MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

06/01/2015

EM DIREÇÃO AO QUE IMPORTA: os belos haicais de “29”, de Marcos Messerschmidt


29marcos com gata

“trinta e quatro dias numa clínica,

quarenta dias nos bosques do Japão,

onze meses sem beber.  

vinte e nove anos

enterrados em mim.”  

(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 06 de janeiro de 2015)

Na minha lista de destaques de 2014, publicada na semana passada, alguns autores (como Thiago Roney, Leonardo Villa-Forte, Rafael Sperling, todos com 29) beiravam os 30 anos[1]. O gaúcho Marcos Messerschmidt já alcançou a marca, mas antes, como um rito de passagem, escreveu os 70 haicais — emoldurados por dois poemas mais longos — que compõem 29. “Dia de chuva /bom começo/bom fim para um haicai.

Em seis seções, a forma japonesa consagrada, essencialista, muito focada na contemplação da natureza, e que teve um mestre como Bashô (1644-94: “Calou-se o sino/ O que chega a mim agora/ é o eco das flores),  é inteligentemente mesclada a notações urbanas, a clínicas de reabilitação, a autores-fetiche, cuja marca seria uma antípoda prolixidade, caso de Roberto Bolaño, os beatniks (como Kerouac ou Ginsberg), Bukowski, para não falar em Baudelaire e do santo padroeiro da abertura, o mais expansivo e derramado, Walt  Whitman (“poeta da relva/obrigado/ por me ensinar /a abraçar /a humanidade”; mais adiante: “em três linhas/ sou todo[s] /sou invencível”).

Já há tempos vem me enfadando o constante (e já estereotipado)  apelo à “literatura” como matéria do próprio fazer literário. E, Bolaño (malgrado sua culpa no cartório com relação à famigerada metaficção)[2], Whitman e especialmente Baudelaire à parte, nunca fui muito fã dos autores caros a Messerschmidt (“embriagado/ entre Bukowski/ e Baudelaire, lemos na seção Trêmula Cicuta, e eu me pergunto se não é misturar vinho fuleiro com o melhor champanhe — todavia, parece que o autor de Cartas na rua é irresistível para jovens escritores). Mesmo assim, o talento do poeta estreante logrou alguma alquimia secreta e imponderável, talvez o uso de uma cicuta nada trêmula no seu conciso discurso lírico,  conseguindo driblar miraculosamente, na maior parte de 29, os déjà vu, cacoetes geracionais e até mesmo a geralmente insuportável infestação de referências literárias e metalinguísticas (que, no livro, por causa da destreza de toque, se reduz a um suave veneno). haicaicesarea tinajero

Na primeira seção, Flores do Dilúvio, “a flor ensaia o absurdo/ descola do galho /espalhando multidões, e é onde a natureza parece mais presente, junto com os  “chamados irresistíveis da rua; na segunda, A Caminho da Barbearia, a ênfase nas referências começa a ser mais evidente, em meio a versos fantásticos, mesmo com quebra da forma usual (“o belo amigo coça sua melhor barba ), entretanto, como se afirmará na seção seguinte, Trêmula Cicuta, e creio que acabará tornando-se um dos haicais mais citados do livro, “encontro a forma/ nem redonda/ tampouco enquadrada”, espelhando uma rebelião vandalírica mais agônica: “maldigo o pai/ amaldiçoo o filho/ espírito não me contém; o quarto conjunto, Há Pouco, também tem como abertura um haicai que nasceu com vocação para citação: “pensei/ que fosse morrer/ era só a vida, e entre alusões até mesmo a personagens de Detetives Selvagens (para ser mais preciso, a mais-que-procurada poeta das garatujas,Cesárea Tinajero), temos momentos lindos: “o vaso quebra/ estilhaços/ de haicais, ou ainda: “em casa/ espera o mar/ fio solto da rede”, e eu penso que o admirador de Whitman tem uma dicção elíptica mais afinada com a nada garatujal Emily Dickinson, de todo modo a seção tem um fecho de ouro, um dos grandes momentos do lirismo brasileiro mais recente: “estávamos lá/ há pouco/ eis aí o símbolo”. Talvez por esse motivo, considero Disseca-se a seção mais inexpressiva de 29 — ainda bem que há o poema final, Still Beating, o qual começa assim: “nesta cidade baixa/ ensaio o voo torto/ em direção ao que me importa”. O encanto de fazer o percurso nas asas do voo torto do agora trintão Marcos Messerschmidt é que aquilo importa a ele passa a valer para nós também.

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TRECHO SELECIONADO

Um haicai com um quê à Manoel de Barros:

“perto de ti, rio

sou menino

deságuo maturidades”

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NOTAS

[1] VER https://armonte.wordpress.com/2014/12/30/livros-de-2014/

Lembrando que, na mesma lista, Antônio Xerxenesky, que aniversariou em dezembro, lançou seu F ainda com 29 anos, e que Débora Ferraz está com 27.

[2] VER https://armonte.wordpress.com/2013/07/13/estrela-cadente-roberto-bolano-o-visgo-da-literatura-e-o-desgaste-da-aura-de-um-autor/ Charles-BaudelairewaltwhitmanCharlesBukowski

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2 Comentários »

  1. ah, gostei bastante de “a flor ensaia o absurdo/ descola do galho /espalhando multidões”.
    e depois você cita outros também muito belos: os “encontro a forma […]”, “maldigo o pai […]”, “[…] era só a vida” e (porra!) “[…] eis aí o símbolo”.

    caramba, que bom ler esses poemas.

    abraço, alfredo. bom dia.

    Comentário por niltonresende — 08/01/2015 @ 6:39 | Responder

    • Implico com o modismo que virou o haicai, mas tiro o chapéu para o uso que dele faz o Messerschmidt. Saudade de você, Nilton, abração.

      Comentário por alfredomonte — 08/01/2015 @ 9:16 | Responder


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