MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

31/03/2015

Destaque do Blog: OS VELHOS MARINHEIROS OU O CAPITÃO DE LONGO CURSO, de Jorge Amado


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«Como se por um passe de mágica deixasse Periperi  de ser um pacato subúrbio da Leste Brasileira , habitado por velhos à espera da morte, e se transformasse em estação interplanetária de onde decolavam  audaciosos pilotos para a conquista dos espaços siderais…»

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 31 de março de 2015)

Os velhos marinheiros ou O capitão de longo curso desde 1976 é um livro independente. Quando foi lançado originalmente, em 1961, era a segunda das «Duas histórias do cais da Bahia»[1] — a outra, mais curta, ficou bem mais famosa: A morte e a morte de Quincas Berro D´Água. Agora, com a adaptação cinematográfica de Marcos Jorge em cartaz (O Duelo, insosso e infeliz título) espera-se que «a completa verdade sobre as discutidas aventuras do comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso» seja finalmente reconhecido como uma das obras-primas de Jorge Amado, o qual, de 1958 (ano de Gabriela, cravo e canela) a 1969 (ano de Tenda dos milagres), passando pelos velhos marinheiros, pelos pastores da noite (1964) e por Dona Flor e seus dois maridos (1966), estava em estado de graça como prosador e ficcionista. É a sua fase áurea[2].

Vasco Moscoso de Aragão, em 1929, às vésperas da liquidação da República Velha, instala-se em Periperi, sacudindo a pasmaceira do balneário de aposentados, onde o maior foco de interesse é a vida alheia, principalmente os trâmites de um processo movido por Chico Pacheco. O lúdico homem do mar, com histórias mirabolantes, seus instrumentos náuticos, a geografia variada e exótica que descortina para seus numerosos admiradores (sua casa torna-se uma atração local), ofusca Pacheco que, invejoso e desconfiado, intenta desmascará-lo como um farsante, um charlatão.

Essa rivalidade é contada vinte anos depois por um narrador (envolvido ele mesmo em imbróglios sentimentais, eróticos e financeiros), a partir do mote: «o que é a verdade[3]. Conheceremos os verdadeiros fatos biográficos de Aragão, apurados por Pacheco, em sua ânsia de desbancar o desafeto: neto de um comerciante sovina e rico, que queria fazer dele um sucessor, seu temperamento sonhador tornava-o uma decepção. Só com a morte do avô, quase aos 30 anos, o futuro capitão de longo curso começará a viver como sempre quis, com um grupo de amigos que forma a “nata” da sociedade baiana (na perspectiva da dona de uma famosa “pensão de moças”, Carol), pândego e pródigo.

O amigo dele, Georges Nadreau, capitão dos portos, nota que, apesar de ter “tudo”, Vasco vive «com a crista caída». O motivo dessa insatisfação faz de Os velhos marinheiros uma espécie de versão pícara e estendida do genial O espelho, de Machado de Assis, onde um alferes só se sentia “existindo” quando fardado.  Vasco anela por um título que o nobilize (essa fixação por ser “doutor”, ou outro tratamento equivalente, forma um fundamento recorrente da nossa desigualdade social, e atitudes recentes de certos juízes só ratificaram sua permanência na mentalidade brasileira), ser apenas “Seu” Aragão lhe parece  aviltante (e ele se sente inferior ao grupo de amigos): «…entrava na Pensão Monte Carlo e Carol saudava-o com ternura, seu  Aragãozinho, após ter dito Coronel, Doutor, Comandante, Tenente aos outros quatro».

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Assim, todo um esquema é montado para que ele obtenha a condição de Comandante (até uma condecoração), mesmo nunca tendo pisado numa embarcação. Nasce assim o herói náutico de Periperi — pelo menos até ser desmistificado pelo rancoroso Pacheco.

Entretanto, se a fabulação corre solta em todo o romance, é na sua terceira parte, quando Vasco embarca como Comandante (peça de decoração, de fato — não podemos esquecer o lado ridículo do  personagem com sua obsessão com a aparência e as formalidades) numa viagem, que Amado deita e rola no estado de graça sob o qual foi escrito Os Velhos Marinheiros, pois o discurso narrativo embaralha a auto-ilusão do personagem (viagens e experiências fabulosas) e a realidade, num triunfo de linguagem que embaralhará igualmente a questão da verdade e do apego aos fatos[4]:

«O Comandante sorriu. Um dia, quando estivessem vivendo na casa de janelas verdes sobre o mar, em Periperi, nas noites de lar tranquilo, ela fazendo tricô, ele cachimbando, contar-lhe-ia o que lhe sucedera quando, nas costas da Turquia, uma apaixonada e insensata maometana se escondera em seu beliche e ele a descobrira quando já ia o barco em alto-mar. Muitas histórias lhe contaria, aflições de SOS, perigos em portos de ópio e contrabando, tinha uma vida excitante a entregar-lhe, a depositar em seu seio, a dividir com ela.»

O resultado não podia ser mais lindo (só acho os parágrafos finais um tanto quanto proselitistas, num tom que me incomoda um pouco: « Onde está a verdade, respondam-me por favor; na pequena realidade de cada um ou no imenso sonho humano?»), um dos pontos altos da nossa prosa de ficção. Muitos (entre os quais eu me incluo, durante um longo período de desdém, forçoso é fazer esse ‘mea culpa’) torciam o nariz quando se falava do escritor baiano como candidato nacional ao Nobel. Hoje, na revisão de obras como essa, tomamos consciência do quão injusto foi seu nome nunca ter sido anunciado.

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«Expliquei-lhe minhas preocupações em torno da atitude assumida pela população de Periperi naquela primeira fase da luta entre o Comandante e Chico Pacheco.    

Não concordou Telêmaco com o Meritíssimo, “que entende aquela  besta do comportamento dos homens?”. Não eram, segundo ele, as provas concretas e materiais—diplomas, mapas, cronógrafo—a causa fundamental do apoio dado ao Comandante.  Não era assim tão simples e fácil, nem dão os homens tanto valor às provas materiais (…) Que lhes oferecia Chico Pacheco? As tricas de um processo judicial contra o Estado, era pouco. Se ainda fosse um processo criminal, com mortes, esposa adúltera e amante sórdido, facadas ou tiros, júri emocionante, promotor e advogado, ciúme, ódio e amor, talvez tivesse alguma possibilidade… Mas essa pendência em torno de uma aposentadoria era quase nada para o muito de que necessitavam, sua carência de vida mais verdadeira e profunda.» oduelo-fotos-7-650x400patricia-pillar-e-joaquim-de-almeida-no-filme-o-duelo-original ____________________________

NOTAS

[1] Sob o título geral de “Os velhos marinheiros”.

[2] Sei que essa minha afirmação vai de encontro ao estabelecido pela crítica em geral, que valoriza mais a produção anterior, caso de títulos como Terras do sem-fim ou Jubiabá. Mas sem desmerecer esses, e ainda outros títulos marcantes, como Capitães de areia, Mar morto, a escrita de Amado nesse período está longe do brilhantismo posterior.

[3] Amado usará ainda mais brilhantemente esse foco narrativo naquele que é o meu romance predileto dentro da sua obra, Tenda dos milagres.

[4] E, mutatis mutandis, tornando-se um belo ancestral da linguagem exercitada por Ricardo Lisias em O livro dos mandarins.

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