(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 29 de julho de 2014)
Esta minha coluna corre o risco de transformar-se num veículo necrológico. Tantos são os óbitos de escritores notáveis que alguns chegaram a ser negligenciados (como o de Nadine Gordimer, responsável por alguns dos mais belos e perceptivos romances da ficção contemporânea) e eles estão em franca concorrência com os lançamentos do ano.
O fato é que João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna são dois nomes fundamentais da nossa literatura. Na semana passada, a morte do primeiro me propiciou uma revisão de juízo a respeito de O sorriso do lagarto; nesta, me volto para o fascinante teatro do autor de A pedra do Reino: há exatamente 50 anos, eram publicadas em livro a trágica Uma mulher vestida de sol e a cômica O santo e a porca.
Já se disse que a distinção básica entre tragédia e comédia é o desenlace: em ambas, em três atos, temos um pai autoritário e zeloso, com uma filha única, tida como seu maior “tesouro”, e que tem de se haver com um pretendente indesejável, amado por ela, contrariando os planos dele.
Primeira peça de Suassuna, escrita aos 20 anos, Uma mulher vestida de sol (1947[1]) é perpassada por uma gravidade ímpar. Sem chegar à solenidade artificiosa, o tom das falas é sentencioso e fatalista: todos em cena estão conscientes do peso do sangue e da palavra “empenhada” (eco da noção de honra cavalheiresca), da mortandade exigida pelo conflito cuja origem é a posse da terra: “Quem pode esquecer a morte, vivendo entre estas paredes?”, diz uma das personagens femininas. Temos um clã que se divide em duas facções (uma cerca é o pomo da discórdia), e de todos se exige um papel na engrenagem: quando Francisco, o filho pródigo de Antônio Rodrigues, afirma não ter interesse pelas terras em litígio (na verdade, é um artifício dele), o pai imediatamente o risca da sua vida: se ele não é o herdeiro da luta, não será “nada”.
Francisco ama Rosa, filha de Joaquim Maranhão, contrário à união não apenas pela quizila com a família do outro lado da cerca, como também por inclinação incestuosa evidente (como, antes, tinha pela irmã, Inocência, casada com o inimigo Antônio)[2]. Traiçoeiro e vil, ele apenas extrapola as características gerais dos donos da terra: o que impera nessa mentalidade, sejam os personagens mais ou menos simpáticos, é a lei do “pôs o pé na minha propriedade leva bala”. Intentando destruir os Rodrigues, utilizando até a filha (que, após casar com Francisco, é sequestrada pelo pai) como isca, Joaquim prepara a própria perdição ao assassinar um rapazote, Neco, filho do até então pacato retirante Inácio. Donana (tia de Rosa) o interpela: “Ele não estava derrubando a cerca não, estava só tirando mel!… Ele não tinha a ver com o pessoal de Antônio!”; Ele: “Como é que eu podia saber? Estava na minha cerca, eu só podia pensar que era para derrubar. E ele atirou em mim!”; Ela: “Com uma garrucha de menino, carregada de chumbo…”; Ele: “Cale a boca… Foi uma desgraça que aconteceu com ele como podia acontecer comigo. Manuel, leve o rapaz no caixão de caridade… E diga ao pai do menino que eu o matei por engano…”!
Uma mulher vestida de sol (cujo título remete ao Apocalipse[3], enquanto o casal Francisco-Rosa pertence a toda uma tradição “Romeu e Julieta” do romanceiro popular nordestino[4]) ajuda a esclarecer que a violência atual que horroriza a tantos é a feição moderna de uma situação tornada atávica pelos desmandos de uma noção patriarcal e patrimonialista do mundo. Dramaturgicamente, ela é ainda muito forte, nada fica a dever às peças mais contundentes, de ambientação mais urbana, de um Nelson Rodrigues.
Já O santo e a porca (1957) pertence ao ciclo supostamente mais brejeiro e singelo, cujo representante manjadíssimo é Auto da Compadecida (1955). É muito engraçada e dinâmica (Suassuna teve como modelo o romano Plauto, mestre da farsa), com um personagem que fez escola (de Molière a Ivani Ribeiro): o avarento. É o caso de Euricão Árabe, que esconde uma fortuna numa porca (um cofrinho), sempre em impagáveis apelos (e diatribes, quando contrariado) a Santo Antônio, pois tem a obsessão de que todos querem roubá-lo. Um dia, recebe a notícia de que o fazendeiro Eudoro Vicente, o qual tinha hospedado durante alguns meses sua filha, Margarida, chegará à cidade. Horrorizado com a possibilidade de ter de retribuir o favor, Euricão se apressa em reservar um quarto num hotel. Ao saber do verdadeiro objetivo do viúvo Eudoro (pedir a mão da moça), planeja extorquir do pretendente mais cabedal para forrar sua porca.
Acontece que Margarida ama Dodó, filho de Eudoro, que se disfarçou (como corcunda, coxo, embarbichado e com a boca torta) de empregado da casa, após abandonar os estudos, movido pela paixão. Ao longo da peça, como manda a lei do vaudeville (e dos espetáculos circenses), não faltarão disfarces, trocas de trajes entre os personagens (misturando as identidades), falas de duplo sentido (inclusive com a palavra “porca”), enfim engenhosidades cênicas nas quais Suassuna era um mestre. Curiosamente, a farsa se fecha com um toque sombrio e moralista, acentuando a cilada existencial que Euricão preparou para si ao se deixar levar pelo amor monomaníaco à porca (roçando o clima de algumas estranhas comédias shakespearianas, como O mercador de Veneza)[5].
Mas quem rouba mesmo a cena é a criada Caroba, uma das personagens mais inesquecíveis do teatro brasileiro. Na montagem de estreia (1958), ela foi vivida por Cleyde Yaconis, que dividia o palco com Cacilda Becker (Margarida) e Ziembinski[6] (Euricão). Se Caroba fosse casada com João Grilo (de Auto da Compadecida), sai de baixo, minha gente. Não haveria mundo para tanta tramoia, confusão e verve na fala.
No mais, tanto no registro trágico quanto no cômico, são justas as afirmações do próprio Suassuna, a quem deixo a última palavra: “Serei eu, na verdade, um escritor popular? Sim, às vezes, desde que se entenda esta palavra num sentido menos ilegítimo do que aquele que vem sendo empregado pela crítica brasileira. Mas às vezes também, mesmo no meu teatro, um poeta; bom ou mau, não importa, mas poeta”.
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NOTAS
[1] Mas profundamente reformulada dez anos depois (é o texto que comento na resenha acima). Mesmo assim, Suassuna ainda era um homem jovem quando criou seu fantástico ciclo de peças.
[2] Não se pode esquecer que ele assassinou a esposa.
[3] E que no meu entender toma o sentido da terra ensolarada (do sertão), mas encharcada de sangue, ao final.
[4] E tanto da cultura popular do Ocidente como um todo, mas também da tradição literária, basta lembrar de Romeu e Julieta na Aldeia, de Gottfried Keller.
[5] Devo dizer que a cena final me parece pouco convincente, ainda mais com seu apelo camusiano sobre o absurdo essencial do mundo. Também me parece meio forçada a dicotomia “santo” e “porca”, no senido de dois caminhos opostos na vida, o da santidade e o do interesse próprio. Nada na ação da peça (a sua verdade teatral, como diria Suassuna) enfatiza tal oposição.
[6] Este pode se orgulhar de estar envolvido na montagem dos dois maiores dramaturgos brasileiros do século XX, basta lembrar da montagem original de Vestido de Noiva.
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