“Menino ainda, eu já suspeitava de que dar nome a uma coisa era apropriar-me dela. Mas isso não bastava, sempre tive necessidade de mudar periodicamente os nomes daqueles que me rodeavam, pois assim derrotava o conformismo, a lenta substituição de um ser por um nome. Um dia já começava a sentir que o nome já não caía bem, não era a coisa nomeada. A coisa estava ali, nova e brilhante, mas o nome gastara-se como uma roupa. Ao dar-lhe uma nova denominação, provava a mim mesmo, obscuramente, que o importante era o outro, a razão para o nome que lhe dava. E durante semanas a coisa ou o animal ou a pessoa me pareciam belíssimos sob a luz de seu novo signo…” (do Diário de Andrés Fava)
“…e tudo o que mediu e classificou e nomeou, toda a sua astronomia em pergaminhos iluminados era uma astronomia da imagem, uma ciência da imagem total, salto da véspera ao presente, do escravo astrológico ao homem que de pé dialoga com os astros. Talvez os governantes da guarda avançada pela qual damos tudo o que somos e temos, talvez a senhora Callamand ou o professor Fontaine, talvez os chefes e os homens da ciência acabem saindo ao aberto, tendo acesso à imagem onde tudo está esperando…” (da Prosa do Observatório)
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 26 de agosto de 2014)
Julio Cortázar nasceu em 26 de agosto de 1914 (em pleno espocar da Primeira Guerra Mundial). Neste ano de seu centenário, o leitor interessado se depara com uma produção labiríntica: vai do exercício perfeito de um gênero literário difícil como o conto até títulos desafiadores (como O jogo da Amarelinha) ou radicalmente experimentais (como Prosa do Observatório). O genial autor argentino (falecido em outro ano de conotações sinistramente simbólicas, 1984) ainda é um raro caso de publicação de escritos póstumos relevantes (como Diário de André Fava e parte de sua Obra Critica).
Por isso, é oportuno o aparecimento da nova tradução [de Paulina Wacht & Ari Roitman} para Final do Jogo[1] para não nos perdermos nos dédalosdesse cronópio (tipo de indivíduo imaginado por ele, desligado dos automatismos cotidianos e para o qual tudo é risco e aventura, volta ao dia em 80 mundos), nem que fosse pelo lugar estratégico que essa coletânea ocupa: há exatamente 50 anos aparecia a segunda e definitiva edição, onde eram agregados nove relatos à versão original, lançado em 1956, apresentando uma nova e intencional disposição.
No primeiro formato de Final do Jogo (que seguia o feitio de sua estreia no gênero, Bestiário), o leitor dos anos 1950 encontrava nove ótimos contos[2], alguns deles excepcionais, pontos altíssimos do gênero. O que mudou entre essa edição e a seguinte foi que Cortázar escreveu e publicou O Perseguidor e O Jogo da Amarelinha e começou a pensar sua obra de forma mais radical e transgressiva, cada título como um “jogo”, tanto num sentido lúdico quanto num sentido de provocação e perigo. Assim, o que era uma reunião muito coesa, e ainda “dentro dos conformes”, ganhou três partes e narrativas que se espelham, criando um circuito inquietante, todavia reiterativo, bem dentro da concepção “cerimonial” adotada pelo criador de As Babas do Diabo (inspirador de Blow up, filme-chave de Antonioni) — o conto de abertura, Continuidade dos Parques, por sinal, tornou-se um texto paradigmático, na sua utilização da metalinguagem, quebrando a ilusão da leitura.
