MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

22/02/2014

Apresentação de KIM, de Rudyard Kipling

Filed under: palestras etc — alfredomonte @ 14:00
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Rudyard_Kipling_1KIM

(o texto abaixo foi publicado como Apresentação à tradução de Maria Valéria Rezende, editora Autêntica, 2014)

Logo no início de Orlando (1928), famoso romance da escritora inglesa Virginia Woolf, o personagem principal—então um rapazinho do final do século XVI—se diverte chutando a cabeça de um “mouro”, morto em combate pelo pai (ou pelo avô, não se sabe bem), e encenando combates.

Com variações, essa poderia ser a caracterização da disposição da meninada em todas as épocas e lugares: o desejo de aventuras, de viver experiências vibrantes. Por outro lado, a formação de um ser humano no século XXI pressupõe que nele se desenvolva uma cultura de paz e tolerância, de respeito pelo Outro, pela diversidade cultural e religiosa.

Portanto, embora o desejo aventureiro de Orlando seja compreensível para qualquer um que foi garoto, é chocante para nós a sua expressão, através da exaltação da guerra e da visão de outras culturas como “inimigas”. No momento em que Virginia Woolf escrevia seu livro, os países da Europa, especialmente a Inglaterra (mais conhecida como Império Britânico) ainda colonizavam boa parte do globo terrestre, praticamente continentes inteiros, como a África e a Ásia.

Poucos anos depois da cena acima citada em Orlando,  isto é, em 1608,  ingleses aportaram na Índia com carta branca para explorar o comércio de especiarias. Pouco a pouco, o Império foi estendendo seu domínio territorial e militar até que, em 1858, após o esmagamento de  uma rebelião (chamada de Grande Motim pelos colonizadores) liderada por membros nativos do exército imperial,  a rainha Vitória tornou-se oficialmente a governante do território. A característica mais acentuada da presença britânica era o corpo de funcionários civis, quase todo composto por pessoas do país colonizador. Mesmo com a enorme população local e a existência de instituições milenares, a espinha dorsal da administração era toda anglo-saxônica.

Essa situação política perdurou até 1947, quando finalmente o país conquistou a Independência (é verdade que, depois da Primeira Guerra Mundial, o Império já estava bastante debilitado para manter suas colônias).

O escritor mais representativo dessa era de domínio da Índia pelos ingleses e, por extensão, de toda a ideologia que moveu a conquista do mundo pelos europeus é, sem dúvida nenhuma, Rudyard Kipling. E Kim —que você, leitor, está lendo na primorosa tradução de Maria Valéria Rezende— é, entre os seus livros, o que melhor expressa a situação curiosa desse gênio literário (imensamente popular enquanto viveu) que angariou, talvez injustamente, certa antipatia por sua condição de propagandista do imperialismo.

Kim é o órfão irlandês (ou seja, ele não é nem indiano nem inglês “legítimo”), o “amigo de todo mundo”, que vive ao deus-dará por Lahore, na província de Punjab (que hoje faz parte do Paquistão), até que se torna o chela (discípulo) de um lama, um sábio tibetano engajado numa busca mística (a amizade entre os dois é um aspecto muito bonito do romance); ao mesmo tempo, no mundo prático, torna-se um agente (aproveitando seu grande talento para o disfarce e facilidade em dominar vários dialetos) do coronel Creighton, o sagaz chefe do Serviço Secreto, que está tentando descobrir os detalhes de uma conspiração na qual  espiões russos estão envolvidos. Kim se entrega de corpo e alma ao que, ao longo da narrativa, é chamado de Grande Jogo.

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Na verdade, Kim (publicado em 1901) é a realização artística da nostalgia de Kipling pela Índia (especialmente pelo Punjab), onde nasceu em 1865 e viveu uma infância tão feliz que a viagem para a Inglaterra, onde foi educado em internatos, como comum naquele período, causou-lhe um grande trauma, que está muito presente na sua obra. De volta ao Punjab, ali exerceu o jornalismo e começou a escrever contos e poemas, com enorme repercussão, até sair da colônia (em 1889) para nunca mais.  A evocação do país em que nascera foi o impulso principal para a criação das mais celebradas obras kiplinguianas (que lhe valeram o prêmio Nobel), e apesar de justificar o domínio imperial, não vemos nelas aquela visão hostil dos povos não-europeus nem o racismo, tão presentes na atitude “guerreira” e na mentalidade em formação do jovem Orlando; pelo contrário, sentimos que Kim está tão à vontade no mundo indiano, que os ingleses se surpreendem ao constatar que ele é um sahib.

Agora adulto, percebo facilmente todas essas questões complicadas e delicadas em Kim. Quando o li pela primeira vez, na versão clássica de Monteiro Lobato, aos 11 anos, o que me chamou a atenção e fez dele meu livro predileto (junto com As aventuras de Tom Sawyer) foi o lado da aventura, da disponibilidade tanto espacial quanto existencial de Kim: ele podia se mover livremente por todo o território indiano, disfarçar-se, viver ao ar livre, sem entraves, quase sem regras. Todo o resto (a dominação inglesa, a opressão do povo indiano, o lado angustiante da sua condição: ele não pertence a nenhum lugar ou povo, no final das contas) passou batido, como se diz.

As aventuras do pequeno espião (associadas às dos heróis do que chamávamos então de gibis, que então eu venerava) me marcaram tanto, ali nos já longínquos anos 1970, que tomei a seguinte decisão: iria combater o crime (assim mesmo, vagamente, sem a menor noção da realidade)! Alta noite, comecei a me esgueirar para fora de casa e sair numa ronda “heroica”. Curiosamente, essas andanças acabavam por me levar aos mesmos lugares frequentados durante o dia (ia para os lados da escola, por exemplo); e nunca encontrei—felizmente—o que combater (ah, aqueles tempos em que um pré-adolescente podia sair pelas ruas na madrugada sem qualquer perigo!).

Após algumas experiências desse tipo, minha carreira de aventureiro noturno chegou a um fim abrupto porque um vizinho me viu saindo (ou voltando, tanto faz) e informou meus pais. A minha saída do apuro foi… passar-me por sonâmbulo. A partir daí, a vigilância materna nunca mais me deu trégua. Para minha tristeza, acabei não participando de nenhum Grande Jogo, a não ser o amor pela literatura.

A moral dessa história, caro leitor, é que hoje em dia precisamos ficar atentos a todas as conquistas humanistas, as quais permitem que a educação seja inclusiva, ecumênica, antirracista ou etnocêntrica, e instauradora da noção de que não há povos ou culturas superiores ou inferiores; mas, ao mesmo tempo, nunca devemos deixar que se perca o crescimento da imaginação e da sensibilidade que o desejo pela aventura carrega consigo. Os Grandes Jogos mudam, mas os pequenos Kims, cada um na sua medida, sempre estarão aí para o que der e vier.

nota- Nas antigas Sessões da Tarde vi muitas vezes a adaptação cinematográfica do livro, de 1950, dirigida por Victor Saville e estrelada por Errol Flynn, com Dean Stockwell ainda guri, no papel-título.

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