“__ Realmente é um mundo estranho. Não se sabe até onde ele é uma hipótese e a partir de onde ele se torna real. Com o passar do tempo, é cada vez mais difícil discernir a fronteira que separa o mundo hipotético do mundo real. Me diga uma coisa, Tengo: como escritor, como você definiria o conceito de realidade?
__ O mundo real é aquele em que, quando se espeta alguém com uma agulha, sangue vermelho é derramado—disse Tengo.”
“Sinto que inúmeras coisas à nossa volta começaram a entrar num estranho padrão. Algumas, inclusive, já não possuem mais a mesma forma. Acho que não vai ser tão fácil voltar à vida de antes…” (trechos de 1Q84)
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 21 de janeiro de 2014)
Nesta década em curso, Harumi Murakami vem despontando como o nome mais cotado toda vez que se aproxima a época do Nobel. A badalação em torno dele intensificou-se depois da repercussão estrondosa (muitos consideram sua obra máxima) de 1Q84, lançado no Japão no ano (2009) em que o autor se tornou sessentão[1], e cujos três volumes, com tradução de Lica Hashimoto, foram reunidos agora numa caixa pela Alfaguara.
Como os dois primeiros apresentam estrutura semelhante, comento-os em conjunto, deixando o último para a próxima semana (VER https://armonte.wordpress.com/2014/01/28/1q84-livro-3-de-murakami-a-poltrona-vagabunda-seduz-mais-que-a-sabedoria-da-coruja/). Em ambos, 24 capítulos alternam as peripécias dos protagonistas que se aproximam dos 30 anos, Aomame e Tengo, durante seis meses em 1984: uma preparadora física, ocasionalmente justiceira (mata homens que maltrataram outras mulheres); um candidato a escritor e professor de matemática. Aos 10 anos estudavam juntos, porém como ela era ostensivamente discriminada por pertencer às Testemunhas de Jeová, quase não se comunicavam, com a exceção de um momento mágico, que marcou as suas vidas, quando ela segurou a mão do colega por alguns segundos. A partir daí, mesmo perdendo contato completamente, sentem-se “almas gêmeas”.
Em abril de 1984, Aomame está presa num congestionamento (uma “missão” a espera), numa via expressa, e um motorista do táxi sugere a ela descer uma insólita “escada de emergência”. Ao fazê-lo, repara em alterações na “realidade” até que, olhando para o céu, vê duas luas. Conclui, então, que se transportara para um outro plano, o de 1Q84, “quase” igual ao nosso, onde as “regras” são diferentes e ela pode reencontrar Tengo. Esse universo paralelo, aliás, pode ser resultado das ações dele. O editor Komatsu lhe propõe reescrever (em segredo, pois se trata de uma fraude literária) Crisálida de Ar, manuscrito fascinante porém mal escrito e confuso, candidato num prestigiado concurso. A autora, Fukaeri, bela e esquipática garota de 17 anos, tem seu passado ligado a um grupo revolucionário de esquerda que organizara uma comuna agrícola (Sakigake) e depois se fechara para o mundo, adquirindo características de seita fundamentalista: seu Líder teria poderes sobrenaturais, e o vezo de estuprar menininhas impúberes, entre as quais a própria filha (aos 10 anos), que procurou refúgio com um velho amigo do pai.
Tengo aceita a tarefa, Crisálida de Ar se transforma num best seller e elementos da suposta fabulação de Fukaeri passam a interferir na existência cotidiana, incluindo um ameaçador e sombrio Povo Pequenino (que, entre outras “artes”, explode uma cadela em mil pedaços). Procurando sempre passagens para a nossa dimensão, são esses seres que fabricam as crisálidas de ar, contendo duplos (dohtas, sombras) das pessoas…
Pessoalmente, gosto muito de romances longos e que se desdobram, seja Em busca do tempo perdido, seja Guerra dos Tronos, através dos quais adentro um território descolado da realidade e irmanado a ela num mesmo movimento (talvez seja meu tipo de livro favorito); também, numa época como a nossa, obcecada por “histórias baseadas em fatos reais” (como se isso lhes conferisse um valor a priori), como não apreciar o elogio à imaginação ficcional levado a cabo em 1Q84? Sem cair na fastidiosa metalinguagem, ele dissolve com grande elegância as fronteiras entre estória e história.
