(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 28 de setembro de 2010)
Nas especulações e apostas para o Nobel dos últimos anos, Claudio Magris é sempre um favorito. Famoso pelos belíssimos, inclassificáveis e não-ficcionais Danúbio &Microcosmo, vale a pena conhecer a produção ficcional do grande escritor italiano, caso de O Senhor vai entender, [“Lei dunque capirà”, Itália: 2006, em tradução de Maurício Santana Dias] pequena (e irônica) alegoria baseada no mito de Orfeu e Eurídice.
É Eurídice quem narra. Seu interlocutor é o Senhor Presidente, ao que parece o administrador de uma clínica na qual ela está recolhida devido ao “morbo”. Seu Orfeu (um poeta renomado, assediado pelas mulheres, mas no fundo dependente e narcisista) tenta resgatá-la dali (“resolveu enfrentar o desafio de vir até aqui embaixo e não capitulou, como os outros, diante dos deveres regulamentos da Casa de Repouso, que proíbe aos hóspedes… receber visitas e pôr em perigo nossa paz e tranquilidade…”); contudo, ela se recusa a acompanhá-lo, preferindo permanecer no “inferno”. Mesmo porque ele parece ter um projeto mais egoístico que altruístico ou amoroso: “Não, ele não viera para me salvar, mas para ser salvo. Como posso cantar minhas canções em terra estrangeira?, me dizia. Eu era a sua terra perdida, a linfa de sua floração, de sua vida. Ele veio para retomar a sua terra, da qual fora exilado”.
Ao narrar o insucesso de Orfeu, o que a Eurídice de Magris faz na verdade é desconstruir o relacionamento, desmistificar o poeta. Musa e ao mesmo tempo dona-de-casa, ela nos oferece um retrato impiedoso do grande artista ocidental tipicamente egocentrado, embora seu discurso também seja auto-glorificador até na martirização (“Eu tinha orgulho e queria que todos o admirassem e não me importava que não soubessem que o mérito era meu, que o fazia andar na linha”). Enquanto se dá essa demolição impiedosa, ficamos atentos às pequenas pinceladas que delineiam uma kafkiana instituição que se confunde com o mundo, mas um mundo obscurecido, crepuscular, onde mal se enxerga o contorno das coisas e das pessoas, em que tudo é atenuado, abafado, distante e ignoto (“Desde que estou aqui, nesta grande Casa–nem sequer a conheço por inteiro; inteiro? não conheço nem uma pequena parte…”)..
É curioso ler O Senhor vai entender e perceber nesse texto límpido, algo imemorial e remoto, até mesmo devido ao reaproveitamento do mítico e na alegorização das relações humanas e do espaço, um movimento totalmente contrário ao que norteia os projetos de Danúbio & Microcosmo, esses últimos totalmente ancorados num espaço específico que se abre caleidoscopicamente no tempo, movimentando-se por muitas épocas, mas sempre atrelada a uma lógica local, específica, muito geográfica.
Em ambas as direções, no entanto, estamos diante de uma prosa digna dos maiores prêmios: “Lá fora, senhor Presidente, há uma agonia por saber; até quem finge desinteressar-se daria nem sei o que para saber. Ele, então, se angustia mais que todos, porque é um poeta e a poesia, diz, deve descobrir o segredo da vida, arrancar o véu (…) Talvez, pensei, ele tivesse vindo me buscar sobretudo –ou apenas– por isso, para saber, para interrogar-me, para que eu lhe contasse o que está atrás destas portas (…) O senhor já entendeu, Senhor Presidente. Como dizer a ele que aqui dentro, afora a luz tão mais tênue, é como lá fora? Que estamos atrás do espelho, mas que esse reverso é também um espelho igual ao outro? Aqui também os objetos mentem, se dissimulam e mudam de cor como medusas…”
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