Não à toa, o protagonista de A noite de barriga para cima se percebe engolfado pelo “tempo sagrado”, perigosamente epifânico (mas acontecendo “dentro do cotidiano”); em contrapartida, lemos em Relato com um fundo d´água o seguinte testemunho da alienação do dia a dia: “numa hora escura e sem nome tudo deixa de ser sério para dar lugar à suja máscara de seriedade que é preciso pôr na cara, e agora sou o doutor fulano e você o engenheiro beltrano, de repente ficamos para trás, começamos a nos ver de outra forma embora continuemos por um tempo com os rituais, os jogos comuns, os jantares de camaradagem que são o último salva-vidas em meio à dispersão e ao abandono, e tudo é tão horrivelmente natural…”
Boa parte de Final do Jogo é dedicada a pôr por terra o que é “tão horrivelmente natural”: no inpactante Ninguém seja culpado, um homem descobre-se numa mortífera armadilha ao tentar vestir um pulôver, num dia frio; uma troca de correspondências que externaria amabilidades e mundanidades torna-se um intrincado de intrigas e exclusões (À mesa); a porta interditada (no conto que tem esse título) entre quartos de um hotel transforma-se num acesso para um mundo doloroso (e é um exemplo cabal de como a construção da “atmosfera” valoriza um relato; aqui, a maneira como o silêncio do “sossegado” hotel é trabalhado pelo narrador me parece ainda mais notável do que o insólito da fabulação); mesmo um passeio se torna uma experiência de ansiedade e mistério (Depois do almoço).
Talvez o exemplo mais explícito dessa linha seja A banda: Lucio Medina entra num cinema para assistir a um filme de um cineasta que admira (Anatole Litvak) e vê-se envolvido por um inesperado espetáculo cafona que algumas famílias organizaram para a apresentação (quase um desfile) exibicionista de uma banda fake (boa parte das componentes nem sequer canta de verdade), um simulacro: “entendeu que aquela visão podia se prolongar até a rua, ao seu terno azul, ao programa da noite, ao veraneio em março, à sua amante, à sua maturidade, ao dia da sua morte…”
Obras-primas são os contos sobre adolescentes dos arredores de Buenos Aires, já em rituais de encantamento e decepção (o conto-título e Os Venenos)[3]. E como não destacar aqueles em que o verniz civilizatório vai cedendo espaço ao primitivo que aflora com brutalidade, caso de O Ídolo das Cíclades e A noite de barriga para cima, e c variante humorística (se a pessoa tiver um certo sentido do cômico) é a história dos músicos despedaçados pela plateia burguesa levada ao êxtase, em As mênades? E a formulação machadianamente terrível da percepção da mortalidade que é A Flor Amarela, complementando o belo exercício da primeira pessoa com o qual se narra o final melancólico de um mítico boxeador, no fantástico Torito (outra exploração inspirada de tipos portenhos, e seus códigos de honra e gíria, é O Motivo).
Entretanto, o conto supremo de Final do Jogo é aquele em que o espectador da vida de um ser bizarro, quase irreal e alienígena, vindo das profundezas do arcaico, do atemporal (os axolotles em exposição no aquário do Jardin des Plantes em Paris), de repente se vê aprisionado no ser que observava (Axolotle): “Por trás daquelas caras astecas, inexpressivas mas de uma crueldade implacável, que imagem esperava a sua hora?”[4]. Um dos maiores momentos da arte da ficção de todos os tempos, e uma porta de acesso como poucas à essência do universo cortazariano.
_____________________________________________________
NOTAS
[1] A anterior foi feita por Remy Gorga, Filha e lançada pela Expressão e Cultura, em 1971 (título original: Final del juego).
[2] Os venenos; O motivo; A noite de barriga para cima; As mênades; A porta interditada; Torito; A banda; Axolotle; Final de jogo;
[3] Cujos equivalentes, na nossa literatura, são certos contos magistrais de Lygia Fagundes Telles.
[4] Texto-irmão dos contos mais terríveis de Clarice Lispector, como O búfalo ou Amor.
BOM DIA UMA ÓTIMA TERÇA FEIRA VISITE ME EM MEUS BLOGS DE POEMAS
http://wordpresdotcomdotcom.wordpress.com/
http://lendasefendas.wordpress.com/
http://eu51.wordpress.com/
Comentário por eu51 — 26/08/2014 @ 9:51 |
Valeu, meu caro.
Comentário por alfredomonte — 26/08/2014 @ 19:31 |
Olá Alfredo, recentemente li essa crítica do Senhor dos Anéis a acredito que seria de seu interesse a análise, é do Filósofo José Monir Nasser http://www.sesipr.org.br/cultura/uploadAddress/livro_1%5B52290%5D.pdf
Comentário por Thiago — 01/09/2014 @ 9:25 |