(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 11 de setembro de 2001)
Quem achou péssimo o filme de Flávio Tambellini (de fato, é) baseado em BUFO & SPALLANZANI, pode estar pensando: puxa, o livro deve ser bem melhor.
Não, caro leitor, os romances de Rubem Fonseca são verdadeiras porcarias. Um engodo. Um ótimo contista?, inegável. Já romances como O caso Morel; A grande arte; Vastas emoções e pensamentos imperfeitos; Agosto são duros de engolir. Dessa joça toda, até que Bufo & Spallanzani, embora ruinzinho, acaba sendo o mais divertido.
Há um arsenal de referências eruditas e literárias. Só nas primeiras páginas, temos Tolstoi, Flaubert, Nabokov, Simenon, Murillo Mendes, Chagall, Saint-John Perse, Moravia, Maupassant, Baudelaire, Lakatos… Ufa (e ao longo do livro poderiam ser arrolados uns cinquenta outros)! Que adianta isso, no entanto, se a única maneira de mostrar as pessoas ricas que Fonseca concebe é a mais baixa caricatura? Que a nossa “elite” deixa a desejar é óbvio. Mas que personagens como os Delamare ou os que procuram refúgio no Pico do Gavião sejam tão toscos, não se pode aceitar.
Se nos seus textos curtos ele cria uma hiper-realidade ficcional a respeito da violência urbana brasileira, que faz com seus contos dos anos 1960 e 1970 ainda sejam atuais e perturbadores, tudo o que ele tem a oferecer no romances é uma grotesca irrealidade, agravada em Bufo & Spallanzani pela narrativa em primeira pessoa do escritor Gustavo Flávio, ex- Ivan Canabrava, feita num tom sub-nabokoviano ou sub- Philip Roth.
Veja, leitor, o horror que é o estilo (confesso-me muito burro para entender implicações jocosas ou paródicas que o autor porventura pretendesse imprimir a ele): “Carpas assadas na manteiga sem qualquer travo de terra e coelho ensopado com batatas e vagens. Havia também aspargos frescos, simplesmente indescritíveis, mesmo para um escritor competente como eu. Roma sentara-se numa mesa próxima à minha e houve um momento em que eu, ao mastigar o tenro coelho, imaginei, sem nenhuma lubricidade porém, estar mordendo as viçosas bochechas dela. Seus zigomas eram salientes e nobres, tinham a exuberância terrenha e pura dos frutos da natureza. Uma mulher edível, sob todos os aspectos”!!!!!???? (Gustavo Flávio já se apresentara, de saída, como um sátiro e um glutão).
O filme, por incrível que pareça, até melhora a “história”, que carece de qualquer coerência no romance. Pois os roteiristas juntaram personagens das duas fases da vida do protagonista: quando ele é Ivan Canabrava, investigador de seguros; e depois, quando se torna Gustavo Flávio (também eliminaram, justiça seja feita a eles, os personagens do Pico do Gavião, os quais ocupavam inutilmente boa parte do relato, só para criar paralelismos narrativos, jogos de espelhos de quinta categoria, que talvez só entusiasmem estudantes acadêmicos na formulação dos seus TCCs, dissertações ou teses).
Por exemplo, o marido de Delfina Delamare tornou-se também vilão na trama de seguros que envolve um falso cadáver (na verdade, cataléptico) e que é investigada, com resultados horríveis, sob todos os pontos de vista, incluindo o dramático, por Canabrava. Assim, tudo faz mais sentido, sob certo ângulo, embora o espectador saia da sessão com a sensação de que o filme “ainda” vai começar, tal a falta de emoção, clima, tensão.
O que não falta é canastrice. Dá até para sentir o impacto cósmico do titânico duelo dos canastrões José Mayer e Tony Ramos. O primeiro continua com os músculos do rosto inamovíveis, independentemente de qualquer situação que enfrente. O espectador fica o tempo todo à espera de que alguma Anita se apresente (nua, é claro) para ele[1], tal a mesmice da cara e da caracterização (no livro, o personagem é um mulato gordo).