O problema é: para quê? Fiquei cismado (no sentido negativo, de prevenção), durante todo o desenrolar dos dois volumes, com a crisálida de ar, com o Povo Pequenino, com Fukaeri, com a cabra cega que serve de acesso para o nosso mundo, todos eles elementos risíveis e constrangedores. Não entendi sequer a relação que se procurou estabelecer com o clássico 1984, de George Orwell, e para mim Murakami fracassou fragorosamente no ponto central, a criação de um universo paralelo (que, por suposição, deveria ser inquietante e desestabilizador). Ele já escreveu livros tão diferentes uns dos outros (e todos de boa qualidade) quanto Norwegian Wood, Dance Dance Dance ou Após o anoitecer, e por isso não espanta sua habilidade em nos envolver nas duas narrativas alternadas, especialmente a que enfoca Aomame (apesar de alguns deslizes infelizes, como Tamaru, um segurança-filósofo, que—nas suas piores intervenções na trama, e não são poucas—poderia estar em A Cabana e congêneres, além de um certo clima Stieg Larsson e seu Os homens que não amavam as mulheres)[2]. Decerto está longe de ser desagradável a leitura de 1Q84. A impressão é ser levado pela força da inércia, o leitor embalado pela expectativa de que essa abobrinha toda vai dar em alguma coisa (afinal é a “obra máxima” murakiama!).
Vencidos os dois volumes, podemos até tentar nos convencer de que, se terminasse no capítulo 48 (há outros 31), até que o romance ficaria bem amarradinho, “redondinho” (afirmo isso tendo em vista que os dois últimos capítulos do Livro 2 são momentos felizes dentro da montanha russa de altos e baixos). Mas a ilusão não dura e ficamos estupefatos, então, de que ele tenha precisado de 800 páginas para chegar a tão ralo resultado: uma fábula fácil de ler, gratuita e de pouca substância.
É preciso apontar também algumas estranhezas da tradução: se em geral, o trabalho de Lica Hashimoto me parece mais-que-competente, há passagens em que ela dificulta a vida do leitor comum, ao não colocar uma nota de rodapé que seja. Se os tradutores do russo (basta conferir as edições da 34) pecam pelo excesso, pelo afã de querer contextualizar cada passo do texto, a tradutora de 1Q84, com prejuízo semelhante para a leitura, segue o caminho antípoda. Por exemplo, Tengo é apresentado ao professor Ebisuno, o protetor de Fukaeri, e lemos:
“__ Eu me chamo Ebisuno—disse o homem.—Também não tenho cartão.
__ Ebisuno—repetiu Tengo.
__Mas todos me chamam de professor. Até mesmo a minha própria filha, não sei por quê, me chama de professor.
__ Como se escreve Ebisuno?
__ É um nome diferente. Muito raro de encontrar. Eri, escreva o meu nome e mostre-lhe.
Fukaeri assentiu e, pegando um bloco de papel e caneta, começou a escrever muito lentamente os ideogramas selvagem e campo numa folha de papel em branco (…)
__ Em inglês seria field of savages…”
1984 se impôs à imaginação universal. Difícil acreditar que o universo paralelo de 1Q84 chegue a um resultado similar. Como fenômeno cósmico, não passa mesmo de uma lua de papel.
