de todos os documentos e ainda possuía um velho computador de mesa Mac G3 e outro Toshiba portátil que poderia usar (…) Optou, como era de se esperar, pela melhor escolha possível: o novo Apple Powerbook G4 de 1Ghz, com tampa de alumínio e dotado de um processador Power PC 7451, AltiVec Velocity Engine, memória RAM de 960 megas e disco rígido de 60 gigas. Tinha Bluetooth e um gravador de CD e DVD integrado. Mais que isso, era o primeiro notebook do mundo com tela de 17 polegadas, uma placa Nvidia e resolução de 1440 por 900 pixels…” A Apple agradece o merchandising.

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[1] Tradução de Paulo Neves (de Les hommes qui n´aimaient pas les femmes). Millennium-I (Män som hatar kvinnor, Suécia, 2005)

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