E Tony Ramos?O que dizer de Tony Ramos? Ele,que era um galã anódino e funcional quando jovem, parece sonhar agora em se tornar um Al Pacino dos bons tempos, com seu tira Guedes. Mas os tiras dos romances de Rubem Fonseca já são medíocres de fábrica, já saíram com ar de produto requentado dos tempos da ficção noir E a incapacidade de Ramos—como de Mayer e do resto do elenco, diga-se de passagem—para dizer frases pomposas de forma natura, sem parecer que estão sendo “declamadas”, é constrangedora, beirando o indecoroso.
Mas tudo o que soa falso já está assim no romance. E o filme alivia o lado pernóstico e pretensioso. Sobra, ainda assim, o suficiente para ser indigesto.
No mundo de papelão que Fonseca modelou, só se salvam mesmo os personagens assumidamente caricaturais. Por essa razão, o melhor do livro são as personagens Zilda, primeira mulher de Ivan Canabrava-Gustavo Flávio, e Dona Duda, secretária da empresa de seguros (as quais foram reunidas numa só, na versão cinematográfica); esta última “também gostava de ver filmes dublados. As vozes dos dubladores eram sempre as mesmas e ela gostava disso. Quando surgia uma voz nova, ela reclamava. Chegou a escrever uma carta para a Rede Globo. Não gostei da voz que colocaram no Burt Reynolds no filme de quinta-feira. O que aconteceu com a voz antiga? Quem dublava Burt dublava o Lee Majors, o Humphrey Bogart, o Clark Gable, o Telly Sallavalas, o Laurence Olivier e o Xerife Lobo”! (eis aí o velho e bom Rubem Fonseca dos contos).
No mais, há um aspecto latente em Bufo & Spallanzani que daria um grande romance ao contar um crime que leva à narrativa de outro crime e assim sucessivamente, num desmascaramento sem fim e desmoralizante. Teríamos um retrato irônico do que acontece com os crimes e falcatruas que o país acompanha, recuando no passado de um Jader Barbalho, por exemplo. Da maneira como o livro foi concretizado, porém, isso ficou em segundo plano. Infelizmente.


[1] Na época, foi exibida a minissérie Presença de Anita, estrelada por Mayer. De lá para cá, nada mudou (ou só piorou).
VER TAMBÉM NO BLOG
https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/a-moralidade-de-best-seller-de-rubem-fonseca/
https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/quitutes-do-caldeirao-do-bruxo/
https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/o-genial-rubem-fonseca-dos-primeiros-tempos/
https://armonte.wordpress.com/2013/11/23/amalgama-um-rubem-fonseca-pifio-para-50-anos-de-carreira/
Tendo em vista a literatura brasileira que tem sido feita nos dias de hoje, com os “novos autores” que abundam, inclusive em editoras renomadas como a cia das letras, não creio (e isso é apenas minha opinião) que o mais justo para classificar romances como os de Rubem Fonseca sejam expressões como “verdadeiras porcarias” ou “dessa joça toda” (acho que hoje há gente que mereça mais esses nobres títulos, embora eu tenha rido da possibilidade de alguns “jogos” do autor poderem valer para “acadêmicos na formulação dos seus TCCs” (rsrsrs). Mas concordo que a influência de Philip Roth, por exemplo, leve, por vezes, ao digamos… “pouco elaborado”. Não sei se o autor deste blog chegou a ler o livro “Diário de um Fescenino”, em que o R. Fonseca chega a criar uma tal “síndrome de zuckerman”, obviamente inspirada no personagem mais célebre de Roth, Nathan Zuckerman, que aparece em muitos romances do escritor americano. O problema é que, pelo que entendi, a “síndrome de zuckerman” seria um fenômeno muito parecido com a “doença” inventada por Enrique Vila-Matas em seu “Bartleby e companhia”, livro publicado dois anos antes que o “Diário…”. Não por acaso, se bem me lembro, Fonseca chega a citar o Vila-Matas… Essas “doenças” afligiriam escritores que não conseguem mais escrever (no livro de Vila-Matas, em referência ao personagem “do não” de Herman Melville), ou leitores que confundem a obra com o autor (no livro de Fonseca). Enfim, “Diário de um Fescenino” saiu uns 15 anos depois de “Bufo”, mas há tendências nos dois livros que persistiram.
Comentário por Leonardo Alvarenga — 25/11/2013 @ 14:09 |