VER TAMBÉM NO BLOG
https://armonte.wordpress.com/2012/10/14/apos-o-anoitecer-de-murakami-arquetipos-liquidos/
https://armonte.wordpress.com/2012/10/14/o-ponto-de-vista-liquido-de-haruki-murakami/
TRECHO SELECIONADO
“__ Então sua intenção era promover no mundo literário a estreia triunfal da filha do casal, Eri, e chamar a atenção do público quando Crisálida de ar se tornar um best seller. E, assim, provocar uma sacudida nesse impasse.
__ Sete anos é muito tempo. Tudo que fiz durante esse tempo todo foi em vão. Se não aproveitarmos esta oportunidade, creio que jamais teremos uma segunda chance de desvendar o mistério.
__ Eri é uma isca para atrair o grande tigre da floresta?
__ Ninguém sabe o que vai sair dessa floresta. Pode não ser necessariamente um tigre.
__ Mas, de acordo com o rumo dos acontecimentos, o senhor não descarta a ideia de que esteja ocorrendo algo muito grave.
__ Essa possibilidade existe—disse o professor, sentencioso.—Você deve saber que dentro de um grupo fechado e homogêneo tudo pode acontecer.
Houve um silêncio pesaroso, quebrado por Fukaeri:
__ É por causa do Povo Pequenino—disse em voz baixa.
Tengo olhou para Fukaeri, sentada ao lado do professor. Como sempre, o seu rosto carecia de algo que se pudesse chamar de expressão.
__ Você está querendo dizer que Sakigake mudou assim que o Povo Pequenino apareceu?—perguntou Tengo.
Fukaeri não respondeu. Apenas mexia com os dedos o botão da gola de sua blusa.
O professor Ebisuno tomou a palavra, para preencher o silêncio deixado por Fukaeri.
__ Não sei o que significa esse Povo Pequenino, ela não consegue expressar em palavras. Ou talvez não queira. Mas seja como for, uma coisa parece certa: esse tal Povo Pequenino teve um papel importante para transformar a comuna agrícola Sakigake em um grupo religioso…”
[1] Aliás, em 12 de janeiro de 2014 ele completou 65 anos.
[2] E ao longo de toda a narrativa, há passagens que comprovam a excelência de Murakami como escritor, independentemente de quanto a fabulação possa ser discutível. Um exemplo, retirado do capítulo em que Aomame tem uma sessão de condicionamento físico com o Líder, pai de Fukaeri, sob a “proteção” de dois seguranças. Na saída:
“… de repente, Aomame sentiu um impulso violento percorrer-lhe a pele como uma intensa corrente elétrica. Num ímpeto, o rapaz de rabo de cavalo estendeu rapidamente o braço como se fosse agarrar a mão direita de Aomame. Um gesto extremamente rápido e preciso, como o de pegar uma mosca em pleno voo. Por instantes, ela sentiu vividamente a intenção dele. Todos os músculos de Aomame ficaram tensos. Arrepiada, o coração começou a bater descompassado. Sentiu-se sufocada e com calafrios percorrendo a espinha. Uma intensa luz incandescente alvejou sua mente. Se este homem segurar o meu braço direito, não poderei sacar a arma. Se isso acontecer, não poderei vencê-lo. Este homem percebe que eu fiz alguma coisa. Instintivamente ele sabe que alguma coisa aconteceu naquele quarto. Alguma coisa muito ruim. O seu instinto estava lhe dizendo ´prenda esta mulher´ e lhe ordenava, ´derrube-a no chão, imobilize-a com o peso de seu corpo, desloque seu ombro´. Mas isso tudo não passava de uma intuição. Não havia provas. Se estivesse equivocado, essa atitude o deixaria em má situação. A hesitação dele era tamanha que o fez desistir de agir. Quem julgava e decidia o que fazer era o rapaz de cabelo rente. Ele não tinha essa autoridade, pensou Aomame. Ele reprimiu com muito esforço o ímpeto de seu braço direito e, gradativamente, foi diminuindo a força contida em seus ombros. Aomame notou nitidamente todas essas fases que o pensamento dele precisou percorrer em um ou dois segundos.”
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