(RESENHA PUBLICADA ORIGINALMENTE EM ‘A TRIBUNA’ DE SANTOS, EM 31 DE OUTUBRO DE 1995)
Decepções sucessivas com os discutíveis (e alguns bem ruins) romances de Rubem Fonseca fazem o apreciador de seus contos hesitar, apesar da expectativa, em ler O buraco na parede.
Afortunadamente, lida a coletânea, percebe-se que seus oito contos não saíram do forninho micro-ondas de um best seller made in Brazil. O buraco na parede não é fast food. É quitute de caldeirão de bruxo, produto da alquimia interna de um contista que renovou a ficção nacional na década de 60, com obras como A coleira do cão, o qual pode ser lido em 1995 como se tivesse sido escrito hoje em dia. Seu retrato da realidade urbana brasileira continua desalentadoramente atual. Isso, sem falar da linguagem enxuta e contundente, um estilo que conheceu seu auge em Feliz ano novo (1975) em matéria de impacto e eficácia, e que agora corre nas águas mais mansas da maestria e da perícia técnica absoluta nos textos de O buraco na parede.
É difícil apontar qual o melhor deles. De imediato, três se destacam: O balão-fantasma, O anão e o conto-título, todos narrados em primeira pessoa (só dois textos no livro não o são).
Em O balão-fantasma aparece a figura emblemática do delegado diante do labirinto de criminalidade (e, em se tratando da Baixada Fluminense, realmente é um labirinto) e da desmoralização social, que aparece com freqüência no universo de Fonseca, só que o texto atinge um teor quase metafísico (além do tom lírico que perpassa toda a parte final do relato), pois ele tem de enfrentar uma seita de baloeiros com um fervor místico que o confunde e dribla a polícia e os vigilantes ecológicos, acrescentando-se à loucura geral da nação ao lançar o maior balão do mundo. Uma obra-prima.
O anão é a história de um atropelamento e de um assassinato: um homem (o narrador, Zé) mata um anão chantagista e o coloca numa mala para poder continuar com a mulher que o atropelou. É ler para crer no encanto com que, implacável e impagavelmente, Fonseca constrói o arco que vai do atropelamento ao assassinato. Especialmente deliciosa é a descrição do relacionamento que se estabelece entre Zé e Sabrina, atendente do Miguel Couto, onde ele foi internado: “Sabrina não saía da minha casa. Trouxe uma mala com coisas, roupas, discos de Tim Maia. Comecei a ficar com raiva dela, raiva do Tim Maia…”
O conto-título é a prova consumada de que Fonseca desperdiça seu incomparável talento em romances de segunda categoria. Em 20 páginas, ele consegue concatenar complexas situações e vários personagens: o narrador, dessa vez, é um jovem desocupado que mora num cubículo onde há o buraco. Através dele, espia sua amada, filha da senhoria. Esse buraco, que também é uma metáfora do que acontece quando temos acesso (mesmo involuntário) á intimidade das pessoas numa sociedade como a nossa, o leva, por tortuosos caminhos (que incluem uma libidinosa vizinha casada), à mais completa abjeção.
O leitor ainda tem o vaudeville sinistro e divertido de Idiotas que falam outra língua (o marido mata a esposa e reúne as duas amantes e mais o amante da esposa na cena do crime), o hiper-naturalista A carne e os ossos, o grotesco e cortante Orgulho, um daqueles contos rápidos nos quais Fonseca mostra mão de mestre. E tem ainda o caricato Artes e ofícios, e por fim Placebo, o mais problemático dos textos do livro: uma história esplêndida, aproveitando o significado da palavra placebo, extremamente bem-conduzida e cruel, porém infestada dos vícios que comprometem todos os romances e alguns contos do autor de O buraco na parede, por exemplo, a mania das brincadeiras eruditas. Em Placebo, o narrador está segurando uma caixa com um feto e diz para todos que é cerveja. O autor não resiste e, quando tem de inventar nomes para a suposta cerveja alemã, pespega-nos Weltschmerz e Weltanschauung, consagrados termos históricos e filosóficos. Compromete-se a verossimilhança psicológica do narrador e o texto artificializa-se.
Nem por isso o leitor deixa de ser arrastado pelo ritmo do conto, como acontece quase sempre com o contista Rubem Fonseca: seus quitutes diabólicos são devorados para se saber “aonde tudo vai dar”. Se depender das conclusões dos seus textos, porém, a perspectiva de “onde vai dar” a sociedade brasileira não é a de luz no fim do túnel, mas de um enorme buraco que vai se alastrando até derrubar o edifício.
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