Em Viagens através do sonho e da imaginação [Färdas i drömmen och föreställningen,1984, na tradução de Ann B. Weismann e Annika Planck] & Perto das trevas (Darkness visible, 1990, na tradução de Aulyde Soares Rodrigues], dois importantes escritores, Artur Lindkvist e William Styron, apresentam testemunhos sobre experiências ao mesmo tempo clínicas e existenciais, que colocam em xeque nossas ligações mais profundas com a vida e a morte.
I
Em 1981, aos 75 anos, o sueco Lundkvist sofreu um infarto que o deixou dois meses em coma. Após se recuperar, ainda sofreu sequelas que o impediam de escrever e de rememorar parte de sua vida (“um alçapão em que caí”, afirma a certa altura). Quando retoma a escrita, refaz o percurso da sua “inconsciência”. Não descreve o “lado de lá”, mas faz algo como uma crônica do limbo, uma espécie de relato de uma viagem que parece tocar as bordas da vida após a morte, a mesma que tantos livros espíritas mal escritos (não obstante a beleza inegável da doutrina) e telenovelas como A viagem acabam por fazer parecer que todos nós participamos de uma vasta breguice cósmica.
Pássaros, trens, barcos, um mundo de metamorfoses e movimento povoa o quarto onde Lundkvist jaz imóvel. Sentimos que ele dá vida (e corpo) a muitas angústias e fantasias pessoais (às vezes, bem narcisistas), contudo o poeta tem esse privilégio de amplificar suas próprias projeções num tom universal. Nada, aqui, de Envolvido pela luz e outras bobagens editoriais. Estamos num território movediço, no plano existencial, mas firme, no que se refere ao literário.
Há belas imagens (que me trouxeram à mente a dicção de um Eugênio Andrade) a do silêncio que “parece ser como o vento que serenou” ou a comparação com Gulliver, viajando entre mundos desproporcionais. Ficamos com a sensação de que a morte é um esvaziamento o qual, paradoxalmente, nos transforma em coisa maleável (fugindo da prisão da “personalidade”, mas volta e meia redescobrindo suas grades onde menos se esperava) de um mundo (nossa “vida interior”?) que transborda e não para de recombinar-se.
II
Num de seus grandes livros, A escolha de Sofia (1979), Styron escreveu: “Na minha carreira de escritor sempre me senti atraído por temas mórbidos—suicídio, estupro, assassinato, vida militar, casamento, escravidão”.
Ao descrever sua temporada no inferno da depressão suicida, ele afirma: “A depressão, quando me dominou, não era uma estranha, nem mesmo uma visitante inesperada. Há décadas ela batia à minha porta”.
O autor de Deitada na escuridão nos conta, de forma clara e terrível, como teve a súbita percepção de que estava deteriorando-se psiquicamente, ao receber um prêmio em Paris, e os sintomas (baixa autoestima, insônia, pavor); além de nos apresentar alguns “irmãos” depressivos (Camus, Jean Seberg, Romain Gary), ele é incisivo com relação à ineficiência e obtusidade dos métodos psicoterapêuticos, denunciando o perigo latente no uso indiscriminado de certos paliativos ansiolíticos (Halcion, Valium, Ativan), o que é muito oportuno num momento em que se discute intensamente o Prozac e suas contraindicações.
Sem retoques, Styron mostra como foi necessário para ele internar-se, encarando a depressão como doença a ser curada, apesar dos preconceitos e estigmas sociais. Mas o estrago para a sua obra já estava feito: já pouco prolífico, seu veio criativo foi minguando até quase desaparecer completamente no ralo do pesadelo clínico.
III
“Herói era o homem que podia ingressar no mundo dos mortos e voltar vivo”. Um compatriota de Styron, Ernest Becker, escreveu sobre a necessidade que temos do heroísmo (em qualquer acepção) como tapume contra o medo da morte.
Os esforços poético-confessionais de Lundkvist & Styron, o “viajante” e o “sobrevivente” que sobressaem em suas páginas, são a comprovação do que Becker afirma no seu fundamental A negação da morte [The denial of death, 1973]: “Tudo de doloroso e sensato que o gênio psicanalítico e o gênio religioso descobriram acerca do homem gira em torno do terror de admitir o que se está fazendo para conquistar a própria estima”. Uma luta que, ao ser contada, abala o leitor, decerto, mas também curiosamente alenta. Todos nós somos viajantes sempre a passos das trevas.
(a resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 27 de setembro de 1994)
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